“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Camponeses Medievais

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Famosa iluminura do Espelho das Virgens (séc. XIII), manuscrito destinado às freiras noviças. Essa fonte icnográfica revela o trabalho no campo, realizado, em sua maior parte, pelas próprias monjas. 
Essa e outras fontes sobre o campensinato constam em ricardocosta

1. Eram muitas as diferenças que existiam na vida agrícola e nas próprias condições ambientais do continente europeu na Idade Média. Assim, embora a grande maioria dos camponeses pertencesse a uma mesma classe de pequenos proprietários, de produtores «primários» (que podemos distinguir, por um lado, dos que procediam às colheitas tribais e dos pastores nômades e, por outro lado, dos trabalhadores assalariados e dos agricultores capitalistas e coletivistas), o perfil do homem do campo mudava de uma região para outra. 

2. As provas indiretas do aumento da população europeia a partir dos séculos X e XI são, em primeiro lugar, o aumento da população urbana e do número de cidades, o recuo das florestas, dos pântanos e dos baldios, o alargamento dos terrenos cultivados e a deslocação de camponeses, de grupos de famílias ou de comunidades inteiras para novos solos, com a fundação de igrejas e aldeias e a crescente subdivisão de casas e de famílias. Dessa heróica batalha do camponês contra a natureza omnipotente, em empreendimentos isolados ou coordenados pelos senhores — como foi o caso das cidades italianas da zona do Pó —, ficaram muitos vestígios no próprio nome de numerosas aldeias do continente: por exemplo, «vilas novas», bourgs das províncias francesas do Oeste.

3. Os camponeses europeus viviam em paisagens agrárias profundamente diferentes e, como veremos, os trabalhos a que tinham de dedicar-se durante o ano também não eram idênticos. As zonas montanhosas, dos Pirenéus ao Maciço Central, dos Alpes aos Apeninos e aos Balcãs, eram geralmente caracterizadas por áreas proporcionalmente modestas de terras cultivadas com cereais, a par de grandes extensões de bosques e de prados. Outras zonas mais baixas, pouco povoadas, pantanosas e palustres, como a Maremma ou certos terrenos da Sardenha, apresentavam um aspecto que, até certo ponto, era idêntico ao da montanha. Outras zonas, como a Meseta, a Sicília do interior e muitos terrenos da Europa central, tinham trigo e outros cereais em abundância. Pelo contrário, em outros locais, como nas colinas toscanas e em outras zonas da Itália do centro e do Norte, consolidara-se, precisamente em finais da Idade Média, uma policultura intensiva de cereais, videiras e árvores de fruto.

4. Em toda a parte, a preocupação fundamental do camponês era assegurar à sua família e aos que, eventualmente, tivessem direito à terra por ele cultivada ou aos seus produtos (senhor da terra, proprietário citadino, igreja local) a produção de cereais. Estes constituíam, em toda a parte, o ingrediente principal da alimentação humana, sobretudo das classes mais baixas. Ingrediente principal, mas não uniforme, porque era precisamente a qualidade do pão (pão branco, de mistura ou de cereais inferiores como a espelta e o sorgo) que revelava a primeira, e elementar, hierarquia entre as classes sociais. Era essa procura laboriosa do pão, visível em toda a Europa, que provocava um desejo de autossuficiência presente em todas as comunidades rurais e que também não era estranho aos proprietários citadinos e às classes mais altas da sociedade. A fragilidade da agricultura perante os caprichos da natureza e a ameaça constante da carestia, juntamente com as dificuldades de transporte dos produtos agrícolas, explicam esse comportamento.     

5. Nem todos os camponeses possuíam juntas de animais para atrelar ao arado com a mesma facilidade ou nas mesmas condições. O animal geralmente era o boi, atrelado em parelha ou em várias parelhas, nos solos mais pesados. A posse, ou não, de uma parelha ou mais de animais de tiro, constituía, muitas vezes, nas comunidades rurais, um elemento decisivo de estratificação social. Os camponeses instalados nos solos compactos e profundos da Europa ocidental e central utilizavam um arado com um jogo de rodas dianteiras, relha e aiveca, muito difundido durante a alta Idade Média. Pelo contrário, os camponeses italianos a sul dos Apeninos e os de todas as zonas secas do Mediterrâneo utilizavam ainda o antigo arado de relha simétrica, que apenas sulcava o solo, mas não revirava os torrões. Finalmente, em outras zonas, como no interior da Sicília ou na Sardenha, sobrevivia ainda o primitivo arado de prego. O sistema das rotações também diferenciava a Europa a que poderemos chamar úmida e de solos profundos da Europa de solos leves. Esta apenas conhecia a alternância entre o pousio e os cereais de inverno, ao passo que a Europa úmida alternava rotações entre cereais de inverno, cereais de primavera/leguminosas e pousio, reduzindo apenas a um terço o solo deixado em repouso.    

6. A participação das famílias camponesas no mercado parece, porém, ter sido, em geral, modesta. Mais do que fornecedores de produtos de primeira necessidade, tais como trigo e vinho, que eram, sobretudo, objeto de venda por parte dos senhores, das entidades eclesiásticas e dos maiores proprietários urbanos, os camponeses eram fornecedores, nos mercados da aldeia, ou da cidade, de animais de capoeira e de ovos, de fruta fresca e seca, de queijo e leite, de produtos da floresta e de pequenos trabalhos de artesanato. O número dos animais criados pelos camponeses sedentários era, de uma forma geral modesto, quer porque nas zonas mais desenvolvidas, como as que se situavam perto de muitas cidades da Toscânia ou da Itália setentrional, os terrenos anteriormente incultos, de utilização coletiva, tinham sido privatizados e cultivados e, paralelamente, tinha sido reduzida a liberdade de pastagem nos terrenos privatizados, quer porque, em outros locais, a supremacia dos senhores sobre as comunidades camponesas incluía também a primazia do gado pertencente ao senhor na utilização das pastagens e dos baldios. Mais do que gado vacum, o camponês criava sobretudo ovelhas, porcos e cabras.   

7. Deve acrescentar-se que todo o mundo camponês era marcado por um caráter manual que não se limitava apenas aos trabalhos propriamente agrícolas e que se estendia, sobretudo nos meses mortos de inverno, a pequenas atividades artesanais, como a confecção de cestos e a construção e reparação de alfaias. As mulheres camponesas fiavam e teciam a lã, para satisfazer as necessidades da família e, em certas regiões mais marcadas pela economia mercantil, para os comerciantes de lã das cidades. De resto, todos os membros da família, e mesmo em idade muito precoce, contribuíam para o orçamento familiar.   

8. Em boa parte do continente, o inverno era a época particularmente excitante da matança do porco, também representada nos ciclos dos meses, que documentam a profunda fusão de espiritualidade cristã e de sabor agrícola da vida medieval. A monótona rotina da vida do camponês só era interrompida pelos momentos de convívio, que consistiam na participação na missa, na ida à taberna, aos domingos (uma espécie de contra-igreja ou de «igreja do diabo» condenada, repetida mas inutilmente, pelo sínodos e pelos pregadores), na frequência dos mercados, na ida ao moinho ou à loja do ferreiro, um artesão que já existia, pode dizer-se, neste final da Idade Média, em todas as zonas rurais, se tinha difundido largamente nos campos. A esses momentos, que eram mais habituais, juntavam-se outros, mais excepcionais, e que se verificavam anualmente, como as grandes festas religiosas. 

9. A maior parte da vida social e política do camponês reduzia-se às relações que mantinha com a comunidade ou com o senhor e à ligação ou ao conflito existentes entre o senhor e a comunidade. Com efeito, a monarquia ou os poderes mais altos pareciam demasiado longínquos, embora não privados de encanto e de força coerciva. Na Europa, via de regra, a situação mais comum continuou a ser a da aldeia dominada por um senhor ou por vários. Nesses locais, as terras eram esquematicamente divididas em três grandes porções: a primeira, diretamente explorada pelo senhor local, a segunda, fraccionada em concessões familiares, hereditárias formalmente ou de fato, e a terceira, constituída por florestas e baldios de utilização colectiva. 

10. As relações entre o camponês e o senhor baseavam-se, de facto, não num mero condicionamento econômico por parte de um proprietário fundiário, a que fosse possível responder com o condicionamento da força de trabalho necessária para o cultivo da terra, por parte dos camponeses, mas num condicionamento de natureza política. Na verdade, o senhor era detentor de poderes, mais ou menos vastos, de carácter militar, territorial e jurisdicional. Cada senhor julgava, localmente, os habitantes da aldeia, pelo menos no que respeitava à baixa justiça, ficando para os grandes senhores ou para a Monarquia, o «direito do sangue» ou alta justiça. Mas, na Europa, não faltavam os casos de senhores locais que também podiam condenar à morte ou exercer castigos corporais, como aconteceu, por exemplo, com muitos senhores da Itália central e setentrional.  

11. No que diz respeito à função militar dos senhores e no seu profissionalismo de homens de armas, o que os camponeses apreciavam, em primeiro lugar, era o seu aspecto defensivo e de proteção. O «encastelamento», ou seja, a fortificação de aldeias ou de aglomerados menores já existentes ou a constituição de novos aglomerados cercados por muralhas, tal como se verificou, por exemplo, em Itália, nos séculos XI e XII, com as hierarquias político-territoriais que esse fato criou, foi certamente entendido pelas pessoas do campo sobretudo como possibilidade de defesa e de refúgio contra os perigos externos que ameaçavam as suas pessoas, as suas famílias, as colheitas, os bens e os animais.  

12. Se a colaboração entre a comunidade rural e o senhor era, localmente, indispensável, o conflito de interesses também era inevitável. O conflito assumia, mais frequentemente, formas de resistência silenciosa ou de acordo, mas, por vezes, explodia em revolta declarada, quando os interesses dos camponeses eram comuns e surgiam chefes mais capazes, podendo chegar mesmo a assumir formas de rebelião regional ou supra-regional. No final da Idade Média, as expressões mais amplas, apesar de complexas e de forma alguma redutíveis apenas ao descontentamento da gente dos campos, aconteceram na França (a Jacquerie, em 1358), e, na Inglaterra (a grande revolta camponesa de 1381, durante a qual os revoltosos não só se apoderaram de Londres, como tiveram também nas mãos, ainda que por um curto espaço de tempo, o jovem soberano).

13. O camponês de finais da Idade Média passou a pressionar mais por sua liberdade individual, o que muitas vezes incluía a conquista de um direito mais alargado de vender, adquirir ou deixar a terra por herança. O camponês também tinha, por vezes, possibilidade de fazer economias, graças à venda nas cidades — que tinham evoluído — e nos mercados rurais que haviam se desenvolvido. Esses êxitos introduziam nas comunidades uma possibilidade crescente de diferenciação social. Essa diferenciação, de que há documentos um pouco por toda a parte, embora não tivesse a mesma intensidade em todas as regiões, era fomentada por uma série de fatores particulares, tais como o exercício, por parte do camponês, de certas funções que lhe eram atribuídas pelo senhor (caso muito documentado, que concedia possibilidades, legítimas ou não, de fazer fortuna) ou a prática da usura.   

14. Em finais do século XV, se houve uma recuperação demográfica, houve, também no Ocidente, uma recuperação senhorial. E a Itália central e setentrional, que tinha representado, no século anterior, o pólo do máximo desenvolvimento econômico e social do continente, foi também atingida. Em Inglaterra, essa recuperação caracterizou-se, sobretudo, pelo fenômeno das enclosures. Os senhores apoderaram-se dos campos da comunidade tradicionalmente cultivados com cereais e das terras de uso colectivo onde, durante séculos, tinha pastado o gado dos camponeses e alugaram-nos a mercadores de lã ou de gado para pasto dos ovinos.

15. O analfabetismo das camadas rurais, embora generalizado, comportava algumas exceções, especialmente nos territórios economicamente mais desenvolvidos e dominados pelas cidades, tais como certas zonas da Toscânia, onde qualquer camponês mais rico, qualquer pequeno proprietário, instruído pelo pároco da aldeia, era capaz de escrever ou, pelo menos, de ler. Muitas das crenças camponesas tinham as suas raízes na época pré-cristã ou em domínios não-cristãos. A Igreja teve de assimilar, sobretudo ao nível paroquial, muitos ritos propiciatórios, práticas animistas, formas de magia simpática. A própria ligação que o camponês mantinha com os santos era francamente contratual, ou seja, de teor mágico: as ofertas eram feitas para garantir uma boa colheita ou a clemência do céu ou a saúde dos homens e dos animais. 

16. A igreja e o cemitério vizinho alimentavam a memória colectiva da comunidade. Os sinos não chamavam apenas à oração, davam também as horas visto que os camponeses não utilizavam ainda o novo «tempo do mercador» — e serviam igualmente para combater os temporais, para manter os lobos longe da aldeia, davam o sinal de incêndio e anunciavam os perigos da guerra. A participação na vida da paróquia, tal como a participação na vida civil da comunidade, constituía, por assim dizer, uma educação política do camponês. 

17. Para as camadas camponesas, a idade do ouro era sempre mais procurada no imaginário de um passado do que num futuro vago e indeterminável; neste aspecto, a sensibilidade camponesa associava-se a uma convicção mais geral de que o mundo tinha vindo a piorar e a decair no decorrer dos séculos. O conflito, surdo ou manifesto, entre senhores e camponeses, assumia, para estes, sob uma roupagem cristã, o aspecto de uma luta pela liberdade. 

18. À aversão dos camponeses aos senhores aliou-se, a partir de certa altura e com uma intensidade variável de um extremo ao outro do continente, a aversão às camadas burguesas e aos citadinos em geral. Os camponeses censuravam a cidade pela sua fiscalidade, pela sua política anonária, que prejudicava o campo, pela atitude de desprezo dos seus habitantes para com as pessoas do campo, e censuravam, em especial, os proprietários da terra pela sua insensibilidade em relação à pobreza e às canseiras do camponês.
  
Bibliografia consultada: CHERUBINI, Giovanni. O camponês e o trabalho no campo. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 81-95. 

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