“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos Aspectos da Baixa Idade Média

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

O ataque ao Castelo do Amor, de um romance do século XV chamado Champion des dames. Créditos: Mary Evans Picture Library. 

[Este post é uma continuação de Um Panorama do Mundo Medieval

1. Simultaneamente à grande revitalização econômica, houve uma revitalização espiritual e intelectual. Surgiram empreendimentos intelectuais monumentais, inclusive o de reunir, organizar e harmonizar o legado cristão romano em matéria de escrituras, teologia e jurisprudência. Assim, surgiu uma nova casta de profissionais - os legistas, que saíam das universidades para ingressar nas burocracias das monarquias nacionais emergentes e do papado. Graças à nova ênfase na argumentação, na razão e na lógica, um dos temas centrais do pensamento medieval passou a ser a procura da satisfação pessoal e individual.

2. Poucos aspectos da fé permaneceram imunes ao processo de individualização. Por exemplo, a confissão pública, formal e essencialmente forense que ocorria durante os grandes festivais quaresmais da Igreja aos poucos cedeu lugar à confissão privada, e a penitência era negociada com o padre e realizada em ambiente privado.   

3. O individualismo é uma característica que define a forma artística chave do período central da Idade Média - o romance de cavalaria, que suplantou o épico. O século XII também foi a época de ouro da sátira medieval, atacando a corrupção e os abusos. Outra forma de questionamento da ordem estabelecida e da autoridade foi o desenvolvimento do conceito de cidadão, um indivíduo com direitos e deveres, em oposição ao súdito.   

4. Esse individualismo proeminente e recente alimentou as duas características dominantes e definidoras dos séculos XII e XIII: avareza, o hábito de desejar mais e mais dinheiro, e ambição, o hábito de desejar mais e mais poder. No século XIII, a ambição tornou-se, pela primeira vez, um tema nos sermões dos pregadores.    

5. A sociedade medieval, no entanto, continuou a ser fortemente marcada pelo caráter comunitário. O que mudou? Na maioria das organizações comunitárias (confrarias e corporações, ordens de cavalaria, comunas urbanas, etc.) a condição de membro passou a ser obtida através da livre escolha individual e, pela primeira vez, havia ampla variedade de opções a serem escolhidas. 

6. Para a Igreja, a heresia foi o "subproduto" menos desejável desta onda de sentimento religioso e de individualismo. A heresia surgiu em todos os níveis da sociedade e pode ser vista como uma resposta aos principais desenvolvimentos daquela era. O movimento de reforma eclesiástica projetara nova luz sobre as inadequações do estabelecimento clerical existente, permeado de simonia (venda de serviços religiosos), nicolaísmo (casamento de clérigos) e investidura leiga. Assim, a reação de setores significativos da população foi rejeitar o materialismo e buscar a austeridade pessoal, e contornar o estabelecimento clerical existente, entrando num relacionamento direto e pessoal com Deus.

7. Os intelectuais frequentemente compartilhavam as aspirações e princípios que tinham expressão mais populista no seio da sociedade em geral. A reação da Igreja não tardou - o Quarto Concílio Lateranense (1215) deu ênfase à reforma do clero, à eliminação da heresia e à cruzada contra os infiéis. Os hereges deveriam ser excomungados e entregues ao poder secular para punição, e suas propriedades deveriam ser confiscadas. Uma indulgência de cruzada era concedida a qualquer leigo que pegasse em armas para extirpar hereges.  

8. Além disso, a partir de 1215, judeus, muçulmanos e prostituas foram obrigados a usar roupas distintivas e as punições aos homossexuais foram reforçadas (sobre isso, clique aqui e aqui). Finalmente, o concílio supracitado institucionalizou os processos de inquisição. Com o sistema inquisitorial, alterou-se a natureza do crime - ele não era mais visto como uma ofensa contra um indivíduo, mas contra a sociedade. 

9. As vantagens do sistema da inquisição tornaram-se claras para as autoridades seculares na Itália, Espanha e França, onde foi introduzido. Por outro lado, ele nunca chegou à Inglaterra, onde prevaleceu o sistema de júri. Da segunda metade do século XIII até o final do século XVIII, a tortura fez parte dos processos criminais ordinários da Igreja e da maioria dos Estados da Europa. O clero, os nobres, as crianças e as grávidas estavam isentos da tortura, e o papa Inocêncio IV só autorizou sua aplicação no caso de não causar mutilação, derramamento de sangue ou morte.  

10. A ascensão das cidades chamou a atenção para os problemas de saúde e higiene (leprosos), moralidade pública (prostitutas e homossexuais), competição econômica (os judeus) e uniformidade religiosa (judeus, hereges e bruxos), cada um dos quais significativos, quer para as autoridades, quer para o público, ou para ambos.  

11. A Peste Negra (ou peste bubônica, pneumônica e septicêmica) devastou a Europa entre 1347-1349. Em 1361-1362, uma segunda peste atacou e, em 1369, uma terceira. Antes disso, entre 1250 e 1300, anunciou-se uma "Pequena Era Glacial". Entre 1315-1317, houve uma séria fome coletiva, a qual começou com uma chuva torrencial e prolongada que arruinou a colheita em 1315. 

12. Os efeitos da pestilência foram agravados pelas consequências da guerra, especialmente a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Uma grave escassez de mão de obra implicou o aumento vertiginoso dos custos do trabalho. Vinte universidades desapareceram entre 1350 e 1400. A crise na atividade intelectual apressou o crescimento das línguas vernáculas em substituição do latim como a língua do governo e dos negócios oficiais.  

13. Poucas rebeliões haviam ocorrido até o final do século XIII, mas muitas viriam a acontecer nos anos que se seguiram à Peste Negra, à medida que se agudizava o conflito de classes. Assim, a mudança e a crise levaram a revoltas importantes, notadamente a dos camponeses na Revolta da Jacquerie, na França em 1358, e a dos camponeses na Inglaterra em 1381, bem como a revolta das camadas pobres urbanas como na insurreição dos ciompi, os trabalhadores têxteis florentinos, em 1378.

14. No reino das ideias, houve um crescimento do conservadorismo e do ceticismo. A promoção da fé acima da razão encorajou a busca individual de Deus e diminuiu ainda mais o papel do clero, enquanto a aguda diferenciação estabelecida entre o sagrado e o profano estimulou simultaneamente a secularização da ciência e a promoção do realismo na arte.

15. Na Idade Média, uma minoria racial (os judeus), uma doença (a lepra) e uma minoria sexual (os homossexuais) eram vistos como uma ameaça para o eu definido como cristão, saudável e heterossexual. Existia uma relação entre heresia - lepra - sexo. A lepra foi usada para se referir à sodomia, e um bispo comparou a prostituição a "uma lepra incurável". 

Bibliografia consultada: RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação - as minorias na Idade Média. Tradução de Marco Antônio Esteves da Rocha e Francisco José Silva Gomes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

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