segunda-feira, 24 de setembro de 2018
Dois templários sobre o mesmo cavalo, simbolizando a união e a entrega. Chronica Majorca (c. 1215) Matthew Paris, MS 26, f. 220. In: BARBER, Malcom. The Trial of the Templars. London: The Folio Society, 2003, p. 31.
Disponível em ricardocosta.
1. A partir da segunda metade do séc. IX, a vida na Europa tornou-se dura e perigosa; sobreviver constituía, por si só, uma preocupação constante e um desejo obsessivo. As incursões dos vikings, dos magiares e dos sarracenos arrasaram as costas e fustigaram o interior da Europa mediterrânica oriental. As lutas contínuas entre as aristocracias agravou o quadro, e o continente encheu-se de castelos. Foi nesse contexto, mais precisamente no séc. X, que uma grande revolução praticamente eliminou a velha distinção da sociedade entre liberi (livres) e servi (escravos). Em seu lugar, despontou uma distinção, mais prática e significativa, entre milites (guerreiros) e rustici (camponeses).
2. A partir do séc. VIII, a tendência para a especialização da profissão das armas e, em seguida, para a desmilitarização geral das sociedades romano-bárbaras fez com que as tradições antigas se mantivessem apenas nos grupos de elite que eram as companhias de soldados agrupadas em torno de príncipes; e a entrega solene das armas tornou-se mesmo patrimônio dos rituais que assinalavam o acesso dos jovens príncipes ao mundo do poder. Entre os séculos X e XI, o profissional da guerra era, portanto, e em geral, o membro de uma comitiva comandada por um grande senhor ou chamada a defender a sua morada.
3. Os recontros entre os grandes detentores de domínios feudais, cada um deles dotado de escoltas armadas, tornou-se o elemento característico da vida dos séculos X e XI, ou seja, do período correspondente à pulverização dos poderes públicos e à chamada «anarquia feudal». É a época em que os soldados são, acima de tudo, tyranni, praedones, e em que as suas violências contra pessoas indefesas e, em geral, contra todos aqueles que a Igreja define como pauperes (os próprios clérigos, as viúvas, os órfãos e, em geral, os incapazes de se defenderem e os que não dispõem de nenhuma forma de tutela) são denunciadas cada vez com mais frequência, especialmente pelas fontes episcopais.
4. Os chefes das dioceses, logo apoiados por aristocratas e outros, todos preocupados com a violência crônica que impedia que se iniciasse ou retomasse o comércio e a vida econômica que deram início ao movimento da pax e da tregua Dei. Santuários, hospícios, baixios e estradas foram colocados sob uma tutela especial (pax), e qualquer um que começasse um ato de violência nesses locais estava sujeito à excomunhão. A mesma salvaguarda se estendeu aos pauperes. Se o homicídio continuava a ser um pecado mortal, a tregua Dei fazia com que o assassínio cometido entre a tarde de quinta-feira e a de domingo, implicasse excomunhão.
5. Esse movimento ocorreu paralelamente a uma fase de vigorosa expansão nas empresas militares contra o Islã, tanto no mar quanto na Espanha (mediante a Reconquista). No plano da tradição cultural, a consequência dessa tensão e desses recontros foi a epopeia cristã-nacional do Cantar de mio Cid, mas também a profusão de poemas épicos e de lendas em que a fé cristã e o sentido do milagre, apoiado no relato de frequentes aparições e no culto das relíquias e de santuários, se traduziram num «cristianismo de guerra» muito original, que coincidiu com a exaltação da espiritualidade cristã com a glória militar e mostrou, com frequência, a Virgem e S. Tiago, juntamente com os «santos militares» S. Jorge, S. Teodoro, Martinho e outros, em plena batalha, entre estandartes brancos. Em certos relatos referentes à conquista normanda da Sicília, nos textos que narram a gesta dos marinheiros pisanos no assalto de Al-Mahdiad, em 1087, ou, 25 anos mais tarde, das Baleares, ou no texto mais famoso da poesia épica ocidental da época, a Chanson de Roland, respira-se um clima análogo.
6. As chansons são, sem dúvida, uma enorme janela aberta para a mentalidade das cortes e dos mercados, dos cavaleiros e dos leigos de classe inferior que se deliciavam com a narração das gestas cavaleirescas. Por outro lado, convém não interpretar mal o seu espírito cristão, apesar de ardente e sincero, entendendo-o como resultado de uma teologização do espírito militar por parte da Igreja. Não só em muitíssimos episódios — como, por exemplo, nas cenas de baptismo forçado dos sarracenos —, mas, mais em geral, no espírito que anima essa literatura, o tipo de cristianismo proposto é, explicitamente, leigo e muitas vezes folclórico, com frequência irreverente e outras vezes reivindicativo de uma sacralidade específica da profissão de cavaleiro, diferente e, talvez, melhor e mais grata ao Senhor do que a exercida pelos padres. Parece ser esse o clima que anima, por exemplo, cenas como aquelas — bastante frequentes — em que os cavaleiros, à beira da morte, se confessam e se absolvem uns aos outros.
7. Os laços entre as livres e talvez espontâneas confrarias de «cavaleiros pobres» da época das «ligas da paz» e da questão das investiduras e as ordens religiosas-militares, são evidentes a partir da confraria criada por Hughes de Payns, que, originariamente, parece ter assumido a denominação de pauperes milites Christi, consagrando-se à defesa do Santo Sepulcro. No entanto, em 1128, passou de fraternitas a autêntica religio, a Ordem. Como, entretanto, Balduíno II, rei de Jerusalém, tinha permitido que esses cavaleiros se alojassem no recinto do Haram esh-Sharif, junto das duas mesquitas da Cúpula do Rochedo e de Al-Aqsa (que, para os cruzados eram, respectivamente, o Templum Domini e o Templo de Salomão), a Ordem adotou o nome de «Templária», que conservaria até 1312, ano da sua dissolução por vontade do papa Clemente V, em consequência de uma série de escândalos em que essa Ordem esteve envolvida, sobretudo devido às enormes riquezas que acumulara e que eram cobiçadas pelo rei francês Filipe IV.
8. A Ordem do Templo é apenas uma das muitas ordens religiosas-militares fundadas, durante o séc. XII, na Terra Santa e na Península Ibérica e, mais tarde, também no Nordeste europeu (onde teriam tido a missão de conquistar e colonizar o mundo eslavo e báltico). Outras dignas de ser lembradas são a dos Hospitalários de S. João de Jerusalém (a partir do séc. XV, «de Rodes» e, a partir do séc. XVI, «de Malta») e de Santa Maria, denominada «Teutônica». Posteriormente, elas acabaram por se difundir um pouco por toda a Europa, não só graças às conversões de membros da aristocracia militar que, atraídos pela sua fama de austeridade e de ascética coragem, acorreram às suas fileiras, mas também devido ao seu sucesso inicial e às doações que lhes eram concedidas. A fama de avidez, de violência e de corrupção que algumas delas adquiriram e em que nem sempre é fácil distinguir a relação com a realidade histórica da propaganda interessada de forças contrárias, nada retira ao significado original da sua experiência.
9. A recuperação de temas de carácter místico-sagrado por parte de autores leigos ou em textos destinados a leigos era nítida, no decorrer do século XII e, depois, em parte do século XIII, enquanto as cerimônias do revestir da armadura — que, apesar de alguns esforços nesse sentido, nunca tinham assumido um caráter verdadeiramente sacramental e nunca tinham sido celebradas nem na Igreja, nem na presença de religiosos (apesar de, em finais do século XIII, o Pontifical de Guilherme Durand fornecer uma sistematização litúrgica desses ritos) — foram adquirindo formas cada vez mais análogas às dos sacramentos e, em especial, do batismo.
10. O elemento ativo da pequena aristocracia europeia dos séculos XII e XIII — sobretudo francesa, mas também, imitando o modelo francês, anglo-normanda, alemã, espanhola e italiana — era constituído pelos iuvenes, ou seja, pelos cavaleiros recentemente «sagrados», que tinham acabado de receber as armas durante a cerimônia do revestir da armadura e que abandonavam, agrupados em companhias mais ou menos numerosas, o seu ambiente normal. Eles perseguiam sonhos, talvez, mas sobretudo ideais, sempre muito concretos, mas nem sempre alcançados, de segurança e de prestígio social. O seu objetivo máximo era um bom casamento, se possível com uma dama de condição mais elevada e de maiores capacidades econômicas.
11. Os séculos XII e XIII, que, tradicionalmente, costumam ser apontados como o auge da época equestre na nossa Idade Média, assinalaram, sem qualquer dúvida, uma espécie de vitória da cavalaria. Poetas, tratadistas e até teólogos e hagiógrafos não falavam de outra coisa; cronistas e pintores refletiram constantemente o esplendor das cerimônias do revestir da armadura; a alta aristocracia e mesmo o rei abandonaram os seus títulos gloriosos para se ornarem simplesmente — e foi o caso de todos os grandes monarcas da época, desde Ricardo Coração de Leão a S. Luís — com o título de cavaleiro; aliás, é a isso que aspiravam intensamente as classes ascendentes, os novos ricos das sociedades urbanas, a «gente nova».
12. Os cantares e os romances cavaleirescos sofrem profundamente o fascínio dessa Ásia e propagam também, a nível popular, as lendas do Paraíso Terrestre, do reino do Prestes João, dos países das Amazonas, do império secreto e terrível do Velho da Montanha, chefe da Seita dos Assassinos. A atração pelas terras longínquas e pelos seus costumes, que teve um peso tão decisivo na cultura europeia, entre os séculos XVIII-XIX, e que deu lugar ao exotismo que se adequou aliás às conquistas coloniais, tem as suas raízes, precisamente, na literatura cavaleiresca medieval. Esta, por sua vez, buscou os seus conteúdos à literatura geográfica antiga e à espiritualidade cruzada (e que confinou, por isso, com o espírito missionário que, sob outros aspectos, se afigurou longínquo e estranho a essa espiritualidade), mas que, simultaneamente, não ficou indiferente às vozes provenientes dos inúmeros testemunhos dos viajantes e, até, dos missionários.
13. A moda do torneio (batalha simulada), desconhecida até finais do séc. XI, surgiu repentinamente em princípios do séc. XII: desconhecido nas chansons mais antigas, o torneio abunda na literatura cavaleiresca posterior, com as nuvens de poeira levantadas pelos cascos dos cavalos, os gritos dos participantes, os incitamentos do público, os apelos dos arautos e o fragor das armas que se chocam e das lanças que voam em pedaços em direção ao céu. A simbologia heráldica propaga-se rapidamente, a partir de então, certamente para distinguir os vários campeões no meio da mêlée. E gerações inteiras de cavaleiros são dizimadas — concorrendo, assim, para evitar a pulverização das heranças e, por conseguinte, para conservar sólidas as linhagens e as suas fortunas — pela morte em torneio, talvez mais do que pela morte em combate. De fato, em combate, os cavaleiros não pretendiam matar-se uns aos outros, mas aprisionar o inimigo para depois o poderem resgatar; em compensação, os acidentes mortais, no decorrer de um torneio ou de uma justa, eram extraordinariamente numerosos, bem como os graves efeitos das quedas desastrosas, quando o guerreiro desabava sob o peso das suas armas de ferro.
14. Os cavaleiros, os trovadores, os arautos e os jograis que giravam à volta dos
torneios não se cansavam de os elogiar como escolas de coragem e de lealdade. Chegavam mesmo a apresentá-los como espelho de valores cristãos, oportunidade
de adestramento para a guerra e ocasião para se combinar expedições ao ultramar.
De fato, era, por vezes, durante um torneio ou no seu final que muitos cavaleiros
faziam voto de partir para a guerra contra os infiéis. Esses votos (de inspiração,
por vezes, devota e, outras vezes, erótica ou mera ostentação de valentia) eram caros
à tradição cavaleiresca. A Igreja, porém, durante muito tempo revelou-se pouco
indulgente a respeito dos torneios. No séc. XIII, Jacques de Vitry demonstrou como, num torneio, se cometiam os sete pecados mortais.
15. Os soberanos dos nascentes estados unidos europeus reagiram à crise da sociedade cavaleiresca a dois níveis distintos: conseguiram ir privando, progressivamente, a baixa nobreza (e, onde e quando puderam, também a alta nobreza) dos seus poderes e das suas prerrogativas jurídicas e sociopolíticas, num processo longo e não desprovido de períodos de estagnação e de ocasionais inversões de tendência (como a célebre «refeudalização» da época protomoderna), mas, essencialmente, bastante coerente; criaram para a nobreza, no sentido de melhor a ligarem a eles, uma série de «ordens de corte» copiadas das ordens militares religiosas e dos modelos propostos pela literatura cavaleiresca (o mais típico dos quais era, naturalmente, a Távola Redonda), das fantasiosas e imaginárias cerimónias, das faustosas insígnias, das vestes luxuosas, mas privadas de um significado que não estivesse ligado à corte.
Bibliografia consultada: CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 54-78.
15. Os soberanos dos nascentes estados unidos europeus reagiram à crise da sociedade cavaleiresca a dois níveis distintos: conseguiram ir privando, progressivamente, a baixa nobreza (e, onde e quando puderam, também a alta nobreza) dos seus poderes e das suas prerrogativas jurídicas e sociopolíticas, num processo longo e não desprovido de períodos de estagnação e de ocasionais inversões de tendência (como a célebre «refeudalização» da época protomoderna), mas, essencialmente, bastante coerente; criaram para a nobreza, no sentido de melhor a ligarem a eles, uma série de «ordens de corte» copiadas das ordens militares religiosas e dos modelos propostos pela literatura cavaleiresca (o mais típico dos quais era, naturalmente, a Távola Redonda), das fantasiosas e imaginárias cerimónias, das faustosas insígnias, das vestes luxuosas, mas privadas de um significado que não estivesse ligado à corte.
Bibliografia consultada: CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 54-78.
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