“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#Minorias Bruxos

domingo, 2 de setembro de 2018

Instrumentos de tortura utilizados para os julgamentos de bruxas em Bamberg, 1508. A tortura era uma prática aceita pela Igreja e pelos tribunais seculares na maior parte da Europa desde o século XIII até o fim do século XVIII. 
Reproduzido com a permissão da Mansell Colection.

1. As pessoas do Medievo viviam num mundo de medo: medo de impostos, doença, guerra, fome; medo da morte e do inferno. Era uma sociedade que acreditava no poder das trevas. A bruxaria era uma explicação conveniente tanto para as catástrofes naturais súbitas (fome, epidemias) quanto para os problemas familiares recorrentes (impotência, infertilidade, mortalidade infantil).  

2. Nesse sentido, as parteiras eram frequentemente acusadas de bruxaria. Os serviços dos bruxos eram procurados para induzir ou destruir o amor, para restaurar ou minar a saúde. Existia toda uma produção comercial dos bruxos, tais como unguentos, poções, filtros, sortilégios, amuletos e imagens de cera. 

3. Na Europa, os bruxos passaram a ser vistos como servos do Diabo. No final da Idade Média, um quadro sinistramente coerente já havia se desenvolvido: os bruxos - frequentemente, mas nem sempre mulheres - faziam pactos com o Diabo, renunciando ao cristianismo e se alistando no serviço de Satã. Eles selavam o acordo copulando com o Diabo. Reuniam-se em sabás regulares, os quais envolviam canibalismo, orgias e paródias blasfemas dos cultos cristãos. Os bruxos podiam voar e, às vezes, mudar de forma (transformando-se, por exemplo, em animais). Recebiam o poder de realizar o mal. Integravam uma conspiração satânica de âmbito mundial, visando a minar o cristianismo. 

4. Um dos trabalhos mais notáveis sobre demonologia, Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), publicado em 1486, foi produzido por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kramer e Jacob Sprenger, por autorização do papa Inocêncio VIII. O compêndio declarava que qualquer pessoa que não acreditasse na existência dos bruxos era culpada de heresia. Kramer e Sprenger explicavam que as mulheres eram muito mais inclinadas aos males da bruxaria e da adoração de demônios porque eram mais impressionáveis e crédulas do que os homens. Além disso, eram mais carnais.   

5. O cristianismo esforçou-se ao máximo para absorver o paganismo e negar a magia pagã. Contudo, alguns elementos do paganismo desafiavam a absorção cristã, sobretudo os cultos de fertilidade. O paganismo declarado, com fortes conotações de magia, continuou a existir e a ser combatido pela Igreja e pelo Estado até o século IX. Entre os séculos XI e XII, o paganismo antigo foi desaparecendo como força independente, ao passo que a bruxaria surgia como uma heresia religiosa semelhante ao catarismo. 

6. A bruxaria floresceu junto com a magia, o misticismo, as cruzadas e a reforma monástica. O fermento foi o descontentamento religioso e intelectual, bem como o desejo por experimentação que acompanhou a expansão das cidades, o rápido crescimento populacional e as mudanças dramáticas nos padrões econômicos e sociais dessa época. 

7. Desde a Antiguidade, a bruxaria era essencialmente a magia inferior, a medicina popular da "mulher sábia" local. Principalmente entre as classes mais baixas, isso existia e era praticado por indivíduos e não em cultos. A magia superior, por sua vez, era uma ciência praticada por homens instruídos, que envolvia rituais formais, livros de sabedoria mágica e invocação de demônios (que agiam como servos dos mágicos, e não como senhores). Nenhuma das duas formas de magia envolvia a adoração do Diabo, orgias, infanticídio ou canibalismo. 

8. Até o século XIII, a elite educada considerava a crença popular das "damas da noite" como ilusões. Mas, no final da Idade Média, os intelectuais passaram a acreditar que essas histórias eram verdadeiras. O Padre Conrado, o primeiro inquisidor do que hoje é a Alemanha, iniciou um reinado de terror em 1231. Esse período só terminou com seu assassinato, em 1233. Talvez as suas vítimas tenham sido inocentes ou membros da devota e ascética seita valdense. No entanto, o papa Gregório IX aceitou os relatórios de Conrado como verdadeiros. Assim, o papado deu aval oficial a toda parafernália satânica de reuniões secretas, aparições do Diabo, ritos de iniciação obscenos e orgias bissexuais. Além disso, sancionou a ideia de um vínculo entre heresia, bruxaria, sodomia, promiscuidade e obscenidade.  

9. Os cátaros, hereges que frequentemente foram acusados de serem bruxos adoradores do Diabo, na realidade odiavam e temiam o Espírito do Mal com fervor ainda maior do que os católicos. Após eles, no século XIV, os inquisidores afirmaram ter descoberto uma seita que rejeitava a hierarquia católica, adoravam Lúcifer e praticavam orgias sexuais - os luciferianos. Estavam na Áustria, na Boêmia, e na Suíça. 

10. A maioria dos grupos heréticos parece ter sofrido a acusação de adorar o Diabo quase que automaticamente. A bruxaria era mais intensa na França, nos Países Baixos, no norte da Itália e na Renânia, exatamente onde a heresia era mais forte. No século XIII, São Tomás de Aquino insistiu que os mágicos haviam caído sob a influência do senhor dos demônios, Satã. Assim, a magia era estigmatizada como a forma mais perniciosa de heresia. A Inquisição interessou-se cada vez mais tanto pela bruxaria quanto pela magia, obscurecendo as distinções entre as duas coisas. 

11. Houve poucos julgamentos por bruxaria antes de 1300, uma vez que era muito difícil provar o maleficium. As vítimas de bruxaria tendiam a fazer justiça com as próprias mãos e organizar linchamentos. Assim, ocorreram assassinatos de supostos bruxos em Colônia (1074), Vöting (1090) e em Gand (1128). Mas a revitalização do direito romano no século XII levou à introdução do sistema de inquirição no processo judicial. Este método, apoiado na tortura, assegurava confissões mais frequentes. A retirada da pena judicial para os acusadores malsucedidos incentivou a acusação. O direito romano também promoveu a introdução de penas mais severas. Bruxos e feiticeiros passaram a ser executados na fogueira, o que tinha o aval das Escrituras (Êxodo 22:18). Mesmo assim, o procedimento inquisitorial era dirigido mais à magia ritual do que à bruxaria.

12. No século XIII, autores como João de Salisbury e Walter Map expressaram sua preocupação com a magia entre os jovens cortesãos elegantes e propensos a modismos, os quais lotavam as cortes das monarquias nacionais emergentes. O renascimento intelectual, do século XII, impulsionou o renascimento do estudo da magia. As práticas ocultas penetravam na Europa ocidental vindas do mundo árabe, de Bizâncio e dos textos gregos redescobertos e avidamente estudados. As ideias milenaristas dessa época intensificaram a ansiedade pelas práticas ocultas.  

13. O rei Filipe IV da França (1285-1314) conduziu uma série de julgamentos públicos que tinham como alvo a magia ritual. O papa Bonifácio VIII (1294-1303), arqui-inimigo do rei, foi postumamente processado por negar o cristianismo, praticar a magia e a sodomia. Os templários foram acusados de idolatria, sodomia e adoração do Diabo. O papa João XXII acusava sistematicamente seus adversários de heresia, adoração de ídolos e de ter contato com demônios. Sua morte e a estabilização do governo da França, sob Filipe VI, levaram tais ocorrências a se esgotarem.  

14. Antes de 1375, o satanismo raramente esteva presente nas acusações. Entre 1375 e 1435, contudo, houve uma intensificação da preocupação com o satanismo. Concomitantemente, aumentaram as referências a sexo com o Diabo e as acusações de orgias sexuais. As pessoas comuns, por sua vez, acreditavam em bruxaria e folclore, mais do que na adoração ao Diabo. Muitas vezes, as acusações contra supostos bruxos eram feitas por vizinhos descontentes que buscavam uma explicação para desastres naturais que lhes havia acontecido. Por exemplo, a partir de 1300 teve início uma "Pequena Era Glacial" que deflagrou uma série de más colheitas. Isso pode ter fomentado as acusações de bruxaria. 

15. Augúrios, astrologia, amuletos, sortilégios, horóscopos, magia medicinal e pactos com demônios eram sistematicamente condenados pelos padres e pelos concílios da Igreja, mas continuaram a ser praticados. As acusações de bruxaria eram geralmente levantadas por vizinhos indispostos contra mulheres específicas (velhas, solitárias, impopulares, neuróticas, insanas, promíscuas, praticantes da medicina popular ou parteiras). Podemos aceitar a existência de bruxas, mas como mulheres isoladas, não em seitas e não adoradoras do Diabo. Talvez existiram umas poucas que, de fato, adoravam o Diabo. Entretanto, a conspiração satânica foi criação de intelectuais, teólogos e juristas católicos que misturavam antigas crenças populares, magia erudita e bruxaria rural, enfatizando o papel do sexo e postulando a ideia de destruição da Cristandade.

Bibliografia consultada: RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação - as minorias na Idade Média. Tradução de Marco Antônio Esteves da Rocha e Francisco José Silva Gomes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

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