“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos Monges Medievais

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Imagem do final do século XII de um monge copista, possivelmente representando o Venerável Beda (c. 673-735). Yates Thompson MS 26, f. 2r.

1. Na atualidade, desapareceram quase completamente as multidões de solitários - os "eremitas" - que à margem do mundo monástico institucionalizado, sepultavam-se aos ermos campestres e nos bosques para reaparecerem, periodicamente, entre os homens, evocando com as suas figuras selvagens a ameaça da morte e a urgência da conversão. Mesmo os mosteiros e os priorados, contados aos milhares na Europa do século XII, estão reduzidos a poucas centenas em todo o mundo. 

2. Na autoconfiança que emergiu gradualmente da cultura monástica, antiga e medieval, e que foi cada vez mais reforçada por um largo consenso político e social, os únicos cristãos verdadeiros eram os monges. 

Ainda nos séculos IV e V, com o surgimento das primeiras e tumultuosas experiências anacoréticas e com a constituição dos primeiros modelos de biografias monásticas largamente exportados (sobretudo, a Vita S. Antonii, de Atanásio) que esboçou-se a relação entre a figura do monge, a "santidade" pessoal" e a fruição de poderes carismáticos e sobrenaturais. Isso veio a ser um elemento fundamental da religião medieval e da relação entre o mosteiro e a sociedade.  

3. Entre os séculos X e XI, o processo de redução do cristianismo autêntico à vida monástica atingiu a sua expressão máxima e, até certo ponto, definitiva. A memória desses tempos chegou-nos, sobretudo, através das vozes de monges - ou de sacerdotes profundamente influenciados pelos monges. Rastrear as origens desse modo de vida é, ao mesmo tempo, um desafio e uma necessidade para se compreender o desenvolvimento da sociedade monástica. 

4. A maneira de viver dos primeiros monges tem as suas origens na época da pregação apostólica. Os cristãos primitivos, segundo o livro de Atos dos Apóstolos, tinham tudo em comum. Contudo, após a morte dos apóstolos, o fervor da multidão dos crentes começou a esfriar e, alguns, achavam que não haveria prejuízo algum em conservarem seu patrimônio, professando ao mesmo tempo a sua fé em Cristo. No entanto, entre aqueles em quem o fervor apostólico se mantinha vivo, abandonaram as cidades e fixaram-se nos subúrbios e locais mais isolados, começando a praticar, particularmente, as regras que tinham sido estabelecidas pelos apóstolos para todo o corpo da Igreja.    

5. Pouco a pouco, separados da massa dos crentes e, pelo fato de se absterem do matrimônio e de se manterem afastados dos parentes e da vida deste mundo, foram chamados monachi. Suas comunidades foram chamadas posteriormente de cenobitas. Este foi o único e mais antigo tipo de monges.  

6. A vivência livre de Deus dispunha-se segundo as linhas sapientes de um método, colocado sob a direção e a vigilância de um superior hierárquico, ao passo que a renúncia ao mundo e a luta contra as suas seduções e contra as tendências pessoais passavam necessariamente pela renúncia e pelo abandono da vontade própria. A opção monástica, enquanto atuação individual da vida cristã e, por isso, confirmação e concretização das promessas do batismo, transformou-se, em certa medida, num ponto de chegada, no estádio em que a maioria dos monges deveria e poderia fixar-se, em relação à escala ininterrupta da árdua e solitária ascese em direção ao divino, que era o privilégio de poucas experiências de exceção.  

7. Entre os séculos V e VI, floresceram novas fundações monásticas, o que sem dúvida foi favorecido pelas condições cada vez mais precárias da vida civil. O monge não era, então, apenas uma alma em busca de Deus na oração e na solidão, mas também um homem que necessitava de tranquilidade e de paz, num mundo cada vez mais hostil e difícil. Os impulsos que deram origem às primeiras comunidades de mulheres eram, em grande medida, semelhantes.

Cassiodoro, ministro e conselheiro do rei godo na Itália, Teodorico, o Grande (séc. VI), pretendeu fazer da comunidade monástica de Vivarium um centro de conservação e de transmissão da cultura clássica, ainda que em função da sua recuperação e da sua integração na tradição cristã. O ambicioso projeto, no entanto, não resistiu à desagregação e à ruína das estruturas civis posteriores à invasão lombarda. 

8. Nesse mesmo período (séculos V-VI), apesar da variedade das orientações ascéticas e das tradições de espiritualidade, existiam alguns aspectos de fundo que se configuraram como amplamente comuns. Assim, a tendência era fazer do mosteiro um mundo à parte, autossuficiente e perfeitamente organizado em todos os aspectos: um centro de oração, de trabalho e também de cultura. O mosteiro era, portanto, uma ilha no interior de uma sociedade que se prefere ignorar, a não ser naquilo em que é necessário para o bem-estar espiritual e material dos monges e apenas na medida em que o é; daí, a tradicional obrigação da hospitalidade e a assistência concedida aos pobres. Nessa mesma época, as regras monásticas geralmente limitavam-se a recomendar ao monge que renunciasse a qualquer forma de propriedade privada, sem que isso implicasse a exclusão da propriedade coletiva. 

9. A partir dos séculos VI e VII, reis e poderosos da Europa deram um excepcional impulso às fundações monásticas. Nessa mesma época (e até o século VIII), as missões de monges irlandeses e anglo-saxônicos invadiram o continente, com um notável suporte local por parte dos soberanos - francos, sobretudo - e de Roma. Em pouco mais de século e meio, desde Columbano a Bonifácio, as fundações sofreram um incremento excepcional. Luxeuii (590), Bóbio (613), Saint-Denis (650), Jumièges (654), S. Vicente de Volturno (703-708), Reichenau (724), Fulda (741), Saint Gall (750) são nomes famosos que não devem, porém, fazer esquecer o fato de os mosteiros se contarem já por centenas. Essa primeira grande vaga monástica alcançou seu apogeu nos anos da hegemonia carolíngia.

10. As regras dos mosteiros normalmente previam, para todos os monges, a obrigação de aprenderem a ler (pelo menos até aos 50 anos de idade; cf. a Regula magistri). Isso colocava o monge num nível de instrução que já não correspondia ao nível comum. Essa obrigação estava estreitamente ligada à vida religiosa do monge - as regras da tradição ocidental estipulavam, geralmente, duas a três horas para as leituras espirituais. A leitura também era a premissa necessária para a meditatio, a repetição oral de textos bíblicos aprendidos de cor. Esse contexto exigia que o mosteiro dispusesse de biblioteca, escola, scriptorium. Tais instrumentos o transformavam, naturalmente, num local único e culturalmente privilegiado. 

11. A perpetuação dos cultos antigos, dos lugares tornados sagrados devido a túmulos e a sinais, símbolos e objetos carismáticos, cruzava-se e enriquecia-se com cultos e lugares novos, prolongando-se na realidade viva dos cenóbios, que não apenas guardavam os túmulos, as "relíquias" e as memórias dos santos fundadores, como eram igualmente centros de vida santa. Por conseguinte, ensejavam benefícios, graças e esperança de alívio e de salvação, para quem estivesse em contato com eles. Os mosteiros tornaram-se lugares de veneração, que se revelavam terríveis para os seus profanadores, mas que eram garantia e promessa de orações e de graças para seus benfeitores. Inspirados no apelo de Paulo para que se socorresse materialmente a comunidade dos "santos" de Jerusalém (Rm 15:25-27), indivíduos empenhavam-se em manter, com ofertas e doações de bens, as comunidades monásticas, como meio de compartilhar, em certa medida, dos seus méritos e de se beneficiar com as suas graças.   

12. As invasões dos sarracenos (século VIII), bem como as dos magiares e dos normandos (século IX) assolaram diversos mosteiros, rompendo e destruindo, em muitos casos, a continuidade das fundações e obrigando as gerações posteriores a recomeçarem, em certa medida, do zero num quadro de desolação e ruína. Isso, contudo, não interrompeu a continuidade da memória e da lógica que favoreciam, apoiavam e orientavam as fundações monásticas. A partir do século X, começou a recuperação monástica, primeiro lentamente, e depois de forma cada vez mais acelerada. Reis e grandes senhores, principalmente, apostaram nos mosteiros como centros religiosos de oração, herdades agrícolas e locais de expansão e reforço político no território.  

13. O monaquismo reformado, no entanto, logo se viu na necessidade de se defender das intromissões e da ambição dos poderes locais. Isso provocou um movimento de concentração e de associação. Pouco a pouco, os mosteiros deixaram de ser centros isolados, submetidos à jurisdição do respectivo bispo diocesano e às prepotências senhoriais, quer eclesiásticas quer leigas. Tenderam a congregar-se em torno de um único centro, organizando-se em grandes congregações que ambicionavam obter de Roma a isenção da jurisdição do prelado local. Um exemplo notório é Cluny, fundado em 910 pelo abade Bernon com o apoio de Guilherme de Aquitânia. Entre os séculos XI e XII, havia se tornado a congregação religiosa mais importante e autorizada da cristandade.

14. Em torno dos mosteiros, como em círculos concêntricos, eram acolhidos, em condições e a níveis diferentes, todos aqueles que têm uma determinada relação com ele. Para as pessoas de condição humilde ou que se encontravam em dificuldades devido a situações de autonomia e de subsistência precárias, quando não se limitavam a pedir, mais ou menos irregularmente, assistência ou asilo, a solução era "dar-se" ao mosteiro, muitas vezes oferecendo-se a si próprios, a sua roupa ou a sua pequena terra, em troca de proteção, ajuda e orações. 

Obra de mediação, de pacificação, de orientação, são portanto características fundamentais da presença monástica em relação aos poderes seculares, como a tentar exprimir, mesmo para além da ilha do claustro, essa realidade de paz e comunhão fraterna e ordenada que continua a ser um dos seus valores mais tenazmente ambicionados. 

15. A opção monástica era também uma opção de cultura e de conhecimentos; para os filhos da nobreza, representava a única alternativa real à profissão das armas. Não foi por acaso, portanto, que todas, ou quase todas, as biografias monásticas destes séculos revelam a repugnância do próprio herói pelos exercícios e pelas violências cavaleirescas e a sua irresistível vocação pela literatura, a meditação e a oração. A vocação para a santidade acompanhava a par e passo a vocação para a cultura.

Bibliografia consultada: MICCOLI, Giovanni. Os monges. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 33-54. 

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