1. O casamento romano era essencialmente um negócio simples e privado. A cerimônia tinha um papel pequeno - na maioria dos casos, um homem e uma mulher eram considerados casados se afirmassem que eram casados, e paravam de sê-lo se ambos (ou um deles) afirmassem que não eram mais. Isso, mais uma festa ou duas para celebrar a união, era provavelmente tudo que bastava para a maioria dos cidadãos romanos comuns.
2. O principal propósito do casamento em Roma, como em todas as culturas passadas, era a geração de filhos legítimos. Estes, herdavam automaticamente a cidadania romana se ambos os pais fossem cidadãos ou se atendessem a várias condições que regiam o "intercasamento" com estrangeiros.
3. O papel adequado da mulher era dedicar-se ao marido, produzir a geração seguinte, ser um adorno, uma administradora do lar e contribuir com a economia doméstica, fiando e tecendo. Há homenagens que destacam-se por elogiar mulheres que haviam permanecido fiéis esposas de um só marido por toda a vida, e enfatizavam as virtudes "femininas" da castidade e da fidelidade.
4. Em que medida essa imagem da mulher romana foi, em qualquer período, muito mais a expressão de um desejo do que o reflexo preciso de uma realidade social, é impossível dizer. Havia, sem dúvida, muita nostalgia em Roma a respeito dos bons velhos tempos, quando as esposas eram mantidas em seu lugar. Até o imperador Augusto, numa atitude que era como um equivalente antigo de uma foto de publicidade, fazia a esposa Lívia posar no seu tear na sala frontal da casa à vista de todos.
5. Competindo com essa imagem proeminente no séc. I a.C., existia outra, de um novo estilo de mulher liberada, que supostamente desfrutava de uma vida social livre, sexual, adúltera, sem muitas restrições impostas pelo marido, pela família ou pela lei. Algumas dessas personagens eram convenientemente desdenhadas, vistas como um mundo marginal de atrizes, coristas, acompanhantes e prostitutas. Mas muitas delas eram esposas ou viúvas de senadores romanos do alto escalão.
6. A mais notória foi Clódia, irmã de Clódio, grande inimigo de Cícero, esposa de um senador que morreu em 59 a.C. Ela foi amante do poeta Catulo - e de muitos outros. Corriam boatos de que Terência teria suspeitado das relações de Cícero com Clódia. Ela era alternadamente atacada e admirada como uma sedutora promíscua, manipuladora calculista, deusa idolatrada e doida criminosa. Para Cícero, era a "Medeia do Palatino".
7. Tal material não pode ser tomado ao pé da letra. Parte dele não passa de fantasia erótica, e a outra parte constitui um reflexo clássico de meras preocupações patriarcais. Ao longo da história, alguns homens têm justificado seu domínio sobre as mulheres, comprazendo-se e deplorando ao mesmo tempo uma imagem da fêmea como perigosa e transgressora, cujos crimes, a maioria imaginários, e cuja promiscuidade sexual e ebriedade irresponsável justificam a necessidade de um controle rígido por parte do homem.
8. Apesar disso, fica claro que a mulher romana gozava em geral de maior independência do que as mulheres do mundo grego e do Oriente próximo da época, por mais limitada que pareça pelos padrões atuais. Há um contraste particularmente marcante com a clássica Atenas, onde as mulheres das famílias ricas deviam viver isoladas, largamente segregadas dos homens e da vida social.
9. Augusto relegou as mulheres às fileiras do fundo nos teatros e nas arenas dos gladiadores e, na prática, as atividades masculinas dominavam as áreas mais nobres de um lar romano. Mas isso não significava que as mulheres fossem publicamente invisíveis, e a vida doméstica não parece ter sido formalmente dividida em espaços masculinos e femininos, com áreas restritas em função do gênero.
10. As mulheres também comiam regularmente com os homens, e não apenas as profissionais do sexo, acompanhantes e artistas de entretenimento, que proviam a companhia feminina nas festas da Atenas clássica.
11. Algumas das regras legais que pautavam o casamento e os direitos das mulheres nesse período refletem essa relativa liberdade. É verdade que havia algumas normas rígidas estabelecidas no papel. Há alguma evidência de que a execução de uma esposa flagrada em adultério era direito do marido. Mas não há um único exemplo conhecido de que isso tenha acontecido, e a maioria das evidências aponta para uma direção diferente.
12. Uma mulher não assumia o nome do marido nem ficava inteiramente sob sua autoridade legal. Após a morte de seu pai, uma mulher adulta podia ser dona de propriedades por direito próprio, comprar e vender, herdar ou fazer um testamento e libertar escravos - muitos dos direitos que as mulheres na Grã-Bretanha só adquiriram a partir da década de 1870. A única restrição era a necessidade de haver um guardião nomeado para aprovar qualquer que fosse a decisão ou transação que a mulher fizesse.
13. Uma das reformas de Augusto por volta do final do séc. I a.C., ou início do século seguinte, foi permitir que as cidadãs livres que tivessem gerado três filhos fossem liberadas da exigência de ter um guardião; ex-escravas precisavam ter quatro para se qualificar. Trata-se de um engenhoso exemplo de tradicionalismo patriarcal: permitia novas liberdades às mulheres, desde que tivessem preenchido seu papel tradicional.
14. Estranhamente, as mulheres tinham bem menos liberdade quando se tratava do ato do próprio casamento. Para começar, não podiam decidir se casariam ou não. A regra básica era que toda mulher livre tinha que casar. Não existiam tias solteironas, e eram apenas membros de grupos especiais, como as Virgens Vestais, que optavam ou eram obrigadas a permanecer solteiras. Além disso, a liberdade que uma mulher podia desfrutar na escolha de um marido era bastante limitada.
15. Os pactos de casamento estiveram na base de alguns grandes desdobramentos da política romana no final da República. Porém, casamentos arranjados não eram necessariamente uniões tristes e desprovidas de sentimentos. Comentava-se que Pompeu e Júlia eram devotados um ao outro, e várias cartas que sobreviveram das que foram trocadas entre Cícero e Terência (que também se casaram de forma arranjada) são repletas de expressões de intensa devoção e amor. Do mesmo modo, há também muitos sinais de brigas conjugais, insatisfações e decepções.
Bibliografia consultada: BEARD, Mary. SPQR: uma história da Roma Antiga. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Planeta, 2017, p. 299-308.