quarta-feira, 19 de agosto de 2020
A renovação do monacato assumiu, desde o século VII, o caráter de missões. Os fundadores eram monges errantes, que iam de região em região, fundando estabelecimentos antes de seguir adiante. Assim, o irlandês Columbano, depois de ter percorrido a Gália merovíngia, acabou seus dias em Bobbio, Itália. Os prefeitos de palácio estimularam essa ação, que preparava e depois consolidava sua intervenção política nos principados vizinhos do reino franco, ao passo que os monges missionários tinham todo interesse em tirar partido, para suas fundações monásticas, dos avanços territoriais do reino cristão dos francos.
Vários religiosos - de anglos-saxões como Willibrord (morto em 739) e Winfrid, a irlandeses, como Killien (morto em 689) e Pirmino (morto em 730) - participaram desse movimento de expansão do cristianismo. Mas coube a Bonifácio o papel principal como eclesiástico do mundo franco. Foi à reforma da Igreja no reino que ele dedicou os dez últimos anos de sua vida. Como parte das suas iniciativas, estava a elevação dos bispos metropolitanos, que ele desejava que passassem a deter o título de arcebipo.
Os bispos não metropolitanos se mostraram reticentes diante dessa inovação, que reduzia a sua independência. Os príncipes dos francos, por sua vez, desconfiavam de um grau hierárquico que os separaria da maioria dos bispos, aumentando o poder de alguns. Assim, o próprio Bonifácio, que recebeu o pallium em 732, não conseguiu se impor como arcebispo de Colônia, pelo que precisou voltar para Mogúncia. Quando o imperador Carlos Magno morreu, em 814, existiam 21 arcebispos em seu império.
A retomada do controle passava pela reforma moral. Assim, em 742, o arcebispo Bonifácio enviou um relatório contundente ao papa Zacarias: os francos não realizavam um sínodo há mais de oitenta anos; as sedes episcopais estavam entregues a leigos gananciosos, ou ocupadas por clérigos adúlteros e mundanos; os diáconos viviam na devassidão e no adultério, antes de chegar ao sacerdócio e, por fim, ao episcopado. Os príncipes Carlomano e Pepino, o Breve, deram a Bonifácio, então, o apoio político sem o qual seus projetos não passariam de letra morta.
Os reformadores deram uma atenção especial à eleição - quase se poderia dizer nomeação - de bispos e de abades dignos de suas funções. Os beberrões, analfabetos e giróvagos (monges que perambulavam em busca de esmolas) passaram a ser caçados. Os faltosos foram destituídos, quando não terminaram os seus dias na prisão. Na verdade, dois ou três, apenas, foram destituídos, uma vez que o príncipe não ousava descontentar a aristocracia, que se apossou de muitas dioceses.
Chrodegang, bispo de Metz, ocupou a sede episcopal de 742 a 766. Ele veio a ser considerado santo, e desejava ardentemente a reforma, mas não uma reforma vinda de fora: a Igreja franca opunha-se tanto a Roma quanto aos monges insulares. Chrodegang tornou-se o sucessor de Bonifácio no que dizia respeito à reforma. Alguns ritos desconhecidos de Roma foram mantidos, como a adoração da cruz durante o ofício da Sexta-Feira da Paixão, praticada primeiro na catedral de Metz e depois estendida a todas as igrejas do Ocidente. Chrodegang deu aos clérigos seculares de sua diocese uma regra. As novas nomeações (cuidadas pessoalmente pelo rei), passaram a considerar o nível de instrução dos candidatos. Apesar disso, a formação intelectual era considerada um mero instrumento para a regeneração moral, ficando em segundo plano.
Da mesma forma, buscou-se acabar com as igrejas em poder dos leigos, com a acumulação de cargos que tornava ilusória qualquer ação real, com o escândalo causado pelas concubinas - alguns bispos possuíam várias - e com o nepotismo que tornava hereditária a função episcopal. A restauração intelectual iniciada desde o fim do século VII, por limitada que tenha sido, permitiu o retorno dos debates teológicos. Assim, o concílio de Soissons condenou, em 744, a heresia do padre Adalberto.
A reforma atingiu também os fiéis. A crise moral do clero havia se refletido no povo, levando o cristianismo a recuar no século VII nos campos do reino franco. A repressão do paganismo na Germânia foi espetacular. Além do relaxamento moral do clero, a crise foi também causada pela má qualidade da conversão promovida por muitos missionários. O monge Sankt Gallen conta a história do saxão que se fez batizar vinte vezes para receber e guardar as vestes batismais feitas "de um belo linho branco como a neve", e que reclamou quando, apresentando-se para mais um "banho", deram-lhe uma camisa ordinária e mal costurada: "Um saco ordinário desses foi feito para um guerreiro ou para um guardador de porcos?", questionou ele.
Os concílios denunciavam as práticas supersticiosas que perpetuavam o paganismo, a idolatria, o uso de amuletos, os sacrifícios de animais. Mesmo quando o cristianismo parecia solidamente enraizado nas cidades e em algumas zonas rurais, continuava bastante propenso a misturar devoções cristãs com os cultos pagãos. "A firme atitude do rei e de seu episcopado em favor do papel essencial das imagens na pregação deriva, em parte, da necessária concessão aos hábitos pagãos." (p. 122)
A ação conjunta dos bispos reformadores e dos monastérios começou a dar frutos na época de Carlos Magno. Apesar disso, todas as pregações que conseguiram, muito lentamente, fazer com que se abandonassem os cultos e as festas diretamente ligadas a tal ou qual deus do panteão pagão mostraram seus limites quando se estava em questão as forças naturais, ou da necessidade elementar de divertimento. Nem Bonifácio nem Carlos Magno conseguiram nada nesse sentido. Em 789, ainda era necessário punir com rigor aqueles que acendiam tochas nas árvores ou nos rochedos.
A autoridade de Bonifácio, que se tornou "arcebispo das Gálias e da Germânia", lhe permitiu ter um papel decisivo na ascensão do filho de Pepino, em 751. A aliança da nova realeza com a Igreja tornou-se o cimento da unidade cristã no Ocidente. O coroamento imperial, em 800, foi uma mera conclusão desse processo.
Adaptado de FAVIER, Jean. Carlos Magno. Tradução de Luciano Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 116-123.
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