“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos A Revolução Americana

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Detalhe da obra Washington atravessando o Delaware, 1851, óleo sobre tela de Emanuel Leutze (1816-1868). 
Localização: Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA.

1. A Revolução Americana (1775-1783) baseou-se na tradição religiosa puritana e nas ideias de John Locke. Direitos naturais, governo instituído para preservar os direitos naturais e direito à rebelião são princípios básicos que aparecem tanto no Segundo Tratado Sobre o Governo quanto no texto da Declaração de Independência. Assim, durante a Guerra Civil Americana (1861-1865), Abraham Lincoln (1809-1865) voltou os olhos para a Revolução Americana. Ele sabia que a revolução não apenas criara os Estados Unidos do ponto de vista legal, mas também produzira os grandes valores e as altas aspirações do povo americano.

2. Os mais nobres sonhos e ideais dos americanos - o compromisso com a liberdade, a constitucionalidade, o bem-estar das pessoas comuns e, sobretudo, a igualdade - são fruto dessa era revolucionária. Além disso, Lincoln percebeu que a revolução convencera os americanos de sua natureza especial, um povo cujo destino era liderar o mundo na busca por liberdade. Ainda assim, chama a atenção o conservadorismo do movimento de independência: ele buscou restaurar uma situação anterior dos americanos - a não interferência britânica em seu destino. 

3. Inicialmente, os americanos entenderam a revolução como um grandioso embate moral pela liberdade contra a crueldade da tirania britânica, cujos participantes eram heróis épicos ou rematados vilões. Mais tarde, no século XIX, a revolução perdeu o caráter eminentemente personalista para se tornar o providencial cumprimento do destino democrático do povo americano, uma investidura já reconhecível nos assentamentos coloniais do alvorecer do século XVII.  

4. Essa revolução, como a nação dela nascida, foi excepcional. Ao contrário da Revolução Francesa (1789-1799), causada por reais atos de tirania, a Revolução Americana foi entendida como um evento de uma peculiar motivação conservadora e intelectual, derivado não da opressão em si, mas de uma opressão esperada, guiado pela razão e pela devoção a princípios como "sem representatividade, nada de imposto".  

5. Com o advento da historiografia profissional, no começo do século XX, a revolução passou a ser entendida como algo maior do que uma rebelião colonial e diferente de um movimento intelectual e conservador. Para Carl Becker, a revolução não só estabeleceu as regras da casa, mas definiu quem faria valer as regras da casa. Naquele momento, ela passou a ser vista como qualquer coisa, menos um embate de ideias. A historiografia passou a enfatizar então os conflitos de classe e separatistas.

6. Em meados do século XX, uma nova geração de historiadores redescobriu o caráter constitucionalista e conservador da revolução, e atingiu alto nível de sofisticação na interpretação intelectual do período. Cumpre destacar que tanto a Declaração de Independência quanto a Constituição, elaborada em 1787, são documentos amplos e generosos. O caráter da Carta Magna visa, antes de mais nada, garantir a esfera do privado como espaço do cidadão, em detrimento da tirania externa. O traço dessa constituição que mais se opõe à tradição ibero-americana é a valorização do indivíduo e a desconfiança que se tem do poder político.

7. Em 1791, para consolidar a certeza dos termos em relação a liberdades individuais, os estados votaram e aprovaram dez emendas constitucionais. As emendas consagraram a proeminência do indivíduo sobre o Estado e se tornaram tão importantes quanto a própria Constituição. Assim, os Estados Unidos criaram a mais ampla possibilidade democrática do mundo em fins do século XVIII. Poderes equilibrados, presidentes e outros mandatários eleitos regularmente, uma Constituição com princípios de liberdade muito sólidos foram algumas das principais conquistas legais da Revolução Americana.  

8. Embora os historiadores americanos tenham divergido bastante ao longo de dois séculos, chegando a distintas interpretações, o valor da revolução raramente, talvez nunca, foi posto em questão. Hoje, entretanto, não só a revolução, mas também a nação que dela nasceu têm sido alvo de pesadas críticas. Atualmente, é moda negar qualquer acontecimento de caráter substancialmente progressista derivado da revolução. Desta forma, muitos historiadores contemporâneos estão mais propensos a apontar os fracassos do esforço revolucionário.

9. Argumenta-se, por exemplo, que a revolução não libertou os escravos, não promoveu igualdade política para as mulheres, não concedeu cidadania aos índios e não conseguiu criar um mundo econômico em que todos pudessem competir em condições de igualdade. Essas exigências anacrônicas sugerem um patamar de sucesso que jamais poderia ser alcançado por uma revolução ocorrida no século XVIII, e muito provavelmente dizem mais sobre as atitudes políticas dos historiadores do que sobre a Revolução Americana em si. 

10. A história da Revolução Americana e a da nação como um todo não devem ser interpretados sob o prisma do certo e do errado, do bom ou ruim. Sem dúvida, essa história daria um bom enredo: é, no mínimo, espetacular que 13 insignificantes colônias britânicas, empilhadas ao longo de uma estreita faixa da costa do Atlântico a quase 5 mil quilômetros de distância dos centros da civilização ocidental, terem se tornado, em menos de três décadas, uma grande república em expansão, com quase 4 milhões de cidadãos protestantes, de mente aberta e sedentos por dinheiro. 

11. Comparadas à próspera e poderosa metrópole inglesa, as Treze Colônias Inglesas da América do Norte de meados do século XVIII pareciam um lugar primitivo, atrasado, turbulento e desorganizado, sem uma aristocracia verdadeira, sem magníficos palácios ou grandes centros urbanos, ou seja, sem qualquer dos atributos do mundo civilizado. 

12. Na década de 1760, a Grã-Bretanha decidiu fazer valer, com intensidade incomum para o século anterior, seu poder sobre aquela região em franca mutação, precipitando a crise de um império cuja organização era então bastante débil. A resistência americana se transformou em rebelião, mas, enquanto os colonos ainda tentavam entender as peculiaridades da sociedade em que viviam, essa mesma rebelião passou a ser justificativa e idealização do modo de vida americano como este se desenvolvera, de maneira gradual e não intencional, durante o século e meio anterior.  

13. Repentinamente, os americanos saíram das sombras da história pra se enxergar como uma nova sociedade, que tinha em mãos todas as ferramentas para construir um futuro republicano. Nesse sentido, John Adams diria posteriormente: "a revolução estava consumada antes do início da guerra." Era a mudança "nos corações e mentes do povo." 

14. Porém, a revolução não foi um mero endosso intelectual a uma realidade social preexistente. Ela também fazia parte do grande processo transformador que conduziu os Estados Unidos à sociedade liberal e democrática do mundo moderno.   

15. As mudanças provocadas pela Revolução Americana foram notáveis e deram ao povo americano uma visão de futuro tão grandiosa e que, até então, nenhum outro grupo de pessoas tivera. Os americanos enxergaram sua nação como líder de uma revolução mundial em prol do republicanismo e da liberdade, e também como o lugar em que todas as artes e todas as ciências floresceriam.

Bibliografia consultada: 
KARNAL, Leandro. Estados Unidos, Liberdade e Cidadania. In: PINSKY, Carla B. & PINSKY, Jaime (orgs.). História da Cidadania. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 135-157.
WOOD, Gordon S. A Revolução Americana. Tradução de Michel Teixeira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 19-24.

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