“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A População do Admirável Mundo Novo

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

  

O Selvagem suspirou profundamente.

- A população está ótima - disse Mustafá Mond - obedece ao modelo do iceberg: oito nonas partes abaixo da linha de flutuação e uma nona parte acima dela.

- E são felizes os que estão abaixo da linha de flutuação?

- Mais felizes do que os que estão acima dela. Mais felizes do que os seus dois amigos aqui, por exemplo - e apontou para eles.

- Apesar daquele trabalho horrível?

- Horrível? Eles não acham. Pelo contrário, até gostam. É leve, de uma simplicidade infantil. Nenhum esforço excessivo da mente nem dos músculos. Sete horas e meia de trabalho leve, de modo algum exaustivo, e depois a ração de soma, os esportes, a cópula sem restrições e o cinema sensível. Que mais poderiam pedir? É verdade - acrescentou - que poderiam pedir uma jornada de trabalho mais curta. E, por certo, nós poderíamos concedê-la. Do ponto de vista técnico, seria perfeitamente possível reduzir a três ou quatro horas a jornada de trabalho das castas inferiores. Mas isso as faria mais felizes? Não, de modo algum. A experiência foi tentada, há mais de século e meio. Toda a Irlanda foi submetida ao regime de quatro horas de trabalho diário. Qual o resultado? Perturbações e um acréscimo considerável do consumo de soma, nada mais. Essas três horas e meia de folga suplementar estavam tão longe de ser uma fonte de felicidade, que as pessoas se viam obrigadas a gastá-las em fugas pelo soma. O Departamento de Invenções está cheio de planos destinados a economizar mão de obra. Milhares de planos - Mustafá Mond fez um gesto largo. - E por que não os executamos? Para o bem dos trabalhadores; seria pura crueldade infligir-lhes folgas excessivas. O mesmo ocorre na agricultura. Poderíamos sintetizar cada um dos nossos alimentos, se quiséssemos. Mas não o fazemos. Preferimos conservar um terço da população trabalhando na terra. Para seu próprio bem, porque é preciso mais tempo para obter alimentos tirados da terra do que para fabricá-los numa usina. Além disso, temos de pensar na nossa estabilidade. Não queremos mudar. Toda mudança é uma ameaça à estabilidade. Essa é outra razão que nos torna pouco propensos a utilizar invenções novas. Toda descoberta da ciência pura é potencialmente subversiva: até a ciência deve, às vezes, ser tratada como um inimigo possível. Sim, a própria ciência.    

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Tradução de Vidal de Oliveira. São Paulo: Globo, 2014, p. 268-269. 

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