“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

«Racismos»: Introdução

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

1. Francisco Bethencourt rompe com o consenso de que a teoria de raças antecedeu o racismo, contesta o atual revisionismo acadêmico, que remonta a invenção do racismo à Antiguidade Clássica; e rejeita a ideia do racismo como fenômeno inato partilhado por toda a humanidade. Determinadas configurações de racismo só podem ser explicadas com a pesquisa de conjunturas históricas. O racismo é relacional e sofre alterações com o tempo, não podendo ser compreendido na sua totalidade através do estudo segmentado de breves períodos temporais, de regiões específicas ou de vítimas recorrentes (judeus ou negros, por exemplo).

2. O conceito de racismo - preconceito em relação às ascendência étnica combinado com ação discriminatória - serve de base para essa abordagem de "longa duração". A pesquisa se concentra no mundo ocidental, desde as Cruzadas até o século XX. Não se defende que a realidade do racismo seja exclusiva dessa zona do globo; a Europa limita-se a fornecer um cenário relativamente consistente, que será comparado com outras partes do mundo. A pesquisa de Bethencourt baseia-se na hipótese de que, ao longo da história, o racismo na forma de preconceito étnico associado a ações discriminatórias foi motivado por projetos políticos.

3. QUESTIONAMENTOS. Uma mesma pessoa pode ser considerada negra nos Estados Unidos, de cor no Caribe e branca no Brasil. Como isso é possível? Parece óbvio que as classificações raciais têm um poder imenso de escalonar os grupos sociais, bem como de impor limitações e oportunidades às populações dos países envolvidos. Os principais estudos sobre o racismo (de Pierre van den Berghe, Carl Degler e George M. Frederickson) identificam percepções raciais comuns e divergentes nos Estados Unidos e no Brasil - no primeiro caso, uma gota de sangue africano define um indivíduo como negro; entre os brasileiros, contudo, o status de classe média embraquece a tez humana. 

4. Para Bethencourt, no entanto, tanto os antecedentes históricos como as formas de classificação em constante mudança careciam de uma explicação mais atenta. Chama a atenção, na atualidade, que a Frana tenha abolido a classificação racial, vista como reforço dos preconceitos racistas, ao passo que nos Estados Unidos a classificação racial faz parte de todos os inquéritos burocráticos, em especial no caso de quem busca entrar no país. Ao mesmo tempo, os afro-americanos apropriaram-se do termo "raça" como expressão de identidade coletiva e como ferramenta política. 

5. O questionamento que inspirou a obra Racismos se baseava apenas na cor da pele; não eram incluídos, por exemplo, os nativos americanos. Onde e como se inventou o conceito de pele-vermelha? Como é possível manter o contraste entre pele negra e branca, considerando a imensidão de gradações, tanto na África como na Europa? As classificações raciais, formuladas na Europa e nos Estados Unidos (séculos XVIII e XIX) com objetivos científicos, ambicionavam incluir todos os povos do mundo numa disposição relacional sistêmica e hierárquica. Isso ultrapassava muito a simples variação do tom da pele.

6. Assim, surgiram outros questionamentos: como se produziam os sistemas de classificação racial? Como esses sistemas variavam no tempo e no espaço? Até que ponto moldaram as ações humanas? Como foram as classificações raciais influenciadas pelos conflitos e pelos interesses sociais? Como as hierarquias raciais refletiram os preconceitos e estimularam a ação discriminatória? 

7. Os judeus, por exemplo, raras vezes foram definidos pela cor da pele, e nem foram incluídos nas muitas teorias de raças desenvolvidas nos séculos XVIII e XIX. Contudo, eles foram o principal alvo de extermínio racial na Alemanha nazista. Foi por isso que Bethencourt decidiu estudar o racismo como prática de discriminação e de segregação - seu escopo extrapola os limites da história intelectual. As práticas, os estereótipos e as ideias classificatórias precisam ser compreendidos como aspectos interligados. Há que se afastar de uma perspectivas de racismo linear e cumulativo.

8. INTERPRETAÇÕES. O preconceito em relação à ascendência étnica combinado com a ação discriminatória sempre existiu em diversos períodos da história. Ele apenas recebeu um impacto crítico da estrutura científica veiculada pela teoria de raças. Os conceitos de sangue e de ascendência já desempenhavam um papel central nas formas medievais de identificação coletiva, ao passo que o moderno antagonismo étnico e racial foi, em grande medida, inspirado nos conflitos religiosos tradicionais.

9. A visão da história do racismo numa estrutura compartimentada foi questionada por Frederickson. Esse autor distingue o racismo informal, praticado pelos grupos sociais na vida cotidiana, do racismo institucional, patrocinado pelo Estado e assumindo a forma de política oficial (como no Sul dos Estados Unidos, na Alemanha e na África do Sul). O racismo institucionalizado foi destruído entre 1945 e 1994, mas o racismo informal persiste. Ainda segundo esse autor, a religião foi fundamental para a criação dos preconceitos medievais e do início da era moderna, além das ações discriminatórias. Por outro lado, a ideia de uma hierarquia natural de raças, legitimada pela ciência, influenciou as modernas ações políticas.

10. As manifestações modernas de racismo, em especial contra armênios e judeus, mostram que a separação entre hierarquias religiosas e naturais é muito menos clara do que se costuma afirmar. O racismo é relacional, colocando grupos específicos em hierarquias contextualizadas de acordo com objetivos concretos. Há que se considerar ainda o impacto do nacionalismo, um fenômeno crucial entre as décadas de 1840 e de 1940, algo que cada vez mais leva a trocas produtivas entre os historiadores do racismo e do nacionalismo. A fusão entre nacionalismo e racismo marcou o Império Russo, com progroms regulares e deportações em massa de populações étnico-religiosas durante os séculos XIX e XX; o Império Otomano, com políticas que excluíam minorias; e a Alemanha nazista, um caso extremo.

11. A abordagem imanente, que encara o racismo como parte integrante da condição humana, deve ser rejeitada por não se basear em dados científicos ou históricos. A interpretação marxista - uma atualização inteligente da noção aristotélica de escravidão natural - padece pelo seu âmbito limitado e pelo seu reduzido poder explicativo. Está exclusivamente associada às relações econômicas, e não fornece uma explicação em nível global. As abordagens políticas e sociais sugerem melhores modelos interpretativos. Os preconceitos quanto à ascendência étnica combinados com ações discriminatórias são associados a projetos políticos, mesmo que nem sempre sejam integrados e institucionalizados pelo Estado.

12. Os termos "racista" e "racismo" foram criados recentemente, em finais do século XIX e início do XX, para designar aqueles que promoviam a teoria racial combinada com a hierarquia de raças. Nas décadas de 1920 e de 1930, esses termos assumiram o sentido de hostilidade contra grupos raciais. Mais tarde, nos anos 1930 e 1950, foram cunhados, respectivamente, os antônimos "antirracista" e "antirracismo". Surgiram para manifestar o protesto político contra os preconceitos, a discriminação e a segregação raciais. A queda do Terceiro Reich, ao final da Segunda Guerra Mundial, expôs como os preconceitos raciais haviam sido transformados em ações políticas de extermínio numa escala sem precedentes. Isso favoreceu o antirracismo, que é agora a norma.

13. SEMÂNTICA. "Racismo" adquiriu de imediato um conteúdo específico, mas o significado do termo "raça" é extremamente instável. A palavra começou a ser usada na Idade Média, como sinônimo de casta, aplicada à cultura de plantas e à criação de animais. No fim do Medievo, significava linhagem nobre na Itália e na França. Durante a longa contenda ibérica entre cristãos e muçulmanos, seguida da expansão ultramarina, o termo "raça" adquiriu um sentido étnico - direcionado inicialmente aos descendentes de judeus e de muçulmanos, e depois estendido aos africanos e aos ameríndios. No século XVIII, o termo "raça" era usado na Europa para referir o sexo feminino e, de um modo geral, para indicar variedades de seres humanos. A partir de fins do século XIX, o triunfo do nacionalismo no Ocidente levou o termo "raça" a se equiparar à nação.

14. Atualmente, os cientistas contestam a base biológica da raça, pois a variação genética dentro das "raças" consideradas nos parâmetros tradicionais é maior do que entre raças distintas. Assim, "etnia" passou a ser usado de preferência por antropólogos, historiadores e outros pesquisadores. Faz-se necessário reavaliar o conceito de identidade como percepção relacional de pertencimento que afeta indivíduos, grupos e comunidades ao longo do tempo bem como nos diversos locais, num processo sistemático de construção e reconstrução. O racismo certamente exerceu um papel de destaque entre os grupos-alvo, originando relações complexas de identidades resistentes.

15. ABRANGÊNCIA. A expansão ultramarina europeia levou a uma nova geografia, a uma nova cartografia e a uma nova percepção dos povos de todo o mundo - tudo isso avaliado segundo os parâmetros e as necessidades europeias. A parte I do livro abrange o contexto histórico mais vasto da Antiguidade Clássica, das invasões bárbaras e da expansão muçulmana. A parte II analisa a visão europeia dos povos e da humanidade no início da Era Moderna. A parte III discute as sociedades coloniais desde o século XVI até o XIX. A parte IV analisa as teorias das raças, além do seu impacto nas sociedades e nas políticas dos séculos XVIII e XIX. A parte V trata do desenvolvimento das políticas raciais em países específicos (Império Otomano, Alemanha nazista, União Soviética, etc.) a partir de finais do século XIX.  

Adaptado de BETHENCOURT, Francisco. Racismos - das Cruzadas ao Século XX. Tradução de Luís Oliveira Santos e João Quina Edições. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 21-34.

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