“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Historiadores X Youtubers

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Capa sensacionalista do vídeo do Canal Nostalgia sobre a ditadura militar, disponível AQUI


Tempos atrás, após ser "provocado" (no bom sentido) por um amigo, fiz um post intitulado Historiadores X Jornalistas. Na semana passada, uma aluna do Ensino Médio me questionou sobre o vídeo apresentado pelo Felipe Castanhari sobre o regime militar (link acima). Com algumas adaptações, a resposta é a que se segue. Lembre-se que os mesmos conselhos e orientações sobre esse vídeo se aplicam a outros do gênero (e eu não tenho condições de avaliar a todos que estão disponíveis na internet). Portanto, mais do que uma análise preliminar desse vídeo, espero que esse texto sirva de alerta a todos que buscam informações históricas por parte de youtubers

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Assisti ao vídeo (do qual já sabia da existência, mas ainda não havia visualizado). Conheci o Canal Nostalgia há um bom tempo, e acho interessante a apresentação que faz de temas do passado. Como no caso de representações cinematográficas e de livros escritos por jornalistas, a maior contribuição dos youtubers ao conhecimento histórico talvez seja a de aguçar a curiosidade das pessoas para os temas que apresentam. No entanto, devido à falta de tempo, nunca mais visitei esse ou outros canais do gênero.

Em primeiro lugar, o Castanhari acertou ao fazer as advertências que constam no início do vídeo. Ele não é historiador, e o trabalho do seu canal trata-se de uma simples divulgação. A fim de se respaldar, ele buscou a consultoria de um professor de História, Caio Vinicius Godoy Mattos. Ora, não existe o currículo dele na plataforma Lattes (você pode consultar os currículos dos pesquisadores cadastrados AQUI). Assim, não sabemos qual é a formação do professor Caio Vinicius. Para uma consultoria dessa natureza, o ideal seria consultar não apenas um historiador, mas um especialista na história do regime militar brasileiro. Mais que isso, como se trata de um tema divisivo, o mais recomendado seria ouvir dois especialistas, de concepções teóricas divergentes.

Mais comprometedor que isso, no entanto, é a omissão das fontes e da bibliografia utilizadas como referência. O Castanhari poderia tê-lo feito no próprio vídeo, ou na descrição do mesmo. Assim, ficamos na dúvida sobre vários dados que ele apresenta, o que me impede de indicar o material para fins didáticos ou de pesquisa. Não pude checar todos os dados que ele apresenta; de qualquer modo, aos 34 min. e 52 s., ele diz que, apenas em 1970, foram feitas mais de 1200 denúncias de tortura. Ora, esse dado é claramente exagerado. Fui verificar os dados sobre denúncias no Governo Médici, e o que levantei foram 730 denúncias entre 1970 e 1973. Esse dado foi apresentado pela historiadora Heloísa Starling, integrante da Comissão da Verdade, em 2013. A informação consta no portal G1.

Não pretendo, com esse alerta, defender o regime militar. Como costumo dizer, se apenas uma pessoa tivesse sido torturada (sendo inocente ou não) ou presa injustamente, já seria abominável. No entanto, como historiador, preciso exigir rigor em relação a dados, conceitos e referenciais teóricos. Quando não historiadores se dedicam a explicar a História, a imprecisão muitas vezes é a nota dominante, o que compromete a credibilidade de tudo o que está sendo apresentado. Outro erro é o da parcialidade. Apesar de falar sobre os crimes de organizações de esquerda, e de fazer considerações de repúdio a qualquer ideologia autoritária ao final do vídeo, o Castanhari foi muito mais enfático em relação aos crimes cometidos pelos militares. Quando ele mencionou os trabalhos da Comissão da Verdade, faltou lembrar que ela própria foi parcial, ao não buscar elucidar os crimes cometidos por terroristas de esquerda (isso colocaria a então presidente, Dilma Rousseff, numa situação pra lá de constrangedora... já pensou se ela fosse convidada a depor sobre os crimes que cometeu nesse período?). 

Por fim, o excesso de palavrões e expressões chulas pronunciadas pelo Castanhari são de embrulhar o estômago. Até compreendo que ele não é professor, não está em sala de aula e pretende atingir um público jovem de forma descontraída. Mas, mesmo assim, ficou muito ruim. Há outras formas de se apresentar um tema tão relevante sem partir para a baixaria. Assim, tendo em vista todas essas questões, o ideal seria o Canal Nostalgia se concentrar no que faz de melhor: entretenimento. Que o Castanhari trate das tartarugas ninjas, e deixe a história com os historiadores.

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