“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos A Escravidão em Roma

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Mosaico com dois escravos servindo vinho a um homem. Data desconhecida. 
Localização: Bardo National Museum, Túnis, Tunísia.

1. O escravo não era degradado pela escravidão até ser convertido em "algo" desumanizado. Na verdade, o cativo criava uma nova ordem vital, um entorno no qual se "humanizava" de novo, desempenhando outro papel social ou cultural. Portanto, os romanos nunca encararam o escravo como uma "coisa": consideravam-no um ser humano. Contudo, esse ser humano era, ao mesmo tempo, um bem e um inferior que devia se socializar no seu papel de escravo.

2. Durante a expansão romana nos tempos da República, os prisioneiros de guerra proporcionavam aos romanos a principal fonte de escravos. Depois, sob o Império, os escravos passaram a ser oriundos fundamentalmente do "rebanho servil", do abandono de crianças e da venda de homens livres em condição de cativeiro (estes  últimos normalmente eram vítimas de piratas, sequestradores ou bandidos, em zonas isoladas ou nas fronteiras do império). Em alguns casos, pessoas livres voluntariamente se convertiam em escravas e, finalmente, a escravatura poderia ser imposta como castigo à gente corrente condenada por delitos particularmente atrozes.  

3. Não é verdade que a sociedade romana sob o Império repousasse sobre a escravidão. O sistema da grande propriedade cultivada por bandos de escravos era peculiar a certas regiões (sul da Itália ou Sicília). Fora dessas regiões, e passada a sua época, a escravidão era apenas uma das relações de produção agrícola, ao lado do sistema de meeiro e de assalariado. Algumas províncias quase desconheciam a escravidão rural (caso do Egito). No setor do artesanato, por outro lado, ao que tudo indica a mão de obra era essencialmente servil.

4. As mais evidentes diferenças entre a escravidão greco-romana e a escravidão no Novo Mundo, na Era Moderna, são a ausência do elemento racial e a diversidade muito maior da vida dos escravos na Antiguidade. Por exemplo, sabemos que muitos escravos eram instruídos e certas obras de ficção colocaram em primeiro plano a vida dos escravos - tal é o caso do Satíricon (60 d.C.), de Petrônio, e do Asno de Ouro (séc. II), de Apuleio.

5. Os escravos com cor de pele e traços faciais radicalmente diferentes eram raros entre entre os romanos ainda que, no mundo greco-romano, africanos subsaarianos e germânicos altos e de pele clara também tenham sido escravizados. Assim, para distinguir os escravos da população livre, às vezes se recorria ao corte de cabelo, tatuagem, colar ou qualquer outro indicador concreto para esse fim.

6. Como foi mencionado acima (fato 4), a condição dos escravos variava bastante, desde rústicos escravos domésticos até grandes administradores. Como não existiam escolas de medicina, muitos médicos eram antigos escravos cujos senhores atuavam na medicina e lhes haviam preparado para a profissão. Posteriormente, esses aspirantes à medicina eram libertados e seguiam os passos dos seus antigos senhores.

7. Contudo, não se engane: o escravo era um inferior por natureza, não importava quem ele fosse ou o que fizesse. O tratamento rude era sinônimo da escravidão - os escravos podiam ser e eram agredidos habitualmente, seja para fomentar o bom comportamento, seja para castigar o mal. Além disso, por exemplo, o escravo poderia ser torturado perante os tribunais públicos para confessar os crimes do amo. Os homens livres, ao contrário, não eram ameaçados de tortura.

8. A legislação oferecia escassa - para não dizer nenhuma - ajuda a um escravo que se encontrasse em situação abusiva. Praticamente todos os cativos olhavam o sistema legal com terror, e não com esperança. Por outro lado, o direito romano possuía uma norma: a do "favor para a liberdade". Isso significa que, na dúvida, um juiz devia decidir em favor da presunção de liberdade. Nesse sentido, se a interpretação de um testamento pelo qual o defunto parecia libertar seus escravos fosse duvidosa, decidia-se pela interpretação mais favorável: a liberdade. Outra norma era que, se alguém libertasse seu escravo, a decisão não poderia ser revertida.

9. Constituíam delitos abrigar conscientemente um escravo fugitivo ou encorajar com palavras seu intento de fugir. Mas, na prática, não existia uma forma evidente de identificar a um fugitivo - o aspecto e a forma de falar da maioria dos escravos não se diferenciavam dos do resto da população. Assim, há relatos de escravos fugidos que conseguiram se infiltrar no exército romano, e passaram desapercebidos.

10. Os escravos participavam da religião. E isso mesmo fora de casa, onde podiam perfeitamente ser aceitos como sacerdotes pelos fiéis de alguma devoção coletiva (como entre os cristãos, que jamais cogitaram pedir o fim da escravatura; além disso, nada indica que cristãos proprietários de escravos tivessem para com estes uma atitude diferente daquela que os politeístas tinham para com os seus escravos). Em Roma, existiam três "festividades de escravos": a Saturnália (no final de dezembro), a festa das escravas (7 de julho) e no dia dos escravos (13 de agosto).

11. Um escravo podia ser recompensado por seu senhor, fazer negócios de forma paralela, cometer furtos ou fabricar coisas e vendê-las para si próprio. Na cidade, os escravos dispunham de muito mais oportunidades, posto que usufruíam de mais tempo livre (nos dias de festa, por exemplo, eles tinham folga do trabalho), além de mais acesso a recursos e pontos de venda. Assim, podiam usar seu peculium para comprar a sua liberdade ou a de algum ente querido. Ou podiam usá-lo para fins diversos. Por exemplo, como qualquer romano, eles também desenvolveram verdadeira paixão pelos espetáculos públicos do teatro, do Circo e da arena.

12. Apesar disso, um escravo devia viver para seu serviço, mais nada. Com os maus tratos físicos e psicológicos, os amos pretendiam impor aos seus escravos o aprendizado da submissão. Esperava-se que todos os escravos obedecessem de boa vontade. O pior de tudo talvez fosse a combinação de agressão física e psicológica: o abuso sexual. 

13. Os romanos viviam com um "medo surdo" dos escravos - sabiam que eles poderiam se voltar contra eles, como, de fato, alguns não hesitaram em fazê-lo. No Egito, há testemunhos que descrevem escravos com atitudes desrespeitosas em relação aos amos. A vida de um proprietário de escravos implicava habitualmente certos riscos, ainda que o assassinato de um amo pelos seus escravos fosse provavelmente excepcional.

14. Na falta de outras perspectivas, os escravos partilhavam os valores do seu senhor, admiravam-no e serviam-no com zelo. Em circunstâncias normais, fosse numa casa grande ou num recinto menor ou em âmbito rural, os escravos sem dúvida criavam vínculos e forjavam relações que davam sentido às suas vidas, apesar da insegurança e da brutalidade subjacente.

15. Não existia violência em grande escala contra os amos; as rebeliões de escravos praticamente cessaram antes da época do Império. Quanto às guerras servis de Espártaco e seus êmulos, os desafortunados não cogitavam em combater para erguer uma sociedade menos injusta, da qual seria banido o escândalo da servidão. Eles queriam apenas estabelecer o seu próprio reino em terras romanas. Aliás, o antigo desenvolvimento orgânico da escravidão (em paralelo com a domesticação de animais) explica o porquê de a escravidão nunca ter sido questionada seriamente na Antiguidade. Considerava-se a escravidão uma forma normal e aceitável de relacionar-se com outros seres humanos. 

Bibliografia consultada: 
KNAPP, Robert C. Los Olvidados de Roma - Prostitutas, forajidos, esclavos, gladiadores y gente corriente. Traducción de Jorge Paredes. Barcelona: Editorial Planeta, 2011, p. 147-198.
VEYNE, Paul. O Império Romano. In: ARIÈS, Philipe & DUBY, Georges (diretores da coleção). História da Vida Privada. Volume 1: Do Império Romano ao ano mil / organização de Paul Veyne. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 61-79.

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