“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

«O Último Império», de V. Dorneles

sábado, 3 de setembro de 2016

O editor da CPB, Vanderlei Dorneles, publicou O Último Império em 2012 a fim de mostrar como o processo de fundação dos Estados Unidos da América (EUA) provê importantes dados para elucidar a interpretação adventista de Apocalipse 13. Sua análise dos "textos" (o conceito envolve toda sorte de produção cultural política e artística que um país produz ao longo do tempo) é interessante para explicar como se desenvolveu a identidade norte-americana e sua vocação para construir e universalizar uma nova ordem que pretende ser a realização do "Novo Céu" e da "Nova Terra" prometidos no derradeiro livro da Bíblia. Tal visão messiânica projeta os EUA como imprescindíveis à ordem no mundo e serve como um manto de "cordeiro" para camuflar a "voz de dragão" (sua faceta agressiva, identificável nos inúmeros conflitos promovidos por essa nação, da colonização aos dias atuais).

O livro é oportuno e atende a uma necessidade do público adventista brasileiro. Infelizmente, porém, o autor comete uma série de equívocos ao lidar com conceitos e fatos históricos. Ainda na introdução, sustenta que os EUA alcançaram, no decorrer do séc. XX, a condição de um império, "tanto do ponto de vista do poderio econômico e militar quanto de seu concorrente modelo de relacionamento com as demais nações, no sentido de interferir no mundo e até de 'organizá-lo' à sua própria maneira" (pp. 11-12). Como já lhe é usual, apela para o argumento da autoridade (o que lhe exime de provar o que quer que seja). Assim, respalda-se em algumas "figuras carimbadas" da esquerda, tais como os ativistas políticos Sidney Lens e Noam Chomsky, além de um professor brasileiro, o Moniz Bandeira, que também não tem formação em História. Ainda que o livro não tenha a pretensão de ser uma tese historiográfica, seu autor deveria ter tido um cuidado maior com um conceito tão importante para a ideia central que procura defender. Do ponto de vista teológico, seu desconforto é evidente: ele sabe que, de acordo com a profecia de Daniel 2, o "último império" é o Romano. Os "reinos divididos" constituem os pés da estátua, e não há como negar isso. Assim, Dorneles tenta explicar que o "Império" Americano na verdade deve ser visto como uma "reminiscência" dos poderes de Roma e do papado. Ora, não seria melhor então escolher um outro conceito? Afinal, um "império" que sequer conseguiu controlar o Iraque talvez não mereça esse epíteto... 

O autor ainda comete alguns deslizes grotescos, desta vez sem se respaldar em qualquer "autoridade". Por exemplo, afirma que "no século 16, apesar da realização de Colombo, ainda havia na Europa a crença numa Terra plana, sustentada por séculos pela igreja" (p. 68). Como já é amplamente conhecido hoje, a convicção de que os líderes eclesiásticos medievais defendiam um Terra plana não passa de um mito (criado provavelmente no início do séc. XIX, pelo escritor de ficção Washington Irving). Basta pesquisar por imagens do imperador Carlos Magno, o maior dos soberanos do Ocidente medieval, para ver que ele segura um globo, o símbolo do seu poder. Em com relação à reunião de Salamanca, quando Colombo defendeu o seu projeto de traçar uma rota para as Índias navegando em direção ao Ocidente, a preocupação era simplesmente com relação à distância do percurso que ele estava propondo. Nada foi dito sobre o suposto achatamento do planeta. Assim, é importante ser cuidadoso com relação às acusações que estão sendo imputadas à Igreja Católica, primeiramente para não incorrer em falso testemunho, e depois para não cair em descrédito perante um público bem informado. O catolicismo cometeu muitos erros ao longo da História: não é preciso recorrer à ficção para desqualificá-lo.

Em outros momentos, o "pecado" é a imprecisão: por exemplo, quando menciona-se um discurso de Franklin D. Roosevelt pronunciado no dia 6 de janeiro de 1941. Dorneles menciona que ele foi proferido "antes da Segunda Guerra Mundial" (p. 123). Na verdade, o discurso foi proferido antes do envolvimento dos EUA no conflito (a Segunda Guerra Mundial começou em 1939, com a invasão da Polônia pelo Exército Alemão). Nessa mesma página (123), comete um outro absurdo factual, qual seja, que os norte-americanos promoveram os ataques nucleares a Hiroshima e Nagasaki "quando a guerra já estava vencida". Qualquer pessoa minimamente informada sobre a Segunda Guerra Mundial sabe que o Japão imperial estava longe de desistir do conflito, como prova a tenacidade dos seus pilotos kamikazes. Foi por isso que o governo estadunidense justificou os ataques: eles, na verdade, serviriam para poupar vidas, tanto do lado americano quanto do lado japonês. Não fazia sentido prolongar o conflito indefinidamente. Outro erro factual é mencionado na p. 164: na verdade os EUA invadiram o Iraque em 2003, e não em 2002, como é informado.

Para finalizar, é preciso mencionar que Dorneles não consultou as fontes históricas americanas diretamente, e sim através da bibliografia, o que prejudica a qualidade da sua análise. Assim, considerando a importância do tema e todos os erros acima expostos, só nos resta torcer para que a CPB publique uma segunda edição livre dessas "impurezas" que, infelizmente, maculam a obra. 

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