“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Comunidade, Identidade, Estabilidade

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

 

Um edifício cinzento e atarracado, de trinta e quatro andares apenas. Acima da entrada principal, as palavras CENTRO DE INCUBAÇÃO E CONDICIONAMENTO DE LONDRES CENTRAL e, num escudo, o lema do Estado Mundial: COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE.

A enorme sala do andar térreo dava para o norte. Apesar do verão que reinava para além das vidraças, apesar do calor tropical da própria sala, a luz tênue que entrava pelas janelas era fria e crua, buscando, faminta, algum manequim coberto de roupas, algum vulto acadêmico pálido e arrepiado, mas só encontrando o vidro, o níquel e a porcelana de brilho glacial de um laboratório. À algidez hibernal respondia a algidez hibernal. As blusas dos trabalhadores eram brancas, suas mãos estavam revestidas de luvas de borracha pálida, de tonalidade cadavérica. A luz era gelada, morta, espectral. Somente dos cilindros amarelos dos microscópios vinha um pouco de substância rica e viva, que se esparramava como manteiga ao longo dos tubos reluzentes.

- E esta - disse o Diretor, abrindo a porta - é a Sala de Fecundação.

No momento em que o Diretor de Incubação e Condicionamento entrou na sala, trezentos Fecundadores, curvados sobre os seus instrumentos, estavam mergulhados naquele silêncio em que se ousa apenas respirar, naquele cantarolar ou assobiar inconsciente que traduz a mais profunda concentração. Uma turma de estudantes recém-chegados, muito jovens, rosados e inexperientes, seguia com certo nervosismo, com uma humildade um tanto abjeta, os passos do Diretor. Todos traziam cadernos de notas, em que, cada vez que o grande homem falava, rabiscavam desesperadamente. Eles bebiam ali seu saber na própria fonte. Era um privilégio raro. O D.I.C. de Londres Central sempre fazia questão de conduzir pessoalmente seus novos alunos na visita aos vários serviços e dependências.

(...)

- Ao Processo Bokanovsky - repetiu o Diretor, e os estudantes sublinharam essas palavras em seus cadernos.

Um ovo, um embrião, um adulto - é o normal. Mas um ovo bokanovskizado tem a propriedade de germinar, proliferar, dividir-se: de oito a noventa e seis germes, e cada um destes se tornará um embrião perfeitamente formado, e cada embrião, um adulto completo. Assim se consegue fazer crescer noventa e seis seres humanos em lugar de um só, como no passado. Progresso.

- A bokanovskização - disse o D.I.C., para concluir - consiste essencialmente numa série de interrupções do desenvolvimento. Nós detemos o crescimento normal e, paradoxalmente, o ovo reage germinando em múltiplos brotos.

(...)

Um dos estudantes, todavia, cometeu a tolice de perguntar em que consistia a vantagem.

- Meu bom rapaz! - o Diretor virou-se vivamente para ele. - Não vê, pois? Não vê? - Ergueu a mão; sua atitude era solene. - O Processo Bokanovsky é um dos principais instrumentos de estabilidade social!

Um dos principais instrumentos de estabilidade social.

Homens e mulheres padronizados, em grupos uniformes. Todo o pessoal de uma pequena usina constituído pelos produtos de um único ovo bokanovskizado. 

- Noventa e seis gêmeos idênticos fazendo funcionar noventa e seis máquinas idênticas! - sua voz estava quase trêmula de entusiasmo. - Sabe-se seguramente para onde se vai. Pela primeira vez na história. - Citou o lema planetário: - "Comunidade, identidade, estabilidade". - Grandes palavras. - Se pudéssemos bokanovskizar indefinidamente, todo o problema estaria resolvido.  

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Tradução de Vidal de Oliveira. São Paulo: Globo, 2014, p. 21-26.

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