domingo, 23 de junho de 2019
Xiitas e sunitas no Oriente Médio. Como se nota, apenas no Iraque e no Irã os xiitas constituem a corrente islâmica majoritária.
1. Nos primeiros séculos, o judaísmo, o cristianismo e o Islã permaneceram mais abertos uns aos outros do que o seriam depois. Naturalmente, a transferência do centro de gravidade que ocorreu no corpo político do Islã teve seu paralelo no domínio do pensamento. Medina e Meca não deixaram de ser importantes, mas a Síria se destacou mais, e o Iraque mais que todos, com sua rica cultura marcada pelo judaísmo, pelo cristianismo nestoriano e pelas religiões do Irã.
2. A articulação do Islã num corpo de ciências e práticas religiosas ocorreu em grande parte no Iraque do período abácida (750-1258). Em primeiro lugar, o Corão era o primeiro material sobre o qual os estudiosos e pensadores podiam trabalhar. Depois, havia uma tradição viva de como a comunidade se conduzira no tempo do Profeta em diante, passada para gerações posteriores e por elas elaborada, tendo, no seu núcleo, uma espécie de memória coletiva de como fora o próprio Profeta. Havia também a memória dos atos públicos da comunidade e de seus líderes.
3. As linhas de pensamento e estudo ao longo das quais se articulou o Islã foram numerosas, mas claramente relacionadas umas com as outras. O primeiro e mais urgente problema que surgiu foi o da autoridade. Quem devia ter autoridade na comunidade fundada por Maomé, e que tipo de autoridade? Devia a sucessão de Maomé, o Califado ou, como também era chamado, o imanato, estar aberto a todos os muçulmanos, ou apenas os Companheiros do Profeta, ou apenas à sua família? Como se deveria escolher o califa? Quais seriam os limites de sua ação legítima? Se ele agisse injustamente, devia ser desobedecido ou deposto?
4. Aos poucos, cristalizaram-se diferentes atitudes em relação a esses problemas. Segundo aqueles que vieram a chamar-se sunitas, o importante era que todos os muçulmanos vivessem unidos e em paz. Eles aceitaram como legítimos, e como virtuosos e corretamente guiados (rashidum), todos os quatro primeiros califas; os califas posteriores podiam nem sempre ter agido com justiça, mas deviam ser aceitos como legítimos, desde que não desobedecessem aos mandamentos básicos de Alá. Era amplamente aceito que o califa devia descender da tribo dos coraixitas, à qual pertencera Maomé.
5. Os ibaditas, por outro lado, não acreditavam ser imprescindível a existência de um imã. Qualquer muçulmano, independentemente da origem ou da família, poderia ser escolhido pela comunidade para ser um imã. Se este agisse contra a lei derivada do Corão e do Hadith, poderia ser deposto. Em Omã, o ibadismo é a vertente predominante do Islã.
6. Os movimentos xiitas não aceitaram as pretensões dos três primeiros califas, mas acreditavam que 'Ali ibn Abi Talib fora o único sucessor legítimo e nomeado do Profeta como imã. Divergiam entre si, no entanto, quanto à linha de sucessão de 'Ali e à autoridade dos imãs.
7. Os zaiditas aproximavam-se dos sunitas em suas opiniões. Afirmavam que qualquer descendente de 'Ali com sua esposa Fátima podia ser imã, desde que tivesse o conhecimento e a religiosidade necessários, e se levantasse contra a injustiça. Não acreditavam que o imã tivesse autoridade infalível ou sobre-humana.
8. Os outros dois movimentos xiitas importantes foram mais longe, no entanto. O primeiro, conquistou mais adeptos e afirmava que a sucessão passara entre os descendentes de 'Ali, até que o décimo segundo da linhagem desaparecera no século XII (daí serem popularmente conhecidos como "adeptos do Duodécimo"). Como o mundo não poderia existir sem um imã, eles acreditavam que o décimo segundo imã não morrera, mas vivia em "ocultamento" e um dia reapareceria para trazer o reinado de justiça.
9. Os ismaelitas, por sua vez, concordavam que o imã era o intérprete infalível da verdade, mas afirmavam que a linha de imãs visíveis acabara com o sétimo, Muhammad ibn Isma'il (alguns deles, porém, modificaram suas crenças sob os califas fatímidas).
10. Essas diferentes opiniões sobre o Califado ou imanato resultaram em implicações variadas para a natureza de governo e seu lugar na sociedade. Tanto ibaditas quanto ismaelitas retiraram-se da sociedade islâmica universal, em rejeição ao domínio de governos injustos. Desejavam viver sob a lei religiosa como a interpretavam, e não estavam dispostos a dar a um imã ou a qualquer outro governante o poder que podia levá-lo a agir injustamente.
11. Por outro lado, os sunitas, os xiitas adeptos do Duodécimo e ismaelitas, cada qual à sua maneira, queriam uma autoridade que simultaneamente mantivesse a lei e a ordem da sociedade. Terminada a primeira era, a consequência disso foi a separação de facto entre os que mantinham a lei (o ulemá, para os sunitas, e o imã oculto, para os xiitas) e o homem da espada, que tinha o poder de impor a ordem temporal.
12. Em meados do século VIII, os Mu'tazilis (ou "os que se mantêm à parte") acreditavam que se podia chegar à verdade usando-se a razão sobre o que é dado no Corão, e dessa forma alcançar respostas para diversas questões existenciais. Outros, porém, eram mais céticos quanto à possibilidade de alcançar a verdade aceita por meio da razão; além disso, tinham consciência dos potenciais danos para a comunidade que a argumentação e a discussão racionais poderiam gerar. Para eles, o Corão era a única base firme para a fé e a paz comunal, devendo ser interpretado, até onde fosse necessária a interpretação, à luz da prática habitual do profeta e seus Companheiros, os suna.
13. Pensadores mutazilitas posteriores foram profundamente influenciados pelo pensamento grego. Aos poucos, perderam importância dentro da comunidade sunita emergente, mas sua influência permaneceu forte nas escolas de pensamento xiitas que se desenvolveram a partir do século XI. Entre os xiitas do Duodécimo, o consenso da comunidade só era válido se o imã estivesse incluído. Havia também alguns pontos distintos de lei substancial xiita.
14. Coube a al-Shafi'i (767-820) o passo decisivo na definição das relações entre as diferentes bases para as decisões legais. O Corão, afirmava, era a Palavra literal de Deus, tanto em forma de princípios gerais quanto de mandamentos específicos (prece, esmolas, jejum, peregrinação, proibição do adultério, do consumo de vinho e carne de porco). Igualmente importante, porém, era a prática ou suna do Profeta, como registrada nos hadiths. Uma vez estabelecidos e geralmente aceitos os princípios de interpretação, era possível tentar relacionar o conjunto de leis e preceitos morais com eles. Tal processo de pensamento era conhecido como fiqh, e o produto dele acabou chamando-se charia.
15. Há ainda uma corrente mística do Islã, definida em árabe pela palavra tasawwuf (da qual a forma ocidentalizada sufismo). Essa linha extraiu sua inspiração do Corão. Um fiel meditando sobre o seu significado pode ter sido invadido por um senso da esmagadora transcendência de Deus e da total dependência de todas as criaturas para com ELE. Nos primeiros místicos, o senso de distância e proximidade de Deus é expresso em linguagem de amor.
2. A articulação do Islã num corpo de ciências e práticas religiosas ocorreu em grande parte no Iraque do período abácida (750-1258). Em primeiro lugar, o Corão era o primeiro material sobre o qual os estudiosos e pensadores podiam trabalhar. Depois, havia uma tradição viva de como a comunidade se conduzira no tempo do Profeta em diante, passada para gerações posteriores e por elas elaborada, tendo, no seu núcleo, uma espécie de memória coletiva de como fora o próprio Profeta. Havia também a memória dos atos públicos da comunidade e de seus líderes.
3. As linhas de pensamento e estudo ao longo das quais se articulou o Islã foram numerosas, mas claramente relacionadas umas com as outras. O primeiro e mais urgente problema que surgiu foi o da autoridade. Quem devia ter autoridade na comunidade fundada por Maomé, e que tipo de autoridade? Devia a sucessão de Maomé, o Califado ou, como também era chamado, o imanato, estar aberto a todos os muçulmanos, ou apenas os Companheiros do Profeta, ou apenas à sua família? Como se deveria escolher o califa? Quais seriam os limites de sua ação legítima? Se ele agisse injustamente, devia ser desobedecido ou deposto?
4. Aos poucos, cristalizaram-se diferentes atitudes em relação a esses problemas. Segundo aqueles que vieram a chamar-se sunitas, o importante era que todos os muçulmanos vivessem unidos e em paz. Eles aceitaram como legítimos, e como virtuosos e corretamente guiados (rashidum), todos os quatro primeiros califas; os califas posteriores podiam nem sempre ter agido com justiça, mas deviam ser aceitos como legítimos, desde que não desobedecessem aos mandamentos básicos de Alá. Era amplamente aceito que o califa devia descender da tribo dos coraixitas, à qual pertencera Maomé.
5. Os ibaditas, por outro lado, não acreditavam ser imprescindível a existência de um imã. Qualquer muçulmano, independentemente da origem ou da família, poderia ser escolhido pela comunidade para ser um imã. Se este agisse contra a lei derivada do Corão e do Hadith, poderia ser deposto. Em Omã, o ibadismo é a vertente predominante do Islã.
6. Os movimentos xiitas não aceitaram as pretensões dos três primeiros califas, mas acreditavam que 'Ali ibn Abi Talib fora o único sucessor legítimo e nomeado do Profeta como imã. Divergiam entre si, no entanto, quanto à linha de sucessão de 'Ali e à autoridade dos imãs.
7. Os zaiditas aproximavam-se dos sunitas em suas opiniões. Afirmavam que qualquer descendente de 'Ali com sua esposa Fátima podia ser imã, desde que tivesse o conhecimento e a religiosidade necessários, e se levantasse contra a injustiça. Não acreditavam que o imã tivesse autoridade infalível ou sobre-humana.
8. Os outros dois movimentos xiitas importantes foram mais longe, no entanto. O primeiro, conquistou mais adeptos e afirmava que a sucessão passara entre os descendentes de 'Ali, até que o décimo segundo da linhagem desaparecera no século XII (daí serem popularmente conhecidos como "adeptos do Duodécimo"). Como o mundo não poderia existir sem um imã, eles acreditavam que o décimo segundo imã não morrera, mas vivia em "ocultamento" e um dia reapareceria para trazer o reinado de justiça.
9. Os ismaelitas, por sua vez, concordavam que o imã era o intérprete infalível da verdade, mas afirmavam que a linha de imãs visíveis acabara com o sétimo, Muhammad ibn Isma'il (alguns deles, porém, modificaram suas crenças sob os califas fatímidas).
10. Essas diferentes opiniões sobre o Califado ou imanato resultaram em implicações variadas para a natureza de governo e seu lugar na sociedade. Tanto ibaditas quanto ismaelitas retiraram-se da sociedade islâmica universal, em rejeição ao domínio de governos injustos. Desejavam viver sob a lei religiosa como a interpretavam, e não estavam dispostos a dar a um imã ou a qualquer outro governante o poder que podia levá-lo a agir injustamente.
11. Por outro lado, os sunitas, os xiitas adeptos do Duodécimo e ismaelitas, cada qual à sua maneira, queriam uma autoridade que simultaneamente mantivesse a lei e a ordem da sociedade. Terminada a primeira era, a consequência disso foi a separação de facto entre os que mantinham a lei (o ulemá, para os sunitas, e o imã oculto, para os xiitas) e o homem da espada, que tinha o poder de impor a ordem temporal.
12. Em meados do século VIII, os Mu'tazilis (ou "os que se mantêm à parte") acreditavam que se podia chegar à verdade usando-se a razão sobre o que é dado no Corão, e dessa forma alcançar respostas para diversas questões existenciais. Outros, porém, eram mais céticos quanto à possibilidade de alcançar a verdade aceita por meio da razão; além disso, tinham consciência dos potenciais danos para a comunidade que a argumentação e a discussão racionais poderiam gerar. Para eles, o Corão era a única base firme para a fé e a paz comunal, devendo ser interpretado, até onde fosse necessária a interpretação, à luz da prática habitual do profeta e seus Companheiros, os suna.
13. Pensadores mutazilitas posteriores foram profundamente influenciados pelo pensamento grego. Aos poucos, perderam importância dentro da comunidade sunita emergente, mas sua influência permaneceu forte nas escolas de pensamento xiitas que se desenvolveram a partir do século XI. Entre os xiitas do Duodécimo, o consenso da comunidade só era válido se o imã estivesse incluído. Havia também alguns pontos distintos de lei substancial xiita.
14. Coube a al-Shafi'i (767-820) o passo decisivo na definição das relações entre as diferentes bases para as decisões legais. O Corão, afirmava, era a Palavra literal de Deus, tanto em forma de princípios gerais quanto de mandamentos específicos (prece, esmolas, jejum, peregrinação, proibição do adultério, do consumo de vinho e carne de porco). Igualmente importante, porém, era a prática ou suna do Profeta, como registrada nos hadiths. Uma vez estabelecidos e geralmente aceitos os princípios de interpretação, era possível tentar relacionar o conjunto de leis e preceitos morais com eles. Tal processo de pensamento era conhecido como fiqh, e o produto dele acabou chamando-se charia.
15. Há ainda uma corrente mística do Islã, definida em árabe pela palavra tasawwuf (da qual a forma ocidentalizada sufismo). Essa linha extraiu sua inspiração do Corão. Um fiel meditando sobre o seu significado pode ter sido invadido por um senso da esmagadora transcendência de Deus e da total dependência de todas as criaturas para com ELE. Nos primeiros místicos, o senso de distância e proximidade de Deus é expresso em linguagem de amor.
Bibliografia consultada: HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. Tradução de Marcos Santarrita. 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 76-87.
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