“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos O Mercador Medieval

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Mercadores tipicamente medievais numa iluminura de uma tradução do séc. XV de Ética, Política e Economia, de Aristóteles. 
Biblioteca Municipal de Rouen, França, Ms. 927, fol. 145. 

1. No início da Idade Média, a sociedade era predominantemente agrária e, portanto, o mercador era um elemento notável, mas secundário. Mais tarde, no entanto, ele transformou-se aos poucos numa figura de primeiro plano, no criador das novas relações que minavam os alicerces tradicionais do Feudalismo. Todavia, ocupar-nos-emos mais do mercador como tipo humano do que da atividade econômica dos mercadores. A mentalidade dos mercadores distinguia-se, em muitos aspectos e substancialmente, da dos cavaleiros, do clero e dos camponeses. A visão do mundo que, gradualmente, se foi formando na consciência da classe mercantil, à medida que ia evoluindo, opunha-se à visão do mundo dos outros estratos da sociedade feudal. 

2. Na Baixa Idade Média, os soberanos, os prelados, a aristocracia e, em parte, também estratos mais vastos da população precisavam de artigos e de mercadorias de vários gêneros que não podiam ser produzidos localmente e que tinham de ser importados de outros locais, por vezes distantes. Não se tratava apenas de vestuário e tecidos de luxo, louças valiosas e outras raridades, mas também produtos usuais que eram, muitas vezes, fornecidos pelos mercadores. Os mares da Europa meridional e setentrional, os grandes rios e, aqui e ali, mesmo as estradas herdadas dos romanos eram utilizados como vias comerciais. 

3. Os mercadores do primeiro período medieval não podiam ser totalmente privados do espírito belicoso. Tinham de se deslocar a países longínquos com as suas caravanas, vaguear por entre gentes e povos estranhos e deparavam com muitos e variados perigos, desde os salteadores até aos senhores locais, que se assemelhavam bastante aos bandidos. Esses senhores faziam de tudo para se apoderarem das suas riquezas, quer sobrecarregando-os com impostos, quer, mais simplesmente, roubando-lhes as mercadorias e os lucros. Os mercadores sofriam com as tempestades no mar e com as dificuldades do tráfico por via terrestre, dado o estado impraticável das estradas. Os lucros oriundos do comércio de mercadorias caras eram tão altos quanto os riscos envolvidos na atividade.   

4. O mercador precisava estudar cuidadosamente os costumes, ligados ao comércio, dos lugares onde chegava. Era importante, sobretudo, conhecer bem o direito comercial. Para ser bem sucedido, o mercador precisava saber línguas e, em especial, o latim e o francês porque eram as mais difundidas. Precisava de saber se orientar pelos astros e pela alternância do tempo e distinguir os pontos cardeais. O mercador devia manter um espírito de paz e ser sempre discreto; seguindo todos esses conselhos, poderia enriquecer. Essas foram as orientações de um pai norueguês a seu filho conforme registradas no Speculum regale, documento do primeiro terço do século XIII.   

5. O prestígio social dos mercadores era bastante modesto. Os que eram ricos, provocavam inveja. Além disso, a sua honestidade era posta em dúvida. Em geral, o mercador era um «pária» da sociedade medieval, na fase inicial do seu desenvolvimento. Qual era, exatamente, a justificação do seu lucro? Adquiria as mercadorias a um determinado preço e revendia-as a um preço mais elevado. Era aí que se ocultavam as possibilidades de fraude e de lucro injusto; os teólogos evocavam de bom grado as palavras: «o ofício de mercador não é grato a Deus», até porque, segundo os padres da Igreja, era difícil que, nas relações de compra e venda, não se insinuasse o pecado. Nas listas dos teólogos relativas aos ofícios classificados como «desonestos» ou «impuros», quase sempre figurava o comércio. Apesar disso, a Igreja reconhecia a necessidade do comércio.  

6. Os ricos que emprestavam dinheiro a juros eram particularmente desprezados; os mercadores eram os que recorriam mais frequentemente a esse sistema de multiplicação de capital. Em lugar das viagens comerciais a terras longínquas, associadas a não pequeno risco (ou paralelamente ao comércio), muitos ricos preferiam atuar como agiotas. E todos necessitavam, desde os soberanos aos nobres, aos pequenos comerciantes, aos artesãos, aos camponeses. Os autores cristãos tinham sempre condenado a usura, prevendo para os usurários as penas do inferno. Em 1179, a Igreja proibiu, oficialmente, aos cristãos a prática da usura. É essa proibição que explica, acima de tudo, o papel desempenhado pelos judeus na vida econômica do Ocidente. Apesar disso, muitos cristãos foram usurários.
  
7. Numa sociedade hierárquica, dividida em classes, dava-se valor, em primeiro lugar, à nobreza de origem e à coragem cavaleiresca que estava associada a essa nobreza. O cidadão, mesmo que fosse um rico mercador, era desprezado pelos nobres e não se esperava dele nenhuma virtude cavaleiresca. Para os cavalheiros e as damas nobres, não passava de um canalha, de um vilão. Todavia, os ricos das cidades, os mercadores e os usurários, tentavam ascender a uma posição elevada mercê da sua riqueza. Havia certos cidadãos que até conseguiam obter a dignidade de cavaleiros. Uma das características dos mercadores-aristocratas era a ambição de uma vida luxuosa.

8. A ética da acumulação entrava em conflito não só com a doutrina religiosa, mas também com as tendências fundamentais da aristocracia. Para esta, constituía uma virtude dispor ostensiva e abertamente da riqueza, dissipá-la publicamente. As despesas que não tinham em conta as receitas reais eram sinal de nobreza e generosidade. Por sua vez, o mercador não pode deixar de ser parcimonioso e econômico, tem de amealhar o dinheiro e gastar moderadamente os seus recursos na esperança do lucro. 

9. Os autores eclesiásticos dos séculos XI e XII, ao caracterizarem a sociedade, recorriam ao sistema trifuncional «rezadores-guerreiros-lavradores». Todavia, no século XIII, esse esquema arcaizante já estava em nítida contradição com a realidade social. Assim, o franciscano Bertoldo de Ratisbona (1220-1272) considerava as categorias e as classes como uma espécie de analogia da hierarquia celestial, que justificava e fundamentava a organização social. Aos nove coros angélicos descritos no passado pelo Pseudo-Dionísio, correspondem nove categorias, que abrangem os indivíduos que executam os vários serviços. No centro da atenção de Bertoldo estavam as profissões urbanas e, embora ele amaldiçoasse constantemente os «ambiciosos» e os ricos, justificou plenamente a existência do comércio e dos mercadores. Finalmente, em vez dos apelos à passividade ascética e ao afastamento do mundo, o pregador franciscano insistiu na necessidade de uma atividade socialmente útil como base da existência da sociedade.    

10. Godrich von Finchale (c. 1065-1170) foi um mercador inglês que, num curto espaço de tempo, passou de pequeno comerciante a mercador que percorria o Báltico e auferia enormes proventos com revenda de mercadorias raras. Depois de ter feito fortuna, renunciou ao comércio lucrativo, retirando-se para a vida religiosa para salvar a sua alma e, depois da sua morte, foi proclamado santo. Isso não constituiu uma excepção. Um século depois, foi proclamado santo o mercador Omobono de Cremona, que se ocupou do comércio até ao fim dos seus dias, mas que se tornou santo devido ao seu testamento. Em 1360, o mercador de Siena, Giovanni Colombini, depois de abandonar os negócios, fundou a ordem mendicante dos Jesuatos. Na primeira novela do Decameron, o senhor Ciappelletto da Prato, conhecido perjuro e blasfemo, no seu leito de morte, servindo-se de uma falsa confissão, enganou o frade e foi proclamado santo depois de morrer.      

11. Os «homens novos», que tinham sido bem sucedidos na atividade comercial e financeira, distinguiam-se não só pela sua energia, pelo seu espírito de iniciativa e pelo desembaraço, mas também pelo descaramento, o egoísmo e a desenvoltura em relação a todas as normas patriarcais da época. Mas só a posse da riqueza mobiliária não garantia estima e prestígio, na sociedade feudal. Eis um exemplo: um burguês de Ravensburg, em carta, tentou «tratar por tu» um cavaleiro, à semelhança do que este fazia com ele, e foi colocado no seu lugar pelo correspondente, que lhe recordou a sua nobreza e o fato de ele não passar de um «burguês», um mercador. Por isso, devia ir até à cervejaria informar-se das cargas que chegavam de Alexandria e de Barcelona, mas era melhor não tentar provar a sua origem! Se, em Itália, a fronteira entre a nobreza e a aristocracia mercantil não tinha ainda desaparecido, começava, pelo menos, a se dissipar. Na Germânia, contudo, a situação não era a mesma.    

12. O poder monárquico precisava considerar a classe mercantil e empresarial de cujo apoio financeiro e político necessitava. Alguns dos mercadores mais ricos eram íntimos da corte. O banqueiro Jacques Coeur, «o primeiro magnata financeiro da Europa» (1395-1456), que investiu os seus capitais em todas as possíveis empresas lucrativas e tinha interesses em toda a Europa, tornou-se ministro e tesoureiro do rei Carlos VII da França, participando não só na realização das reformas do Estado, mas também na política militar e diplomática francesa.  De forma semelhante, Buonaccorso Pitti (1354-1430), comerciante de nível incomparavelmente mais modesto e do que Jacques Coeur, tomou parte ativa nos assuntos públicos de Florença e, tratando a alta aristocracia de igual para igual, participou nas guerras e nas intrigas políticas, imiscuindo-se na luta partidária da sua cidade natal.

13. Em nenhum outro local da Europa a classe mercantil atingiu tanto poder econômico e político como nas cidades italianas. Em nenhum outro local uma camada tão vasta de população esteve ligada à atividade mercantil. Um viajante que passou por Veneza pouco antes da grande epidemia de peste de 1348, chegou a esta conclusão: «são todos mercadores». Acerca dos genoveses, dizia-se o seguinte: «genoveses, logo, mercadores». São opiniões apropriadas, na medida em que a grande classe mercantil dava o tom a toda a vida econômica, social e política nessas cidades italianas. Em Itália, a profissão de mercador estava moralmente reabilitada e Jacopo da Varazze, bispo de Gênova e autor da famosa Legenda aurea, comparava o mercador a Cristo em pessoa: também Cristo dera aos homens a possibilidade de trocarem as coisas transitórias e terrestres pelas coisas eternas.  

14. A partir do século XIII, numerosos mercadores empreenderam longas e perigosas viagens por mar. Basta recordar o célebre Marco Polo. Em 1291, os irmãos genoveses Vivaldi empreenderam uma viagem surpreendente. Eles zarparam para Ocidente, para lá de Gibraltar, com o objetivo de descobrirem a Índia das riquezas fabulosas, águas ocidentais do Atlântico ou depois de circum-navegarem a África, sem que houvesse antecessores ou pontos de orientação que lhes pudessem servir de guia. A Índia, a China, os países da África e o Próximo Oriente atraíam estes corajosos navegadores e viajantes que associavam a caça ao lucro à curiosidade e ao espírito de aventura. O mercador transformava-se, facilmente, em corsário, uma vez que viajava armado. 

15. O mercador precisava estar preparado para enfrentar o perigo, que constituía um aspecto imprescindível da sua profissão, e, por conseguinte, a consciência do risco, da ameaça, nunca o abandonava. O perigo escondia-se nas viagens de longo curso, sobretudo as que eram feitas por mar: os naufrágios, os assaltos dos piratas ou dos mercadores rivais. Mas o perigo também vinha das perturbações do mercado e das pessoas com quem o mercador estabelecia relações de vários gêneros. É por isso que, nos apontamentos e nas instruções saídos da pena dos mercadores-escritores, há insistentes avisos em relação às partes contrárias, aos concidadãos, aos amigos e até aos parentes. Aconselha-se o mercador a estar sempre alerta. Gradualmente, no entanto, o mercador passou de empresário que peregrinava por terra ou por mar e se sujeitava a todos os perigos, a mercador que permanecia na sua empresa e que fazia os seus negócios, sobretudo por intermédio de agentes ou por correspondência.    
  
Bibliografia consultada: GUREVIC, Aron Ja. O Mercador. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 165-178. 

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