sexta-feira, 17 de dezembro de 2021
Historia magistra vitae est. Cícero (106-43 a.C.)
Entre o Medievo e a Idade Moderna, era comum circularem três explicações para as pestes que assolavam o Velho continente:
1ª) Eruditos
Eles atribuíam a epidemia a uma corrupção do ar, ela própria provocada por fenômenos celestes (aparição de cometas, conjunção de planetas, etc.), por diferentes emanações pútridos, ou então por ambos.
2ª) Multidão
Semeadores de contágio espalhavam voluntariamente a doença; era preciso procurá-los e puni-los.
3ª) Igreja
Assegurava que Deus, irritado com os pecados de uma população inteira, decidira vingar-se; portanto, convinha apaziguá-Lo fazendo penitência.
De origens diferentes, esses três esquemas explicativos não deixavam de interferir nos espíritos. Deus podia anunciar sua vingança próxima por meio de sinais nos céus. Segundo os teólogos, na ocasião os demônios e feiticeiros se tornavam os "carrascos" do Altíssimo e os agentes de Sua justiça.
A opinião corrente, portanto, procurava encontrar o máximo de causas possíveis para tão grande desgraça. No século XVI, Fracastoro e Bassiano Landi lançaram a noção de contágio, rejeitada obstinadamente pelos eruditos. Estes insistiam nas explicações "naturais" pelos astros e pelo ar viciado.
Assim, ainda em 1721, o médico do rei da Prússia dizia que a peste era provocada "por máculas morbíficas, concebidas e procriadas por exalações pútridas da terra ou pela maligna influência dos astros." Espíritos críticos, contudo, preferiam deixar aos técnicos a responsabilidade dessas qualificações, sem se pronunciar sobre elas. Boccaccio, sempre prudente, lembrou que fosse qual fosse a causa da Peste Negra, ela se manifestara, alguns anos antes, nos países do Oriente.
A outra explicação "natural" (não contraditória com a precedente) fazia derivar a peste de exalações malignas emanadas de cadáveres não enterrados, de depósitos de lixo, até das profundezas do solo.
Se a epidemia era uma punição, era preciso procurar bodes expiatórios que seriam acusados inconscientemente dos pecados da coletividade. Na Europa dos séculos XIV-XVIII, as populações repetiram por várias vezes, involuntariamente, a sangrenta liturgia das civilizações antigas de procurar apaziguar a divindade encolerizada. Essa necessidade de aplacar a cólera das potências supra-humanas conjugava-se com o desrecalque de uma agressividade que a angústia fazia nascer em todo grupo humano acometido pela epidemia. Não existe um relato de peste que não evoque essas violentas descargas coletivas.
A agressividade coletiva era descarregada em primeiro lugar sobre os estrangeiros, os viajantes, os marginais e todos aqueles que não se integraram bem a uma comunidade (judeus, leprosos, indivíduos provenientes de outros lugares).
A Peste Negra surgiu numa atmosfera já carregada de antissemitismo. De início suspeitos de querer dizimar os cristãos pelo veneno, em seguida os judeus foram bem rapidamente acusados de ter semeado o contágio por meio desses envenenamentos.
Ocorreram diversos pogroms na Espanha e em outras partes da Europa, onde os judeus eram cada vez mais vistos como os maiores responsáveis pela "morte negra".
Adaptado de DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300-1800. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 201-220.
Dois dias após o último baile da monarquia, em 11 de novembro, houve a única reunião dos conspiradores militares com republicanos civis. O marechal Deodoro da Fonseca não queria a reunião. Três civis compareceram, Quintino Bocaiúva, Aristides Lobo e Rui Barbosa. Deodoro continuava a hesitar, mas no final pareceu concordar. Contudo, havia ainda muita incerteza e insegurança.
No dia 14, Benjamin Constant era favorável a um adiamento para o dia 18, quando todos poderiam estar melhor preparados. Além disso, Deodoro tivera outra crise de asma. Entretanto, o major Sólon decidiu precipitar o movimento. Dirigiu-se ao centro da cidade e começou a espalhar boatos que ele mesmo inventara de que o governo ordenara a prisão do marechal Deodoro e de Constant e que a Guarda Nacional, a polícia e a Guarda Negra iam atacar os quartéis do Exército.
Às 23h do dia 14 o golpe entrou em fase de execução. Deodoro e Constant ignoravam-no por completo. Foram levados para o Campo de Santana, onde seiscentos soldados não sabiam exatamente o que fazer. Alguns, pelo menos, achavam que deveriam defender o Exército contra a Guarda Nacional e a polícia. Alertado, Deodoro tomou uma carruagem e foi ao encontro das tropas. Os republicanos tinham reunidos algumas pessoas que davam vivas à República. Deodoro mandou que se calassem.
O visconde de Ouro Preto, chefe do Conselho de Ministros, recebera vários avisos sobre a conspiração, mas não lhes dera muita importância. Na madrugada do dia 15, uma sexta-feira, enviou um telegrama, que estava em Petrópolis. Começou, então, um jogo de empurra, de desculpas, de simulações, entre os chefes militares, o ministro da Guerra e Floriano Peixoto. Ninguém obedecia às determinações de Ouro Preto para atacar os revoltosos. A tarefa era fácil, pois havia ao redor e dentro do quartel um número de soldados três vezes superior ao dos atacantes. Deodoro chegou ao quartel e dirigiu-se a Ouro Preto, fazendo um discurso e, ao final, declarou deposto o ministério. Ouro Preto enviou outro telegrama ao imperador, pedindo demissão.
Durante todo o dia, houve grande conspiração. Os conspiradores se desesperavam com a indefinição de Deodoro. À tarde, José do Patrocínio reuniu gente na Câmara Municipal e fez a proclamação. Pelas 18h, vários republicanos se dirigiram à casa do marechal, que não os recebeu por estar de cama. Benjamin Constant respondeu por ele, evasivamente, dizendo que a decisão do povo seria levada em conta. Decepcionados, todos se retiraram.
O imperador só desceu ao Rio após receber o segundo telegrama, mesmo sem ter ideia da gravidade da situação. Enquanto isso, no palácio Isabel planejava-se uma reação. D. Pedro II foi diretamente para o paço da cidade, onde chegou às 15h, sem dificuldades.
Durante todo o dia 15, foi grande a confusão. A Câmara recém-eleita e o Senado ainda não se tinham reunido. Ouro Preto chegou ao palácio e indicou como sucessor Silveira Martins. Porém, o senador gaúcho estava em viagem, e era desafeto de Deodoro. Atacara o marechal no Senado e levara a melhor na disputa pelas atenções da baronesa do Triunfo, no Rio Grande do Sul. A simples referência a Silveira Martins pode ter sido a gota d'água para acabar com a indecisão de Deodoro.
A princesa Isabel e o esposo pediram a d. Pedro que convocasse o Conselho de Estado. Reunidos às pressas, às 23h, os conselheiros sugeriram que chamasse Saraiva ao invés de Silveira Martins. Procurado no hotel de Santa Teresa, onde morava, Saraiva aceitou o convite. A seguir, buscou contato com Deodoro, que respondeu ao emissário que era tarde. O imperador mantinha-se abúlico e fatalista.
No dia 16, sábado, a família imperial continuava sitiada no paço, onde ainda se pensou em reação. O comandante do Almirante Cochrane, almirante Bannen, ofereceu asilo ao monarca. Havia uma saída pelos fundos do palácio. Mas d. Pedro achou indigno fugir à noite e abrigar-se em navio estrangeiro. Às 15h do dia 16, o major Sólon chegou ao palácio com a mensagem da derrubada da monarquia, assinada por Deodoro. A família imperial era intimada a sair do país o mais rápido possível. O agora ex-imperador manteve-se imperturbável, irritando-se apenas quando o governo provisório antecipou a partida para as primeiras horas do dia 17. Com a decisão, o novo governo tentava evitar que houvesse manifestações populares, a favor ou contra a monarquia.
Adaptado de CARVALHO, José Murilo. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 215-219.
Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaéla Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança
Rio de Janeiro, 1846 - França, 1921.
Nasceu no dia 29 de julho de 1846, no Palácio da Quinta da Boa Vista. Era a segunda filha do imperador D. Pedro II e da imperatriz Tereza Cristina. Educada por renomados preceptores e mestres, Isabel se tornou uma mulher extremamente religiosa, o que lhe angariou no futuro algumas antipatias da parte daqueles que consideravam exagerado o seu zelo católico.
Em agosto de 1850, foi proclamada oficialmente herdeira ao trono brasileiro. Em outubro de 1864, Isabel se casou com o conde d'Eu, neto do rei Luís Felipe e filho mais velho do duque de Nemours. Dessa união, iniciou-se o ramo dos Orléans e Bragança. A cerimônia foi realizada na Capela Imperial, em frente ao Paço Imperial. Do casamento, nasceram três filhos: Pedro de Alcântara, Luiz e Antônio.
Isabel assumiu a regência da monarquia de 25 de maio de 1871 a 30 de março de 1872; de 26 de março de 1876 a 25 de setembro de 1877; de 30 de junho de 1887 a 21 de agosto de 1888. Na primeira ocasião, sancionou a Lei do Ventre Livre, aprovada em 28 de setembro de 1871.
Durante o último período em que atuou como regente, a campanha abolicionista ganhou enorme popularidade no país. O tema tornou-se suprapartidário e qualquer adiamento da abolição parecia impossível, apesar da resistência do então presidente do Conselho de Ministros, o Barão de Cotegipe, defensor da extinção gradual da escravidão mediante indenização aos senhores de escravos. Um fato corriqueiro abriu caminho para que a princesa Isabel substituísse o Barão de Cotegipe por João Alfredo Corrêa de Oliveira no comando do ministério. João de Oliveira era francamente abolicionista, e assumiu a presidência do Conselho de Ministros no dia 10 de março de 1888.
Em Petrópolis, Isabel protegia os escravos e chegou a presidir a entrega de mais de cem cartas de alforria a ex-escravos. No dia 9 de maio, a Câmara aprovou a abolição da escravatura por 83 votos a favor e nove contra. Depois de três dias, o Senado precisou ceder e também aprovar o projeto. No dia 13 de maio, no Paço da Cidade, a princesa Isabel tornou-se a "Redentora" a Lei Áurea. A cidade viveu um dia de festas.
Passada a euforia pela abolição, a propaganda republicana voltou com força, contando agora com o apoio de muitos fazendeiros contrariados com a libertação - sem qualquer indenização - dos escravos. No momento do golpe da República, a princesa encontrava-se na Corte e teria proposto uma reunião do Conselho de Estado; porém, a implantação da República já era um fato consumado. A herdeira do trono mostrou-se, então, surpresa e indignada com o golpe.
A seguir, o Paço Imperial foi isolado por militares republicanos. À madrugada do dia 17 de novembro, chegaram as ordens de expulsão da família imperial. O exílio começaria em Portugal e depois passaria à França, onde o ex-imperador faleceu em dezembro de 1891. Nessa época, o conde d'Eu havia comprado um castelo que se encontrava parcialmente destruído por um incêndio e teve que passar por uma longa reconstrução. Quando se mudaram, compartilhariam a propriedade com o filho Pedro de Alcântara e sua família.
Isabel teve sua saúde ainda mais fragilizada com as mortes dos filhos Antônio e Luiz, entre 1919 e 1920. O banimento da família imperial chegou ao fim em 1920, mas ela jamais retornou ao Brasil. Faleceu no castelo d'Eu há exatos cem anos, no dia 14 de novembro de 1921. Em 1953, seus restos mortais, bem como os do seu marido, foram transladados e depositados na Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro, sendo transferidos definitivamente, em 1971, para a Catedral Metropolitana de Petrópolis.
O amor à pátria lhe foi reconhecido por todos, amigos e inimigos, por ocasião da morte. A encomenda que fez de um punhado de terra brasileira sobre o qual descansar a cabeça depois de morto não resultou de demagogia, nem de sentimentalismo barato. era pobre consolo por ser obrigado a morrer e ser enterrado longe da pátria.
***
Os adversários brasileiros do imperador, criticando sua política, ressaltavam sempre seu patriotismo, honestidade, desinteresse, espírito de justiça, dedicação ao trabalho, tolerância, simplicidade. O republicano José Veríssimo salientou que a maior dívida do Brasil com d. Pedro era a atmosfera de liberdade que proporcionara às atividades do espírito. Em seu governo, resumiu: "Todos pensávamos como queríamos e dizíamos o que pensávamos. Eu não sei que maior elogio se possa fazer a um estadista."
CARVALHO, José Murilo. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 125 e 241.
Durante o ministério Rio Branco, houve assalto à tipografia do jornal A República, suspeitando-se de conivência da polícia. Como sempre fazia nesses casos, o imperador condenou o ato e exigiu o castigo dos criminosos. Sua posição em relação ao regime republicano até o final do reinado de estranha simpatia. Talvez mais do que simpatia. Segundo Rebouças, ele teria dito a Antônio Prado: "Eu sou republicano. Todos o sabem. Se fosse egoísta, proclamava a república para ter as glórias de Washington."
CARVALHO, José Murilo. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 129.
[D. Pedro II] retomou no diário de 1862 alguns dos temas prediletos, como o da liberdade das eleições e da imprensa. Sobre a imprensa, sua posição foi sempre a mesma e se expressava de maneira simples, como disse a Caxias: 'A imprensa se combate com a imprensa.' Essa postura foi mantida ao longo de todo o reinado. Durante a guerra contra o Paraguai, o jornal Ba-taclan, publicado em francês no Rio de Janeiro por Charles Berry, ridicularizava os chefes militares brasileiros. D. Pedro impediu que fosse fechado, e protestava sempre que alguma violência era exercida contra jornais.
Somando-se essa postura do imperador com a vigência do anonimato, pode-se dizer que a imprensa nunca foi tão livre no Brasil como em seu reinado.
CARVALHO, José Murilo. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 84.
De 17 para 18 de março de 1882, joias da imperatriz e da princesa Isabel, avaliadas em quatrocentos contos, foram furtadas do palácio de São Cristóvão. Foram rapidamente achadas e devolvidas a d. Pedro. Mas o caso virou escândalo, o único durante todo o reinado a envolver a família imperial. O principal suspeito do furto era Manuel de Paiva, ex-empregado do paço, que foi solto logo após o encontro das joias. Tirando vantagem da grande liberdade de imprensa então vigente, quase licença graças ao anonimato, os pasquins e os jornais republicanos exploraram ao máximo o fato. Atribuiu-se a soltura de Manuel de Paiva a interferência pessoal do imperador. Não interessaria a este, acusava-se, que as investigações prosseguissem. Pasquins como O Mequetrefe sustentavam que Pedro II era refém do ex-empregado, que teria sido seu alcoviteiro e o acompanharia em aventuras amorosas noturnas. Os alvos de tais aventuras seriam a condessa de Barral, Mariquinhas Guedes, a viúva Navarro e mocinhas púberes. O Mequetrefe afirmou, grosseiramente, que o monarca era "doido por um caldinho de franga."
CARVALHO, José Murilo. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 70-71.
"O imperador informava-se sobre tudo o que acontecia, lendo sobre tudo o que acontecia, lendo os jornais, visitando repartições públicas, ouvindo reclamações em audiências semanais. A carruagem imperial era vista com frequência cruzando aos solavancos as ruas mal calçadas da cidade a caminho de alguma repartição, escola, arsenal, hospital. Os ministros vingavam-se dessa fiscalização chamando d. Pedro de 'gênio de bagatelas'. Bem-humorado, Mendes Fradique diria mais tarde que o imperador fazia tudo, exceto a barba."
CARVALHO, José Murilo. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 57.
Somos conservadores pelo menos em relação ao que estimamos. Conservar e desfrutar são dois verbos caros aos homens que ainda estimam alguma coisa. Michael Oakeshott apresentou o conservadorismo como uma disposição - uma forma de ser e agir que tenderá a valorizar primeiro os confortos do presente.
O conservador, portanto, prefere o familiar ao desconhecido, o testado ao nunca testado, o fato ao mistério, o atual ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, o riso presente à felicidade utópica.
O conservadorismo apresenta uma dimensão existencial que é anterior, ou até superior, a qualquer ideologia política. Mais ainda: o conservadorismo não é uma ideologia, preferindo encontrar refúgio identitário em "forças interiores", "temperamentos", "fés", "espíritos" e, claro, "disposições".
Embora uma disposição conservadora nem sempre implique uma preferência pelo conservadorismo político, a verdade é que uma política conservadora tenderá a partilhar os traços característicos da disposição conservadora tout court. Tal como os homens de disposição conservadora, o conservadorismo político também transportará para a esfera da governança esse gosto pelo próximo, pelo suficiente, pelo conveniente - recusando a "felicidade utópica" que é típica da atitude revolucionária.
Existem radicais utópicos nos dois extremos do horizonte político. O pensamento utópico sempre projetou no passado ou no futuro a "solução final" para as iniquidades que afligem o presente. O utópico do passado é o reacionário, a caricatura do conservador e um "revolucionário do avesso" (A. Quinton). O revolucionário ou "progressista", por sua vez, é o utópico do futuro.
Berlin desmontou uma dupla falácia: de que os homens possuem uma natureza fria e inalterável; e, por outro lado, de que os valores mais caros à existência humana podem ser vivenciados na sua expressão máxima sem possibilidade de conflito entre eles.
Além de recusar os apelos do pensamento utópico, o conservadorismo político também irá reagir defensivamente aos apelos do potencial de violência e desumanidade que a política utópica transporta. Nesse sentido, Samuel Huntington apresentou essa natureza reativa do conservadorismo como ideologia. Ocorre que o conservadorismo é uma ideologia que, ao contrário das rivais, tende apenas a emergir quando "os fundamentos da sociedade são ameaçados".
O conservadorismo poderá ser assim apresentado como uma "ideologia da emergência" - e no duplo sentido da expressão: porque emerge em face de uma ameaça específica de caráter radical; e porque o faz quando essa ameaça põe em risco os fundamentos institucionais da sociedade. Portanto, o conservadorismo pode ser encarado como uma ideologia, mas antes uma ideologia posicional e reativa, e não ideacional e ativa, como as restantes.
Adaptado de COUTINHO, João Pereira. As Ideias Conservadoras explicadas a revolucionários e a reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2018, p. 21-31.
Retrato anônino de Bohdan Chmielnicki, c. 1560.
Bohdan Chmielnicki (c. 1595-1657) desencadeou uma revolta contra o domínio dos magnatas poloneses, em 1648. Um de seus alvos também foram os judeus, intermediários entre a maioria dos camponeses ucranianos e os donos efetivos das terras que cultivavam. Centenas de comunidades judaicas foram arrasadas, e dezenas de milhares de judeus foram mortos ou vendidos como escravos. Até o século XX, esse foi o massacre mais sangrento da história dos judeus.
Assim, os judeus saíram da Polônia e voltaram para os diversos territórios alemães, Amsterdã ou para o Império Otomano. É importante como logo a comunidade judaica se recuperou desses horrores. Em meados do século XVIII, chegou a ter 750 mil pessoas, quase metade da população urbana do país.
Adaptado de BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 145.
Pela primeira vez em dois mil anos surgiu um Estado judeu, e isso logo a seguir à aniquilação do próprio centro da vida judaica na Europa. Israel foi - e ainda é - um país de imigrantes, especialmente judeus fugidos de perseguição. Em uma sociedade que reúne gente de países tão diferentes quanto o Iêmen e a Alemanha, o Marrocos e a Rússia, os conflitos culturais são inevitáveis. Além disso, as divergências políticas em Israel são agudas. Em 1977, o nacionalista Menachem Béguin desbancou os social-democratas que haviam governado sem interrupção desde a independência. Paradoxalmente, foi ele que fez as primeiras concessões territoriais, através do tratado de paz firmado com o Egito após o Acordo de Camp David, em 1978.
As tensões étnicas entre os judeus da Europa e do Oriente amainaram ao longo dos anos, ao contrário da cisão entre as correntes políticas. O ponto culminante dessa polarização foi o assassinato do premiê Yitzhak Rabin, em 4 de novembro de 1995. O ponto crucial das disputas eram as concessões feitas aos palestinos e a questão correlata da devolução dos territórios da Cisjordânia. Mais uma vez, foi um governante outrora linha-dura, o premiê Ariel Sharon, quem ordenou a evacuação dos judeus da Faixa de Gaza, enfrentando tenaz resistência de seus aliados políticos. A polarização política só aumentou desde então. Por um lado, há o movimento dos colonos, que ganhou força desde da Guerra dos Seis Dias; no outro extremo, há o movimento pela "Paz Agora", que alcançou o zênite durante os protestos contra a Guerra do Líbano, em 1982.
Outra área de conflito em Israel diz respeito à religião. Uma minoria religiosa militante, cada vez mais disseminada, confronta a maioria secular. Israel se conceitua como uma democracia secular à moda ocidental em que diversos aspectos da vida são controlados por autoridades religiosas. No geral, a situação religiosa é semelhante à política e à étnica: é difícil desconsiderar certa polarização religiosa que impactou os primeiros sessenta anos de Israel como Estado nacional moderno.
Em que pesem todos esses atritos, que vieram a se somar ao conflito entre Israel e os árabes, o país obteve conquistas consideráveis. Entre elas, a formação de uma sociedade diversificada mas consciente de sua unidade, a modernização de uma terra antes subdesenvolvida e a prosperidade econômica. No começo do século XXI, apenas 3% da população de Israel ainda trabalha na agricultura; o país tornou-se líder em tecnologia de ponta.
Na esfera cultural, Israel também brilha: modernizou a língua hebraica, S. Y. Agnon ganhou o Nobel de literatura (1966), e o país produziu escritores como Amós Oz, A. B. Yehoshua e David Grossman. Em suas obras, esses autores propõem reiteradamente a questão da identidade judaica do Estado de Israel.
Adaptado de BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 344-346.
"O ano de 1848 despertou efêmeras esperanças para os judeus das regiões orientais da Europa Central, pois a breve revolução fez pensar que até no Império Habsburgo a emancipação se concretizaria. Nas cidades, judeus da classe burguesa frequentemente se misturavam nas barricadas com boêmios, húngaros e poloneses revolucionários, lutando juntos contra o Estado imperial autoritário e a repressão das minorias nacionais."
BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 215-216.
"Evidência de um crime", cartum sobre o Complô dos Médicos Judeus, revista Krokodil, janeiro de 1953. A publicação ajudava a propagar o mito da conspiração sionista.
Apesar de suas limitações, o experimento judaico-soviético pode ser considerado bem-sucedido - desde que se tome a assimilação como critério de sucesso. Os judeus que queriam passar a fazer parte da sociedade soviética e estavam dispostos a abandonar o judaísmo puderam fazê-lo em um grau sem precedentes. Embora a maioria dos membros da elite não fosse de judeus e a maioria dos judeus não se identificasse com o novo regime, os judeus de fato constituíam proporção relativamente alta da elite dominante do novo Estado. Os motivos eram óbvios. Conquanto excluídos pelo antigo regime czarista, faziam parte das faixas mais instruídas da população. Na União Soviética, a instrução era o caminho da ascensão social. Nas regiões onde os judeus compunham porcentagem relativamente grande da população, boa parte dos profissionais liberais de formação universitária também eram judeus. Na Ucrânia, à véspera da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, eram judeus 70 por cento dos dentistas, 59 por cento dos farmacêuticos, 45 por cento dos advogados e 33 por cento dos professores universitários. Quase todos os músicos e enxadristas internacionalmente famosos da União Soviética vinham de famílias judaicas. A maioria dos judeus comunistas fazia questão de deixar para trás o passado judaico, mas os circunstantes não perdiam uma única oportunidade de mencionar o assunto. Quando Stálin expurgou impiedosamente a elite dominante na segunda metade da década de 1930, somente uns poucos judeus conservaram posição política influente.
BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 277-279.
"As faculdades americanas restringiam a admissão de alunos judeus. Em seu jornal The Dearborn independent, o industrial Henry Ford publicou os famigerados Protocolos dos Sábios de Sião sob o título de The International Jew: The World's Foremost Problem (O Judeu Cosmopolita: O Maior Problema do Mundo). No sul, os judeus e os negros eram visados pela Ku Klux Klan, enquanto nos tumultos em 1935 no Harlem os negros culparam os judeus pela Depressão. E cerca de 30 milhões de pessoas ouviam as tiradas antissemitas do padre Charles Coughlin no rádio."
BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 274.
O primeiro kibutz surgiu em 1910 em Degania, às margens do Lago Genesaré (acima). Dez homens e duas mulheres buscavam ali realizar o sonho de criar um coletivo econômico que administrasse os próprios assuntos sem a supervisão ou mando de nenhuma outra administração. Os primeiros kibutzim eram unidades pequenas de 20 a 50 membros que pretendiam romper com o tradicional modo de vida burguês (propriedade privada, empresas capitalistas, estilo de vida urbano e família nuclear). Mas, na prática, existiam diferentes opiniões sobre o que significava essa alternativa socialista e agrária.
Como nem sempre era possível chegar a um denominador comum sobre questões que iam da criação das crianças à gestão da comunidade, logo apareceram vários estilos de kibutz. Essas instituições se multiplicaram depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Adaptado de BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 246-247.
Entre 1859 e 1871, os judeus de Odessa sofreram uma onda de violência física. Mas, a partir de 1881, os tumultos antijudaicos (pogroms, em russo) sucederam-se com frequência cada vez maior. No dia 1º de março daquele ano, o czar Alexandre II foi assassinado, e uma judia fazia parte do círculo dos assassinos. Isso bastou para que os reacionários insinuassem que a população judaica como um todo simpatizava com a revolução.
Foi nesse contexto que, em Yelisavetgrad, no dia 15 de abril, irromperam pogroms que rapidamente se espalharam para 200 a 250 outras cidades. Após vinte anos de acelerada mudança social e do surgimento de um novo discurso antijudaico, os piores atos de violência se desencadearam no dia 3 de abril de 1903, na cidade de Kishinev e duraram três dias. Uma semana antes, um panfleto havia mobilizado as massas; o material estabeleceu um vínculo entre a antiga lenda dos assassinatos rituais e novas teorias da conspiração. Enquanto a polícia e o exército russo ficavam deliberadamente de lado, 50 pessoas eram assassinadas, mais de 500 foram feridas e 2 mil judeus perderam suas casas. Os pogroms serviam para as massas darem vazão às suas frustrações políticas e econômicas. O pogrom de Kishinev motivou uma onda internacional de protestos.
Teorias de conspiração tornaram-se populares no Império Russo. Dentre elas, se destacavam os supostos indícios de um plano mundial de dominação por parte dos judeus, compilados nos Protocolos dos Sábios de Sião. Esse documento fraudulento foi publicado pela primeira vez na Rússia em 1903, sendo, provavelmente, a tradução de um texto francês já perdido. Mais tarde, os Protocolos foram traduzidos para inúmeras línguas.
Mesmo depois dos massacres de Kishnev, as teorias de conspiração e lendas de assassinato ritual permaneceram sendo elementos essenciais da opinião popular na Europa oriental. A lenda do assassinato ritual se misturava a calúnias antijudaicas acerca do abate de animais pelo método kasher.
Adaptado de BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 218-222.
A Festa da Páscoa, 1464-67, óleo sobre painel de Dieric Bouts (c. 1415-1475).
"É verdade que os judeus da Idade Média frequentemente moravam nas proximidades da sinagoga, mas não residiam em um gueto fechado. E os bairros judeus também costumavam ficar bem perto da catedral e dos mercados da cidade. Os contatos com o mundo cristão não eram raros no móvel da vida cotidiana, e em certos lugares iam além das meras relações comerciais. Muitos judeus tinham conhecimento dos costumes e práticas cristãs, assim como alguns cristãos o tinham dos costumes e práticas judaicas. E, embora as duas comunidades rejeitassem a religião da outra, havia uma transferência subliminar de influência. Os costumes judaicos para o início do ano letivo nas escolas se assemelhavam às práticas cristãs, alguns temas litúrgicos dos cruzados entraram com leves modificações nas crônicas dos mártires judeus, e o culto dos lugares santos era parecido nas duas religiões. O Sêfer hassidim, o livro mais importante para os pietistas judeus alemães do século XIII - os Hassidê Ashquenaz - , estava repleto de polêmicas anticristãs, mas ao mesmo tempo dava testemunho de numerosos contatos entre os judeus e os cristãos."
BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 102-103.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em agosto de 1789, na França, transformou radicalmente as relações políticas e sociais existentes até então. Suas ideias, e muitos valores presentes no processo revolucionário como um todo, influenciaram diversos outros povos ao redor do mundo. A noção de igualdade, especialmente perante a lei e a Justiça, era algo inteiramente novo e transformador na França do século XVIII.
A partir dessas informações, produza um texto dissertativo-argumentativo, levando em consideração as seguintes questões:
- Durante a Revolução Francesa, as aspirações de liberdade e igualdade levaram a excessos que, em última análise, tornaram a vida dos franceses ainda pior do que sob o Antigo Regime. Explique como isso se deu.
- A noção de igualdade perante a lei existe em nossa Constituição? Na prática, na sociedade brasileira, todos são tratados de forma igual, independentemente da posição social, cargos ou poder aquisitivo?
- Assim como durante a fase mais radical da Revolução Francesa, também corremos o risco de perder nossa liberdade e demais direitos em nome de ideais ou circunstâncias "maiores" (crises, pandemias, emergências climáticas, etc.)? Explique.
Uriel da Costa (Gabriel da Costa Fiuza)
Porto, 1585 - Amsterdã, 1640
Uriel da Costa ocupou um alto cargo administrativo em Portugal. Em 1616, retornou ao judaísmo em Hamburgo. Mudou-se, a seguir, para Amsterdã, a fim de praticar abertamente a sua religião. Ali, acabou por entrar em colisão com a comunidade judaica, e isso é muito revelador do abismo que separa a insistência da comunidade na estrita observância das normas judaicas e uma geração de marranos que havia crescido fora da tradição.
Da Costa se formara em um ambiente cristão e não tivera nem acesso à educação formal judaica nem a oportunidade de estudar as fontes textuais do judaísmo. Para ele, as interpretações rabínicas e talmúdicas não tinham sentido; seu judaísmo era derivado diretamente da Bíblia. Quando ele confessou isso abertamente, a comunidade o excomungou em uma cerimônia humilhante. Ele teve de se prostrar à porta da sinagoga enquanto os que entravam pisavam sobre o seu corpo. Enquanto a excomunhão era recitada, todas as velas da sinagoga foram apagadas, como se a própria vida do herege estivesse sido extinta.
O contato com outros judeus, quer por motivos particulares, quer por relações comerciais, era proibido aos excomungados. Da Costa se arrependeu e foi readmitido pela comunidade, mas não conseguiu compatibilizar isso com sua consciência e suicidou-se logo depois.
Pouco antes de se matar, Da Costa escreveu um estudo autobiográfico em que reafirmava tudo o que quisera era guardar os mandamentos de Moisés, e declarava novamente sua convicção de que a comunidade havia se afastado do judaísmo bíblico por meio das inovações agregadas à fé original.
Adaptado de BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 119-120.
"É verdade que a maior parte da criatividade cultural dos judeus espanhóis ocorreu sob domínio muçulmano, mas a distinção usual que se faz entre uma tolerante sociedade muçulmana e uma intolerante sociedade cristã é excessivamente simplista. Não só sob a dominação cristã, mas também sob a muçulmana, os judeus podiam ser encarados quer de modo amistoso, quer de modo hostil."
BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 80-81.
Depois da destruição do Primeiro Templo pelos babilônios, da profanação do Segundo Templo pelos gregos e da destruição da comunidade política judaica pelos romanos, os judeus já haviam se transformado em "mestres da sobrevivência". Cada catástrofe exigia uma reação diferente. No primeiro caso, a reação consistiu em resgatar uma tradição espiritual poderosamente eficaz; no segundo, os judeus reagiram com um misto de rebelião e conformismo; e na terceira grande catástrofe reagiram, em parte, fingindo-se de mortos.
Nesse sentido, Yohanan ben Zakai escapou da destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. e solicitou ao imperador Vespasiano que lhe autorizasse fundar uma casa de estudos em Jâmnia, ao sul de Jafa. O destacado jurisconsulto judeu admitiu que o poder político dos judeus estava acabado, e por isso se contentou em pedir "apenas" uma sobrevida espiritual. Sem suspeitar que tal pedido viria a assegurar a continuidade do judaísmo, o imperador atendeu ao desejo do rabino.
Mais uma vez, a formação de um texto sagrado foi a chave da sobrevivência. A Mishná, escrita em hebraico, originou-se na Palestina. Nos três séculos seguintes, foi seguida pela Guemará, composta em aramaico em duas versões: uma na Galileia e a outra, mais importante, na Babilônia. A Guemará, também chamada de Talmude, constitui, junto com a Mishná, o mais importante documento escrito dos judeus depois da Bíblia.
A estrutura do Talmude se caracteriza pelos debates entre os doutores da lei de diferentes séculos. As autoridades subsequentes estabeleceram a opinião vinculante; mesmo assim, via de regra, a opinião minoritária também é transmitida no Talmude. Consequentemente, formou-se uma técnica judaica de aprendizado baseada no diálogo e na discordância. Esse estilo de pedagogia se difundiu para vários continentes ao longo dos séculos.
Adaptado de BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 51-52.
No Renascimento, as três Eutopias famosas e declaradas são as de Thomas More (Utopia), Tommaso Campanella (A Cidade do Sol) e Francis Bacon (A Nova Atlântida). Um espaço de cerca de 100 anos separa o pioneiro dos outros dois, dos quais Campanella precisa de uma palavra de identificação. Foi um poeta cujos sonetos foram suficientemente bons para serem traduzidos por John Addington Symonds e por ele publicados juntamente com os de Miguel Ângelo. Campanella foi também um dos novos cientistas. Escreveu uma defesa de Galileu e um tratado de fisiologia e psicologia combinadas. Esta obra deixou vestígios na literatura americana: Poe cita-o em "A Carta Roubada", embora não o tenha lido: a referência é plagiada do Ensaio sobre o Sublime e o Belo de Burke, para onde presumivelmente veio diretamente da fonte.
A Utopia, de More, é, num sentido pleno, um livro do Renascimento. Rapidamente apareceram quatro edições em diferentes cidades. Sua tese é simples e direta: por toda parte "uma certa conspiração dos ricos" trabalha contra os pobres e faz com que seja absurdo chamar ao estado uma res publica.
Desta acusação segue-se que uma sociedade sã deve basear-se na propriedade comum dos bens. O comunismo é também a base da Cidade do Sol de Campanella, que se situa abaixo do Equador, em África. Bacon, decidido a tornar a sua "Ilha de Bensalem" um vasto instituto de pesquisa, não diz nada sobre a propriedade, mas infere-se da paz e tranquilidade gerais "daquela terra feliz" que ali não existe pobreza nem luta de classes.
Por inferência, todas as utopias nos contam o que é considerado bom nas nações atuais. As três Eutopias do século XVI são comunidades intensamente religiosas, governadas eticamente pela revelação de Cristo, quer obtida de maneira milagrosa, quer imitada por inspiração local. Com More, Campanella é tolerante para com as outras religiões; os seus profetas parecem pregar em grande parte o mesmo credo e são os apóstolos cristãos que, pelo exemplo, justificam o comunismo, tanto em Campanella como em More. Ao mesmo tempo, Campanella não acredita que o mundo foi criado do nada ou que seja eterno: deste modo se revela, aqui e ali, o cientista.
Qual seria o objetivo principal de cada um dos eutopistas? More quer a justiça através da igualdade democrática; Bacon quer o progresso através da investigação científica; Campanella quer a paz permanente, saúde e abundância através do pensamento racional, do amor fraterno e do eugenismo. Todos os três concordam que todos devem trabalhar. Quando isso acontecer, Campanella calcula que quatro horas por dia serão suficientes para criar prosperidade para todos, deixando amplo tempo livre para (segundo a sua sugestão) assistir a preleções.
Os três eutopistas também concordam que a guerra é detestável, salvo em legítima defesa ou - num dos casos - quando é travada para libertar um povo oprimido. Campanella - o único que tem vistas largas a respeito das mulheres - admite mesmo o recrutamento feminino. Segundo ele, o comércio, sendo uma das causas da guerra, deve ser limitado às necessidades absolutas. O ideal é a autossuficiência total, o que significa ausência de dinheiro.
As leis eutópicas são invariavelmente escassas, claras e afixadas para que todos as conheçam. Não há advogados; cada indivíduo defende a sua própria causa. Ao tratarem a questão do crime, os três manifestam grande indulgência. A pena de morte só se aplicaria a alguns poucos casos. Contudo, os prisioneiros de guerra são transformados automaticamente em escravos. Seus filhos, porém, são homens livres.
Os três eutopistas se deleitam a contar-nos quão saudáveis, bem parecidos, generosos e inteiramente razoáveis são os seus povos. Eles, por exemplo, trabalham energicamente e com fé, uma vez que descobriram que, se relaxam no trabalho, verão reduzidas as reservas comuns de bens e todos terão menos. A experiência do Socialismo Real, no século XX, mostrou que esse raciocínio complexo nem sempre tem lugar.
Adaptado de BARZUN, Jacques. Da Alvorada à Decadência - 500 anos de vida cultural no Ocidente (de 1500 à actualidade). Tradução de António Pires Cabral e Rui Pires Cabral. Lisboa: Gradiva, 2003, p. 130-135.
É difícil não notar o ódio que se acumulou contra as administrações americanas, pela sua própria afirmação de uma postura independente. Isso certamente tem sido verdade para os temas abertamente nacionalistas do governo Trump. No entanto, em muitos aspectos, isso não é algo novo. Pelo menos desde o fim da Guerra Fria, os europeus têm criticado as administrações americanas por sua "recusa para se juntar" aos acordos internacionais que ganharam o favor da "comunidade internacional", desde o Protocolo de Kyoto até o Tribunal Penal Internacional. Eles deploraram os EUA por sua disposição de resolver sozinhos problemas urgentes de segurança, como no caso da Segunda Guerra do Golfo, que foi conduzida sem um mandato das Nações Unidas. De fato, os europeus acham perturbador que os americanos nem sempre vejam seus próprios militares como disponíveis para servir "à comunidade internacional", e que os americanos estejam dispostos a rejeitar as Nações Unidas como a "autoridade suprema de tomada de decisões" do mundo. Em outras palavras, além de se sentir incomodada pelo conteúdo desta ou daquela política americana, a liderança europeia tem consistentemente considerado perturbador que os EUA se vejam a si mesmos como tendo o direito de agir unilateralmente, de acordo com seu próprio julgamento, a serviço de seu próprio povo, valores e interesses. Seu problema é, em outras palavras, que os EUA agem como uma nação independente.
HAZONY, Yoram. A Virtude do Nacionalismo. Tradução de Evandro Fernandes de Pontes. Campinas, SP: Vide Editorial, 2019, p. 212.
"Uma vez que a decisão sobre as ações que podem ser melhor alcançadas pelo governo federal europeu está nas mãos dos agentes desse próprio governo, não há barreiras para a redução constante da autoridade dos Estados nacionais membros que não seja o autocontrole desses mesmos agentes. Esta restrição não tem sido iminente, no entanto, e a burocracia da UE, apoiada pelos tribunais federais europeus, tem constantemente estendido seus poderes sobre os países membros em áreas como política econômica, política trabalhista e de emprego, saúde pública, comunicações, educação, transporte, meio ambiente e planejamento urbano. O princípio europeu de subsidiaridade não é, portanto, nada além de um eufemismo para o império: as nações subsidiárias na Europa só são independentes na medida em que o governo europeu determina o quanto e o como elas serão independentes."
HAZONY, Yoram. A Virtude do Nacionalismo. Tradução de Evandro Fernandes de Pontes. Campinas, SP: Vide Editorial, 2019, p. 157.
Sob uma ordem política anárquica, o desejo de autodeterminação coletiva é manifestado por meio da independência de cada clã e tribo em face de todas as demais. Em tais circunstâncias, a lealdade do indivíduo para com o clã ou tribo exige que ele vá para a guerra por causa dessas coletividades, seja em busca de seus interesses ou para obter justiça tendem a ser inalcançáveis sem a constante ameaça de violência, e todas as vidas estão sujeitas a isso.
Quando a lealdade do indivíduo é revertida para o Estado nacional, o foco de seu desejo de liberdade coletiva e autodeterminação se desloca para um nível acima. Isso não significa que ele renuncie à lealdade para com seu clã ou tribo. Mas onde a unificação das tribos sob um Estado nacional for bem-sucedida, o anseio pela liberdade e autodeterminação do clã ou tribo será contido por um intenso desejo de alcançar a integridade interna da nação. O desejo pela integridade interna da nação acaba com a guerra enquanto instrumento para perseguir os interesses do clã ou tribo, de modo que ela é retirada desse âmbito e passa a defender exclusivamente a ordem doméstica e a paz em ampla esfera nacional. Da mesma forma, a administração da justiça, que era assunto a ser resolvido, quando necessário, pela violência entre clãs e tribos, é realocada dentro de um sistema de leis, policiamento e tribunais, que respondem ao governo nacional, portanto são livres das influências de uma determinada família, clã ou afiliação tribal.
Desta forma, o Estado nacional suprime a guerra como meio de resolver conflitos domésticos, banindo-a para a periferia da experiência humana. Certamente, os servidores do Estado no governo e soldados continuam a dedicar-se às lutas entre os Estados nacionais e suas guerras. Mas agora a violência colide com a vida do indivíduo muito mais raramente, e quase sempre a uma longa distância da sua casa, onde sua família pode viver tranquilamente, mesmo quando a guerra ocorre em outro lugar. A criação dessa esfera de paz, na qual a família e a vida econômica pode se desenvolver amplamente protegida da violência, é a primeira inovação do Estado nacional, sobre a qual muitas outras inovações são construídas.
HAZONY, Yoram. A Virtude do Nacionalismo. Tradução de Evandro Fernandes de Pontes. Campinas, SP: Vide Editorial, 2019, p. 119-120.
W. Livingston Larned
Escute, filho: enquanto falo isto, você está deitado, dormindo, uma mãozinha enfiada debaixo do seu rosto, os cachinhos louros molhados de suor grudados na fronte. Entrei sozinho e sorrateiramente no seu quarto. Há poucos minutos, enquanto eu estava sentado lendo meu jornal na biblioteca, fui assaltado por uma onda sufocante de remorso. E, sentindo-me culpado, vim para ficar ao lado de sua cama.
Andei pensando em algumas coisas, filho: tenho sido intransigente com você. Na hora em que se trocava para ir à escola, ralhei com você por não enxugar direito o rosto com a toalha. Chamei-lhe a atenção por não ter limpado os sapatos. Gritei furioso com você por ter atirado alguns de seus pertences no chão.
Durante o café da manhã, também impliquei com algumas coisas. Você derramou o café fora da xícara. Não mastigou a comida. Pôs o cotovelo sobre a mesa. Passou manteiga demais no pão. E quando começou a brincar e eu estava saindo para pegar o trem, você se virou, abanou a mão e disse: "Tchau, papai!" e, franzindo o cenho, em resposta, lhe disse: "Endireite esses ombros!"
De tardezinha, tudo recomeçou. Voltei e, quando cheguei perto de casa, vi-o ajoelhado, jogando bolinha de gude. Suas meias estavam rasgadas. Humilhei-o diante de seus amiguinhos, fazendo-o entrar na minha frente. As meias são caras - se você as comprasse tomaria mais cuidado com elas! Imagine isso, filho, dito por um pai!
Mais tarde, quando eu lia na biblioteca, lembra-se de como me procurou, timidamente, uma espécie de mágoa impressa nos seus olhos? Quando afastei meu olhar do jornal, irritado com a interrupção, você parou à porta: "O que é que você quer?", perguntei implacável. Você não disse nada, mas saiu correndo num ímpeto na minha direção, passou os braços em torno do meu pescoço e me beijou; seus braços foram se apertando com uma afeição pura que Deus fazia crescer em seu coração e que nenhuma indiferença conseguiria extirpar. A seguir, retirou-se, subindo correndo os degraus da escada.
Bem, meu filho, não passou muito tempo e meus dedos se afrouxaram, o jornal escorregou por entre eles, e um medo terrível e nauseante tomou conta de mim. O que o hábito estava fazendo de mim? O hábito de ficar achando erros, de fazer reprimendas - era dessa maneira que o vinha recompensando por ser uma criança. Não que não o amasse, o fato é que eu esperava demais da juventude. Eu o avaliava pelos padrões da minha própria vida.
E havia tanto de bom, de belo e verdadeiro no seu caráter. Seu coraçãozinho era tão grande quanto o sol que subia por detrás das colinas. E isto eu percebi pelo seu gesto espontâneo de correr e dar-me um beijo de boa-noite. Nada mais me importa nesta noite, filho. Entrei na penumbra do seu quarto e ajoelhei-me ao lado de sua cama, envergonhado! É uma expiação inútil; sei que, se você estivesse acordado, não compreenderia essas coisas. Mas amanhã eu serei um pai de verdade! Serei seu amigo, sofrerei quando você sofrer, rirei quando você rir. Morderei minha língua quando palavras impacientes quiserem sair pela minha boca. Eu irei dizer e repetir, como se fosse um ritual: "Ele é apenas um menino - um menininho!"
Receio que o tenha visto até aqui como um homem feito. Mas, olhando-o agora, filho, encolhido e amedrontado no seu ninho, certifico-me de que é um bebê. Ainda ontem esteve nos braços de sua mãe, a cabeça deitada no ombro dela. Exigi muito de você, exigi muito.
Citado em CARNEGIE, Dale. Como fazer amigos e influenciar pessoas. Tradução de Fernando Tude de Souza. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2016, p. 59-61.