terça-feira, 7 de fevereiro de 2012
O que significam as palavras escritas? O que o escritor quis dizer com aquilo quando escreveu? Por que escreveu? Quando? Como? Onde? Para quem? Na belíssima iluminura medieval acima, o bispo Virgil von Salzburg (c. 746-784) medita profundamente o texto que acaba de ler. Sua mão direita apóia seu queixo, seus imensos olhos perscrutam o livro aberto. A cena, reflexiva e contemplativa, é emoldurada por seres fantásticos e sinuosos motivos geométricos. Viena, Osterreichische Nationalbibliothek, Cod. 1224, fol. 17v. (Texto de Ricardo da Costa)
Como historiadores, somos frequentemente questionados sobre o sentido do nosso trabalho. Marc Bloch (1886-1944), em sua esplêndida obra Apologia da História ou O ofício de historiador já dizia que se a História fosse julgada incapaz de outras tarefas, poderíamos dizer ao seu favor que ela diverte. De fato. As humanidades - da qual a História faz parte - são disciplinas não-práticas que têm por meta a sabedoria. Diferem-se, portanto, das ciências, que têm por objetivo a maestria, e são matérias práticas por excelência.
Na Antiguidade Clássica, Políbio (c. 203 a.C.-120 a.C.), geógrafo e historiador grego, acreditava que "a melhor educação e a melhor aprendizagem para a vida política ativa é o estudo da História" (Histórias, I, p.1). Na Idade Média, o Islã produziu um genial filósofo da História - Ibn Khaldun (1332-1406). Segundo ele (al-Muqaddima, introdução):
A História é uma ciência nobre. Apresenta muitos aspectos úteis. Propõe-se atingir um fim nobre. Faz-nos conhecer as condições específicas das nações antigas, que se traduzem no seu caráter nacional. (...) Assim, quem quiser pode obter bons resultados, pela imitação dos modelos históricos, religiosos e profanos. Para escrever obras históricas é preciso dispor de numerosas fontes e variados conhecimentos. É também preciso um espírito reflexivo e profundo: para permitir ao investigador atingir a verdade e defender-se do erro.
Na Renascença, o humanista e filósofo neoplatônico Marsílio Ficino entendeu perfeitamente a importância do estudo da História para a vida humana. Em carta a Giácomo Bracciolini, Ficino registrou iluminadas palavras acerca do valor da História:
A História é importante não apenas para tornar a vida mais agradável mas também para lhe dar uma significação moral. O que é imortal em si mesmo consegue a imortalidade através da História; o que é ausente torna-se presente, velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo se iguala à maturidade dos velhos. Se um homem de setenta anos é considerado sábio devido à sua idade, quão mais sábio é aquele cuja vida abrange o espaço de mil ou três mil anos! Pois, na verdade, pode-se dizer que um homem viveu tantos milênios quantos os abarcados pelo seu alcance de conhecimento de História.
Ao buscar a sabedoria e orientado pela paixão (que em algum momento amadurece e se torna amor), o historiador escolhe o seu tema. A seguir, em pleno trabalho, debruça-se sobre as suas fontes - textuais, orais, arqueológicas, iconográficas, etc.. Faz uma imersão nos símbolos ao tentar compreender o texto. Este é a expressão que restou dos homens, que são o seu objeto. Imagina. Sim, segundo Georges Duby (1919-1996), o historiador deve imaginar. A seguir, sonha com a História - para Fernand Braudel (1902-1985, “quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.”
Mas o historiador tem um compromisso com a verdade (segundo Cícero [106-43 a.C.], antes de tudo espera-se que ele só diga a verdade). Isto põe freios à sua imaginação. Para que ele não queira que o passado tenha sido algo que não foi, algo que gostaria que tivesse sido - o que invalidaria o seu esforço intelectual - lança mão de teoria e métodos. Só eles os mantêm totalmente seguros do alerta de Eric Hobsbawm (1917-2012):
A História é atualmente revista ou inventada por gente que não deseja o passado real, mas somente um passado que sirva aos seus objetivos. Estamos hoje na grande época da mitologia histórica.
Após todo esse percurso, o historiador escreve. Esta é a expressão final do seu trabalho. Há alguns raros eleitos que, sem abandonarem a erudição ou se tornarem incompreensíveis aos leigos, imprimem grande estilo ao seu texto. Penso aqui em um Edward Gibbon (1737-1794) ou um Johan Huizinga (1872-1945) que se tornaram referências neste quesito. O já citado Cícero dizia: "A mim me bastam a clareza e a simplicidade, que são o melhor ornamento da verdade (...) falar clara e simplesmente é o que compete a um homem inteligente e douto" (Do sumo bem e do sumo mal, Livro III, V). Assim, em última análise, o historiador é um escriba (lembro-me aqui daquela maravilhosa fonte egípcia na qual o pai recomendava ao filho esta profissão, a melhor de todas). O "fruto" do seu trabalho não deve ser reputado como menos digno:
O fruto das letras é, por muitas razões, o mais aprazível, principalmente porque, suprimido o empecilho de qualquer separação espacial e temporal, elas exibem aos amigos a presença mútua, e não permitem que pereçam com o tempo as coisas dignas de lembrança. Pois até as artes teriam perecido, os juramentos ter-se-iam esvaído, todos os ofícios de qualquer religião teriam ruído, e o próprio uso da boa expressão ter-se-ia corrompido, se a misericórdia divina não tivesse providenciado para aos mortais o uso das letras como remédio para a fraqueza humana. O exemplo dos antigos, a exortação e incentivo da virtude, não erigiria nem conservaria absolutamente nada, se a solicitude piedosa dos escritores e o zelo, vencedor do descuido, não tivessem transmitido aos pósteros. John of Salisbury, Policraticus (1159).
Mas alguém ainda pode querer um dado "mais próximo" em favor da História. Para o que há pouco se apaixonou pela adorável Clio, aquele pobre a enfrentar as pressões internas, familiares e sociais para escolher uma profissão "mais rentável", ficam as dicas de dois livros, recém-lançados. O primeiro é de Karl Pillemer e chama-se 30 Lessons for Living. Trata-se de uma compilação de mais de 1.000 entrevistas realizadas com idosos de diferentes níveis econômicos e educacionais, destinadas ao objetivo de oferecer conselhos práticos baseados no que estes fizeram de certo ou errado em suas vidas. Questionados sobre a carreira profissional, nenhum dos mil entrevistados considerou que a felicidade estaria associada ao trabalho excessivo que rendesse dinheiro suficiente para comprar o que quer que fosse. Há ainda outros estudos, desnecessários de serem mencionados que aqui, que apontam para a mesma conclusão: não é o dinheiro que traz a felicidade. Bons profissionais trabalham naquilo que amam, e o retorno financeiro é mera consequência disso.
O segundo livro foi escrito pela enfermeira australiana Bronnie Ware, especialista em cuidados paliativos e doentes terminais. O livro intitula-se The Top Five Regrets of the Dying - A Life Transformed by the Dearly Departing . Segundo a autora, reuniu nele 'confissões honestas e francas de pessoas em seus leitos de morte.' Advinha qual foi o maior arrependimento que ela constatou? Não ter tido coragem de se fazer o que realmente se queria e não o que outros esperavam que fosse feito.
Tendo tudo isso em vista, só tenta dissuadir o filho da ideia de cursar História o pai que desconhece o pensamento abaixo:
O meu filho deve ler muita História e meditar sobre ela; é a única filosofia verdadeira. Napoleão Bonaparte, Testamento político (Abril de 1821).
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- Para os que queiram se aprofundar na questão da utilidade da História, recomento o artigo do Prof. Dr. Ricardo da Costa intitulado Para que serve a História? Para nada... , in: AQUI.
- Sobre o livro de Karl Pillemer, ver G1.
- Sobre o livro de Bronnie Ware, ver G1 (Ciência e Saúde).