“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Os Citadinos e as Cidades Medievais

domingo, 30 de setembro de 2018

Portal de Viru, Tallinn, Estônia. Tallinn é considerada a cidade medieval mais bem preservada da Europa.

1. Por volta de 1250, a rede urbana da Europa pré-industrial, salvo alguns pormenores, já estava traçada. Os resultados eram ainda modestos: um monstro — Paris —, com mais de duzentos mil habitantes; uma boa meia dúzia de metrópoles — italianas, com exceção de Gand —, com mais de cinquenta mil almas; sessenta ou setenta cidades com mais de dez mil habitantes e uma centena com mais de mil, todas diferentemente distribuídas em nebulosas mais ou menos espessas. Nas zonas em vias de desenvolvimento, um homem em três ou quatro, habitava na cidade; nas outras, apenas um em dez.  

2. A influência das cidades ultrapassou, estranhamente, a sua consistência demográfica: nelas se criaram escolas, se instalaram os mendigos, os príncipes fazem delas as suas capitais, o artesanato diversificou-se e o seu mercado alargou cada vez mais os seus horizontes. A cidade era, então, o centro do desenvolvimento de uma sociedade complexa que se adaptou ao sistema senhorial e à sua ideologia, mas que criou as suas próprias hierarquias. Mas a cidade não era considerada como algo isolado, e entre os citadinos ("camponeses encerrados entre muros", como afirmavam os nobres alemães) e os camponeses subsistia apenas uma diferença de cultura.  

3. Não é verdade que o «ar da cidade liberta», como pretende o velho ditado alemão tornado, desde há pouco tempo, verdade universal. Em 1200, Lille não aceitava nem bastardos nem foragidos. Bolonha e Assis impunham taxas mais pesadas aos que não eram livres e, por toda a parte, o senhor dispunha de um ano para recuperar o seu homem e, num grande número de burgos rurais, as condições pessoais não diferiam muito das da cidade. A partir de finais do século XII, contudo, os costumes opressivos ou humilhantes reduziram-se, aqui e ali, a vestígios; havia um direito citadino que se sobrepunha às jurisdições que lhe faziam concorrência e, mesmo nos casos em que o exercício da justiça permanecia inteiramente nas mãos dos senhores, a jurisprudência dos tribunais, constituídos pelos habitantes mais influentes, tendia para a unificação da condição de pessoas e bens.   

4. O simples fato de se residir durante muito tempo na cidade concretizava — mesmo para além dos sonhos de um trabalho seguro e de ascensão social — uma esperança fundamental: acima de tudo, viver com relativa segurança, ao abrigo das muralhas que sustinham as pessoas a cavalo e os salteadores; depois, não morrer de fome, dado que a cidade possuía reservas, capitais, uma força suficiente para levar a porto seguro os seus carregamentos de trigo; finalmente, a esperança de sobreviver nos períodos de desemprego e de miséria, graças à distribuição de rações, às migalhas da rapina, do poder e da caridade, as três irmãs que as muralhas citadinas tornaram mais fortes.       

5. Se se era pobre, habitar numa cidade medieval significava, em primeiro lugar, habitar com mais dois ou três um quarto no sótão. O artesão, naturalmente, morava em casa própria, onde possuía o seu forno, a sua cave e o seu celeiro, mas os servos e os aprendizes também lá moravam. Todo sofriam os inconvenientes de se estar fechado entre muros; ter, por vezes, falta de água potável, quando os poços estavam inquinados; viver no meio da imundície porque, durante os anos difíceis, muitas portas foram muradas e os lixos acumulados provocavam infecções e doenças endêmicas. Além disso, nesses espaços de encontro e de multidões, o contágio também podia ser mental: durante meses e anos, em situações de cerco, de guerra ou de peste, a cidade fechava-se sobre si própria e ficava sujeita aos boatos, à angústia, que se propagavam tão rapidamente como as doenças.      

6. A população, enquanto massa, era formada por células restritas, por núcleos familiares de fraca densidade. A família citadina era mais reduzida do que a família rural; a sua própria estrutura tornava-a frágil, pelo menos nas camadas médias e inferiores. A idade média do casamento das moças situava-se entre os 16/18 anos (Florença e Siena, 1450) e entre os 20/21 (Dijon, 1450). Também sabemos que os homens se casavam muito tarde: com mais de 30 anos, na Toscânia, com cerca de 25 anos, em Tours e em Dijon, numa época em que o nível de vida e as esperanças de promoção social tornavam a instalação mais fácil do que um ou dois séculos antes. A grande diferença de idade entre os cônjuges fez da figura da viúva muito mais comum na cidade do que no campo. A família citadina parece, assim, mais flexível, mais frágil e também menos duradoura do que a família campesina.     

7. A cidade, pela sua economia, pelo seu ambiente, pela sua ética, exerceu uma função destruidora dos laços familiares; as epidemias abundavam, a solidariedade enfraquecia, os danos morais ameaçavam toda a gente, a autoridade do chefe de família era posta em perigo. O citadino, frequentemente sem antepassados e desprovido de bens, não podia contar muito com os seus «amigos carnais». Os proletários, obviamente, era mais numerosos do que os empresários e os aristocratas se contavam pelos dedos de uma mão. As funções citadinas podiam ser múltiplas (e cada vez mais se diversificaram), mas o que imperava era a mentalidade mercantil, que moldava as sensibilidades e os comportamentos.   

8. Todos os cidadãos, quer quisessem quer não, tinham cuidado em administrar bem o seu dinheiro e estavam atentos aos movimentos do capital e a todos os factos respeitantes aos mercados de abastecimento ou de vendas. Por conseguinte, o camponês desenraizado, recém-instalado no interior das muralhas, descobria um mundo com horizontes longínquos e depressa se via obrigado a refletir sobre o valor do trabalho e do tempo. No mercado ou no seu lugar de recrutamento — centros da nova economia —, constatava que os preços mudavam constantemente, como as modas e as condições.

9. As distâncias entre ricos e pobres podiam, por vezes, reduzir-se, como aconteceu entre 1350 e 1450. Todavia, continuaram a ser enormes, mesmo quando o motor que faz oscilar homens e condições abrandava.  A atividade urbana multiplicou os casos de consciência em relação ao valor do trabalho, do lucro, do empréstimo, da riqueza e da pobreza. Ao mesmo tempo, a obrigação de um celibato muito prolongado para os jovens, a proximidade de mulheres disponíveis e a presença de um grande número de clérigos, recolocaram em discussão uma moral sexual inadaptada às novas condições de vida. Os principais centros de intelectuais transformaram-se, pouco a pouco, em universidades tradicionais.  

10. A história das cidades ocidentais está repleta de episódios de violência, de pavores ou de revoluções, resultantes de um caso de honra familiar, da participação nos conselhos ou das condições de trabalho. Essas lutas puseram em confronto «magnates» e «populares»; em Itália opuseram verdadeiros partidos dominados por clãs e, nas cidades flamengas, transformaram-se em verdadeiras lutas de classe, semeadas de massacres, exílios e destruições. Muitos citadinos, ainda que tivessem vivido longos e difíceis períodos de tensão, escaparam aos horrores da rebelião e da repressão; no entanto, todos tiveram de enfrentar, quase cotidianamente, uma atmosfera de violência.    

11. A embriaguez era uma desculpa frequente para a violência, mas não explica tudo, assim como não explicam as armas que todos usavam, apesar das ordens municipais. Não se dava muito crédito à justiça, que era mais temida do que apreciada e se revelava ineficaz e cara. O indivíduo defraudado recorria, portanto, à violência imediata. Para salvaguardar a sua honra; e era em nome da honra que os jovens castigavam as raparigas que, na sua opinião, os ofenderam. Nas sociedades urbanas, a honra — como a violência — é um fator largamente difundido (os poderosos são denominados «honoráveis»). Não há reputação sem honra e não há honra sem autoridade.   

12. Os que eram vizinhos no campo normalmente também eram vizinhos na cidade.  Na cidade, frequentemente plurinuclear, os antigos grupos conservavam a sua individualidade e, por vezes, também os seus costumes e os seus privilégios. Assim, para o citadino que era novo na cidade, o bairro era um espaço familiar que controlava facilmente e cujos pontos de referência eram outros tantos locais de convívio informal; a taberna, onde os homens se reuniam, o cemitério, onde crianças e adolescentes brincavam e dançavam, os descampados, verdadeiras praças de aldeia, dentre outros espaços. Até o século XIV, eram os vizinhos que guardavam o corpo do defunto e tinham a tarefa de o acompanhar ao cemitério municipal. Nas festas, sobretudo familiares, a coesão era regularmente reforçada e os vizinhos constituíam a parte privilegiada quando os eventos eram grandiosos. 

13. No entanto — e isto é fundamental —, o bairro não era tudo; era impossível passar a vida no meio dos vizinhos, mesmo que fossem amigos. As necessidades diárias obrigavam o citadino, por menos meios de que dispunha, a frequentar as ruas do comércio de luxo, a comprar um belo pedaço de carne no açougue, a provar um vinho de preço numa taberna famosa. As obrigações profissionais, entretanto, eram as que obrigavam mais a circular constantemente pela cidade. O local de trabalho e a vida familiar não eram inseparáveis. Os mais necessitados, iam quase todas as manhãs até à praça onde se efetuavam as contratações e viam-se condenados a andar de um emprego temporário para outro, sem nunca poderem conseguir uma posição estável.  

14. A cidade é um local privilegiado para os consumos alimentares, tanto em quantidade, como em qualidade e variedade. A partir do século XIV, o pão só representava uma parte, cada vez mais reduzida (cerca de 30%) das despesas em alimentação. Os citadinos eram decisivamente carnívoros, tanto por necessidade como por gosto. De qualquer modo, os níveis socioalimentares continuaram a ser múltiplos e o burguês dedicava um enorme cuidado à sua mesa; estava em causa a honra da família.  

15. A cidade era uma extraordinária escola de comportamento. A educação familiar era, evidentemente, fundamental. O citadino aprendia a comer com moderação, sem fazer demasiado ruído, a servir-se, a entrar numa igreja, a aproximar-se do altar, a dirigir-se a um estranho de acordo com a sua condição, a dar o tom devido à voz quando rezava, a não exteriorizar demasiado a sua dor e a não se comportar de uma forma inconveniente diante de uma imagem sagrada, no mercado ou na praça pública. Aprendia, sobretudo, a manifestar amizade ou amor e a mostrar-se cortês, já que existiam delicadezas citadinas diferentes da delicadeza da corte.   
  
Bibliografia consultada: ROSSIAUD, Jacques. O citadino e a vida na cidade. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 99-121. 

O Universo Mahler

sábado, 29 de setembro de 2018

Na última quinta-feira (27 de setembro), os alunos do Ensino Médio regular do turno da EEEM Irmã Maria Horta estiveram no Centro Cultural SESC Glória para assistir a um concerto da Orquestra Sinfônica do Estado do Espírito Santo (OSES). Nessa temporada 2018 da OSES, sob a regência do maestro Helder Trefzger (acima, de preto), o tema foi "O Universo Mahler". 

A apresentação de abertura o Concerto para trompa nº 4, em Mi bemol maior, k. 495, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), datada de 1786. Composto por um Allegro moderato, um Romanza (Andante) e um Rondo (Allegro vivace), teve como solista Luiz Garcia, na trompa. 

Todos os concertos para trompa de Mozart foram dedicados a Joseph Ignaz Leutgeb (1732-1811), um trompista berlinense, nascido em Salzburgo, Áustria. Como seus antecessores, o quarto concerto é uma peça virtuosística que permite ao solista mostrar uma variedade de habilidades. O Concerto para trompa nº 4 tem como uma de suas particularidades a presença de duas trompas como parte do acompanhamento orquestral. 

A seguir, a OSES apresentou a Sinfonia nº 5, em dó sustenido menor, de Gustav Mahler (1860-1911). Apesar de ser constituída por cinco movimentos, a Quinta Sinfonia de Mahler divide-se em três grandes seções. A primeira parte é composta pelos primeiro e segundo movimentos. A segunda parte corresponde ao Sherzo, sendo esse o trecho mais longo. Por último, a terceira parte, formada pelo Adagietto e pelo Rondó/Finale

A obra se destaca pela grandiosidade da orquestração e, sobretudo, pelo aspecto psicológico. Segundo os críticos musicais, nela convivem o mais trágico e o mais alegre dos mundos. São cinco movimentos, sendo os dois primeiros quase temáticos, explorando o lado trágico da vida. No terceiro movimento, há uma valsa, que mistura nostalgia e ironia. O movimento mais famoso é o Adagietto, utilizado no filme Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti. 

Por fim, o quinto movimento, Finale, de caráter exuberante e alegre, parte de motivos populares. Em determinado momento, o caráter angustiante dos primeiros dois movimentos se funde com a alegria dos últimos, combinando assim os elementos tão distintos de escuridão e luz que convivem na sinfonia.  

Camponeses Medievais

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Famosa iluminura do Espelho das Virgens (séc. XIII), manuscrito destinado às freiras noviças. Essa fonte icnográfica revela o trabalho no campo, realizado, em sua maior parte, pelas próprias monjas. 
Essa e outras fontes sobre o campensinato constam em ricardocosta

1. Eram muitas as diferenças que existiam na vida agrícola e nas próprias condições ambientais do continente europeu na Idade Média. Assim, embora a grande maioria dos camponeses pertencesse a uma mesma classe de pequenos proprietários, de produtores «primários» (que podemos distinguir, por um lado, dos que procediam às colheitas tribais e dos pastores nômades e, por outro lado, dos trabalhadores assalariados e dos agricultores capitalistas e coletivistas), o perfil do homem do campo mudava de uma região para outra. 

2. As provas indiretas do aumento da população europeia a partir dos séculos X e XI são, em primeiro lugar, o aumento da população urbana e do número de cidades, o recuo das florestas, dos pântanos e dos baldios, o alargamento dos terrenos cultivados e a deslocação de camponeses, de grupos de famílias ou de comunidades inteiras para novos solos, com a fundação de igrejas e aldeias e a crescente subdivisão de casas e de famílias. Dessa heróica batalha do camponês contra a natureza omnipotente, em empreendimentos isolados ou coordenados pelos senhores — como foi o caso das cidades italianas da zona do Pó —, ficaram muitos vestígios no próprio nome de numerosas aldeias do continente: por exemplo, «vilas novas», bourgs das províncias francesas do Oeste.

3. Os camponeses europeus viviam em paisagens agrárias profundamente diferentes e, como veremos, os trabalhos a que tinham de dedicar-se durante o ano também não eram idênticos. As zonas montanhosas, dos Pirenéus ao Maciço Central, dos Alpes aos Apeninos e aos Balcãs, eram geralmente caracterizadas por áreas proporcionalmente modestas de terras cultivadas com cereais, a par de grandes extensões de bosques e de prados. Outras zonas mais baixas, pouco povoadas, pantanosas e palustres, como a Maremma ou certos terrenos da Sardenha, apresentavam um aspecto que, até certo ponto, era idêntico ao da montanha. Outras zonas, como a Meseta, a Sicília do interior e muitos terrenos da Europa central, tinham trigo e outros cereais em abundância. Pelo contrário, em outros locais, como nas colinas toscanas e em outras zonas da Itália do centro e do Norte, consolidara-se, precisamente em finais da Idade Média, uma policultura intensiva de cereais, videiras e árvores de fruto.

4. Em toda a parte, a preocupação fundamental do camponês era assegurar à sua família e aos que, eventualmente, tivessem direito à terra por ele cultivada ou aos seus produtos (senhor da terra, proprietário citadino, igreja local) a produção de cereais. Estes constituíam, em toda a parte, o ingrediente principal da alimentação humana, sobretudo das classes mais baixas. Ingrediente principal, mas não uniforme, porque era precisamente a qualidade do pão (pão branco, de mistura ou de cereais inferiores como a espelta e o sorgo) que revelava a primeira, e elementar, hierarquia entre as classes sociais. Era essa procura laboriosa do pão, visível em toda a Europa, que provocava um desejo de autossuficiência presente em todas as comunidades rurais e que também não era estranho aos proprietários citadinos e às classes mais altas da sociedade. A fragilidade da agricultura perante os caprichos da natureza e a ameaça constante da carestia, juntamente com as dificuldades de transporte dos produtos agrícolas, explicam esse comportamento.     

5. Nem todos os camponeses possuíam juntas de animais para atrelar ao arado com a mesma facilidade ou nas mesmas condições. O animal geralmente era o boi, atrelado em parelha ou em várias parelhas, nos solos mais pesados. A posse, ou não, de uma parelha ou mais de animais de tiro, constituía, muitas vezes, nas comunidades rurais, um elemento decisivo de estratificação social. Os camponeses instalados nos solos compactos e profundos da Europa ocidental e central utilizavam um arado com um jogo de rodas dianteiras, relha e aiveca, muito difundido durante a alta Idade Média. Pelo contrário, os camponeses italianos a sul dos Apeninos e os de todas as zonas secas do Mediterrâneo utilizavam ainda o antigo arado de relha simétrica, que apenas sulcava o solo, mas não revirava os torrões. Finalmente, em outras zonas, como no interior da Sicília ou na Sardenha, sobrevivia ainda o primitivo arado de prego. O sistema das rotações também diferenciava a Europa a que poderemos chamar úmida e de solos profundos da Europa de solos leves. Esta apenas conhecia a alternância entre o pousio e os cereais de inverno, ao passo que a Europa úmida alternava rotações entre cereais de inverno, cereais de primavera/leguminosas e pousio, reduzindo apenas a um terço o solo deixado em repouso.    

6. A participação das famílias camponesas no mercado parece, porém, ter sido, em geral, modesta. Mais do que fornecedores de produtos de primeira necessidade, tais como trigo e vinho, que eram, sobretudo, objeto de venda por parte dos senhores, das entidades eclesiásticas e dos maiores proprietários urbanos, os camponeses eram fornecedores, nos mercados da aldeia, ou da cidade, de animais de capoeira e de ovos, de fruta fresca e seca, de queijo e leite, de produtos da floresta e de pequenos trabalhos de artesanato. O número dos animais criados pelos camponeses sedentários era, de uma forma geral modesto, quer porque nas zonas mais desenvolvidas, como as que se situavam perto de muitas cidades da Toscânia ou da Itália setentrional, os terrenos anteriormente incultos, de utilização coletiva, tinham sido privatizados e cultivados e, paralelamente, tinha sido reduzida a liberdade de pastagem nos terrenos privatizados, quer porque, em outros locais, a supremacia dos senhores sobre as comunidades camponesas incluía também a primazia do gado pertencente ao senhor na utilização das pastagens e dos baldios. Mais do que gado vacum, o camponês criava sobretudo ovelhas, porcos e cabras.   

7. Deve acrescentar-se que todo o mundo camponês era marcado por um caráter manual que não se limitava apenas aos trabalhos propriamente agrícolas e que se estendia, sobretudo nos meses mortos de inverno, a pequenas atividades artesanais, como a confecção de cestos e a construção e reparação de alfaias. As mulheres camponesas fiavam e teciam a lã, para satisfazer as necessidades da família e, em certas regiões mais marcadas pela economia mercantil, para os comerciantes de lã das cidades. De resto, todos os membros da família, e mesmo em idade muito precoce, contribuíam para o orçamento familiar.   

8. Em boa parte do continente, o inverno era a época particularmente excitante da matança do porco, também representada nos ciclos dos meses, que documentam a profunda fusão de espiritualidade cristã e de sabor agrícola da vida medieval. A monótona rotina da vida do camponês só era interrompida pelos momentos de convívio, que consistiam na participação na missa, na ida à taberna, aos domingos (uma espécie de contra-igreja ou de «igreja do diabo» condenada, repetida mas inutilmente, pelo sínodos e pelos pregadores), na frequência dos mercados, na ida ao moinho ou à loja do ferreiro, um artesão que já existia, pode dizer-se, neste final da Idade Média, em todas as zonas rurais, se tinha difundido largamente nos campos. A esses momentos, que eram mais habituais, juntavam-se outros, mais excepcionais, e que se verificavam anualmente, como as grandes festas religiosas. 

9. A maior parte da vida social e política do camponês reduzia-se às relações que mantinha com a comunidade ou com o senhor e à ligação ou ao conflito existentes entre o senhor e a comunidade. Com efeito, a monarquia ou os poderes mais altos pareciam demasiado longínquos, embora não privados de encanto e de força coerciva. Na Europa, via de regra, a situação mais comum continuou a ser a da aldeia dominada por um senhor ou por vários. Nesses locais, as terras eram esquematicamente divididas em três grandes porções: a primeira, diretamente explorada pelo senhor local, a segunda, fraccionada em concessões familiares, hereditárias formalmente ou de fato, e a terceira, constituída por florestas e baldios de utilização colectiva. 

10. As relações entre o camponês e o senhor baseavam-se, de facto, não num mero condicionamento econômico por parte de um proprietário fundiário, a que fosse possível responder com o condicionamento da força de trabalho necessária para o cultivo da terra, por parte dos camponeses, mas num condicionamento de natureza política. Na verdade, o senhor era detentor de poderes, mais ou menos vastos, de carácter militar, territorial e jurisdicional. Cada senhor julgava, localmente, os habitantes da aldeia, pelo menos no que respeitava à baixa justiça, ficando para os grandes senhores ou para a Monarquia, o «direito do sangue» ou alta justiça. Mas, na Europa, não faltavam os casos de senhores locais que também podiam condenar à morte ou exercer castigos corporais, como aconteceu, por exemplo, com muitos senhores da Itália central e setentrional.  

11. No que diz respeito à função militar dos senhores e no seu profissionalismo de homens de armas, o que os camponeses apreciavam, em primeiro lugar, era o seu aspecto defensivo e de proteção. O «encastelamento», ou seja, a fortificação de aldeias ou de aglomerados menores já existentes ou a constituição de novos aglomerados cercados por muralhas, tal como se verificou, por exemplo, em Itália, nos séculos XI e XII, com as hierarquias político-territoriais que esse fato criou, foi certamente entendido pelas pessoas do campo sobretudo como possibilidade de defesa e de refúgio contra os perigos externos que ameaçavam as suas pessoas, as suas famílias, as colheitas, os bens e os animais.  

12. Se a colaboração entre a comunidade rural e o senhor era, localmente, indispensável, o conflito de interesses também era inevitável. O conflito assumia, mais frequentemente, formas de resistência silenciosa ou de acordo, mas, por vezes, explodia em revolta declarada, quando os interesses dos camponeses eram comuns e surgiam chefes mais capazes, podendo chegar mesmo a assumir formas de rebelião regional ou supra-regional. No final da Idade Média, as expressões mais amplas, apesar de complexas e de forma alguma redutíveis apenas ao descontentamento da gente dos campos, aconteceram na França (a Jacquerie, em 1358), e, na Inglaterra (a grande revolta camponesa de 1381, durante a qual os revoltosos não só se apoderaram de Londres, como tiveram também nas mãos, ainda que por um curto espaço de tempo, o jovem soberano).

13. O camponês de finais da Idade Média passou a pressionar mais por sua liberdade individual, o que muitas vezes incluía a conquista de um direito mais alargado de vender, adquirir ou deixar a terra por herança. O camponês também tinha, por vezes, possibilidade de fazer economias, graças à venda nas cidades — que tinham evoluído — e nos mercados rurais que haviam se desenvolvido. Esses êxitos introduziam nas comunidades uma possibilidade crescente de diferenciação social. Essa diferenciação, de que há documentos um pouco por toda a parte, embora não tivesse a mesma intensidade em todas as regiões, era fomentada por uma série de fatores particulares, tais como o exercício, por parte do camponês, de certas funções que lhe eram atribuídas pelo senhor (caso muito documentado, que concedia possibilidades, legítimas ou não, de fazer fortuna) ou a prática da usura.   

14. Em finais do século XV, se houve uma recuperação demográfica, houve, também no Ocidente, uma recuperação senhorial. E a Itália central e setentrional, que tinha representado, no século anterior, o pólo do máximo desenvolvimento econômico e social do continente, foi também atingida. Em Inglaterra, essa recuperação caracterizou-se, sobretudo, pelo fenômeno das enclosures. Os senhores apoderaram-se dos campos da comunidade tradicionalmente cultivados com cereais e das terras de uso colectivo onde, durante séculos, tinha pastado o gado dos camponeses e alugaram-nos a mercadores de lã ou de gado para pasto dos ovinos.

15. O analfabetismo das camadas rurais, embora generalizado, comportava algumas exceções, especialmente nos territórios economicamente mais desenvolvidos e dominados pelas cidades, tais como certas zonas da Toscânia, onde qualquer camponês mais rico, qualquer pequeno proprietário, instruído pelo pároco da aldeia, era capaz de escrever ou, pelo menos, de ler. Muitas das crenças camponesas tinham as suas raízes na época pré-cristã ou em domínios não-cristãos. A Igreja teve de assimilar, sobretudo ao nível paroquial, muitos ritos propiciatórios, práticas animistas, formas de magia simpática. A própria ligação que o camponês mantinha com os santos era francamente contratual, ou seja, de teor mágico: as ofertas eram feitas para garantir uma boa colheita ou a clemência do céu ou a saúde dos homens e dos animais. 

16. A igreja e o cemitério vizinho alimentavam a memória colectiva da comunidade. Os sinos não chamavam apenas à oração, davam também as horas visto que os camponeses não utilizavam ainda o novo «tempo do mercador» — e serviam igualmente para combater os temporais, para manter os lobos longe da aldeia, davam o sinal de incêndio e anunciavam os perigos da guerra. A participação na vida da paróquia, tal como a participação na vida civil da comunidade, constituía, por assim dizer, uma educação política do camponês. 

17. Para as camadas camponesas, a idade do ouro era sempre mais procurada no imaginário de um passado do que num futuro vago e indeterminável; neste aspecto, a sensibilidade camponesa associava-se a uma convicção mais geral de que o mundo tinha vindo a piorar e a decair no decorrer dos séculos. O conflito, surdo ou manifesto, entre senhores e camponeses, assumia, para estes, sob uma roupagem cristã, o aspecto de uma luta pela liberdade. 

18. À aversão dos camponeses aos senhores aliou-se, a partir de certa altura e com uma intensidade variável de um extremo ao outro do continente, a aversão às camadas burguesas e aos citadinos em geral. Os camponeses censuravam a cidade pela sua fiscalidade, pela sua política anonária, que prejudicava o campo, pela atitude de desprezo dos seus habitantes para com as pessoas do campo, e censuravam, em especial, os proprietários da terra pela sua insensibilidade em relação à pobreza e às canseiras do camponês.
  
Bibliografia consultada: CHERUBINI, Giovanni. O camponês e o trabalho no campo. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 81-95. 

Ranking dos Políticos

terça-feira, 25 de setembro de 2018

No dia 7 de outubro, nós elegeremos deputados federais e estaduais, dois senadores, um governador e um presidente da República. No Congresso Nacional, há 13 legisladores do estado do Espírito Santo, sendo que os três mais pontuados no ranking dos políticos estão entre os 100 melhores do país (ver acima). 

Antes de decidir o seu voto, consulte essa excelente ferramenta: politicos.org.br

Guerreiros e Cavaleiros Medievais

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Dois templários sobre o mesmo cavalo, simbolizando a união e a entrega. Chronica Majorca (c. 1215) Matthew Paris, MS 26, f. 220. In: BARBER, Malcom. The Trial of the Templars. London: The Folio Society, 2003, p. 31. 
Disponível em ricardocosta

1. A partir da segunda metade do séc. IX, a vida na Europa tornou-se dura e perigosa; sobreviver constituía, por si só, uma preocupação constante e um desejo obsessivo. As incursões dos vikings, dos magiares e dos sarracenos arrasaram as costas e fustigaram o interior da Europa mediterrânica oriental. As lutas contínuas entre as aristocracias agravou o quadro, e o continente encheu-se de castelos. Foi nesse contexto, mais precisamente no séc. X, que uma grande revolução praticamente eliminou a velha distinção da sociedade entre liberi (livres) e servi (escravos). Em seu lugar, despontou uma distinção, mais prática e significativa, entre milites (guerreiros) e rustici (camponeses).

2. A partir do séc. VIII, a tendência para a especialização da profissão das armas e, em seguida, para a desmilitarização geral das sociedades romano-bárbaras fez com que as tradições antigas se mantivessem apenas nos grupos de elite que eram as companhias de soldados agrupadas em torno de príncipes; e a entrega solene das armas tornou-se mesmo patrimônio dos rituais que assinalavam o acesso dos jovens príncipes ao mundo do poder. Entre os séculos X e XI, o profissional da guerra era, portanto, e em geral, o membro de uma comitiva comandada por um grande senhor ou chamada a defender a sua morada. 

3. Os recontros entre os grandes detentores de domínios feudais, cada um deles dotado de escoltas armadas, tornou-se o elemento característico da vida dos séculos X e XI, ou seja, do período correspondente à pulverização dos poderes públicos e à chamada «anarquia feudal». É a época em que os soldados são, acima de tudo, tyranni, praedones, e em que as suas violências contra pessoas indefesas e, em geral, contra todos aqueles que a Igreja define como pauperes (os próprios clérigos, as viúvas, os órfãos e, em geral, os incapazes de se defenderem e os que não dispõem de nenhuma forma de tutela) são denunciadas cada vez com mais frequência, especialmente pelas fontes episcopais.  

4. Os chefes das dioceses, logo apoiados por aristocratas e outros, todos preocupados com a violência crônica que impedia que se iniciasse ou retomasse o comércio e a vida econômica que deram início ao movimento da pax e da tregua Dei. Santuários, hospícios, baixios e estradas foram colocados sob uma tutela especial (pax), e qualquer um que começasse um ato de violência nesses locais estava sujeito à excomunhão. A mesma salvaguarda se estendeu aos pauperes. Se o homicídio continuava a ser um pecado mortal, a tregua Dei fazia com que o assassínio cometido entre a tarde de quinta-feira e a de domingo, implicasse excomunhão.    

5. Esse movimento ocorreu paralelamente a uma fase de vigorosa expansão nas empresas militares contra o Islã, tanto no mar quanto na Espanha (mediante a Reconquista). No plano da tradição cultural, a consequência dessa tensão e desses recontros foi a epopeia cristã-nacional do Cantar de mio Cid, mas também a profusão de poemas épicos e de lendas em que a fé cristã e o sentido do milagre, apoiado no relato de frequentes aparições e no culto das relíquias e de santuários, se traduziram num «cristianismo de guerra» muito original, que coincidiu com a exaltação da espiritualidade cristã com a glória militar e mostrou, com frequência, a Virgem e S. Tiago, juntamente com os «santos militares» S. Jorge, S. Teodoro, Martinho e outros, em plena batalha, entre estandartes brancos. Em certos relatos referentes à conquista normanda da Sicília, nos textos que narram a gesta dos marinheiros pisanos no assalto de Al-Mahdiad, em 1087, ou, 25 anos mais tarde, das Baleares, ou no texto mais famoso da poesia épica ocidental da época, a Chanson de Roland, respira-se um clima análogo.   

6. As chansons são, sem dúvida, uma enorme janela aberta para a mentalidade das cortes e dos mercados, dos cavaleiros e dos leigos de classe inferior que se deliciavam com a narração das gestas cavaleirescas. Por outro lado, convém não interpretar mal o seu espírito cristão, apesar de ardente e sincero, entendendo-o como resultado de uma teologização do espírito militar por parte da Igreja. Não só em muitíssimos episódios — como, por exemplo, nas cenas de baptismo forçado dos sarracenos —, mas, mais em geral, no espírito que anima essa literatura, o tipo de cristianismo proposto é, explicitamente, leigo e muitas vezes folclórico, com frequência irreverente e outras vezes reivindicativo de uma sacralidade específica da profissão de cavaleiro, diferente e, talvez, melhor e mais grata ao Senhor do que a exercida pelos padres. Parece ser esse o clima que anima, por exemplo, cenas como aquelas — bastante frequentes — em que os cavaleiros, à beira da morte, se confessam e se absolvem uns aos outros.  

7. Os laços entre as livres e talvez espontâneas confrarias de «cavaleiros pobres» da época das «ligas da paz» e da questão das investiduras e as ordens religiosas-militares, são evidentes a partir da confraria criada por Hughes de Payns, que, originariamente, parece ter assumido a denominação de pauperes milites Christi, consagrando-se à defesa do Santo Sepulcro. No entanto, em 1128, passou de fraternitas a autêntica religio, a Ordem. Como, entretanto, Balduíno II, rei de Jerusalém, tinha permitido que esses cavaleiros se alojassem no recinto do Haram esh-Sharif, junto das duas mesquitas da Cúpula do Rochedo e de Al-Aqsa (que, para os cruzados eram, respectivamente, o Templum Domini e o Templo de Salomão), a Ordem adotou o nome de «Templária», que conservaria até 1312, ano da sua dissolução por vontade do papa Clemente V, em consequência de uma série de escândalos em que essa Ordem esteve envolvida, sobretudo devido às enormes riquezas que acumulara e que eram cobiçadas pelo rei francês Filipe IV.  

8. A Ordem do Templo é apenas uma das muitas ordens religiosas-militares fundadas, durante o séc. XII, na Terra Santa e na Península Ibérica e, mais tarde, também no Nordeste europeu (onde teriam tido a missão de conquistar e colonizar o mundo eslavo e báltico). Outras dignas de ser lembradas são a dos Hospitalários de S. João de Jerusalém (a partir do séc. XV, «de Rodes» e, a partir do séc. XVI, «de Malta») e de Santa Maria, denominada «Teutônica». Posteriormente, elas acabaram por se difundir um pouco por toda a Europa, não só graças às conversões de membros da aristocracia militar que, atraídos pela sua fama de austeridade e de ascética coragem, acorreram às suas fileiras, mas também devido ao seu sucesso inicial e às doações que lhes eram concedidas. A fama de avidez, de violência e de corrupção que algumas delas adquiriram e em que nem sempre é fácil distinguir a relação com a realidade histórica da propaganda interessada de forças contrárias, nada retira ao significado original da sua experiência. 

9. A recuperação de temas de carácter místico-sagrado por parte de autores leigos ou em textos destinados a leigos era nítida, no decorrer do século XII e, depois, em parte do século XIII, enquanto as cerimônias do revestir da armadura — que, apesar de alguns esforços nesse sentido, nunca tinham assumido um caráter verdadeiramente sacramental e nunca tinham sido celebradas nem na Igreja, nem na presença de religiosos (apesar de, em finais do século XIII, o Pontifical de Guilherme Durand fornecer uma sistematização litúrgica desses ritos) — foram adquirindo formas cada vez mais análogas às dos sacramentos e, em especial, do batismo. 

10. O elemento ativo da pequena aristocracia europeia dos séculos XII e XIII — sobretudo francesa, mas também, imitando o modelo francês, anglo-normanda, alemã, espanhola e italiana — era constituído pelos iuvenes, ou seja, pelos cavaleiros recentemente «sagrados», que tinham acabado de receber as armas durante a cerimônia do revestir da armadura e que abandonavam, agrupados em companhias mais ou menos numerosas, o seu ambiente normal. Eles perseguiam sonhos, talvez, mas sobretudo ideais, sempre muito concretos, mas nem sempre alcançados, de segurança e de prestígio social. O seu objetivo máximo era um bom casamento, se possível com uma dama de condição mais elevada e de maiores capacidades econômicas. 

11. Os séculos XII e XIII, que, tradicionalmente, costumam ser apontados como o auge da época equestre na nossa Idade Média, assinalaram, sem qualquer dúvida, uma espécie de vitória da cavalaria. Poetas, tratadistas e até teólogos e hagiógrafos não falavam de outra coisa; cronistas e pintores refletiram constantemente o esplendor das cerimônias do revestir da armadura; a alta aristocracia e mesmo o rei abandonaram os seus títulos gloriosos para se ornarem simplesmente — e foi o caso de todos os grandes monarcas da época, desde Ricardo Coração de Leão a S. Luís — com o título de cavaleiro; aliás, é a isso que aspiravam intensamente as classes ascendentes, os novos ricos das sociedades urbanas, a «gente nova».  

12. Os cantares e os romances cavaleirescos sofrem profundamente o fascínio dessa Ásia e propagam também, a nível popular, as lendas do Paraíso Terrestre, do reino do Prestes João, dos países das Amazonas, do império secreto e terrível do Velho da Montanha, chefe da Seita dos Assassinos. A atração pelas terras longínquas e pelos seus costumes, que teve um peso tão decisivo na cultura europeia, entre os séculos XVIII-XIX, e que deu lugar ao exotismo que se adequou aliás às conquistas coloniais, tem as suas raízes, precisamente, na literatura cavaleiresca medieval. Esta, por sua vez, buscou os seus conteúdos à literatura geográfica antiga e à espiritualidade cruzada (e que confinou, por isso, com o espírito missionário que, sob outros aspectos, se afigurou longínquo e estranho a essa espiritualidade), mas que, simultaneamente, não ficou indiferente às vozes provenientes dos inúmeros testemunhos dos viajantes e, até, dos missionários.  

13. A moda do torneio (batalha simulada), desconhecida até finais do séc. XI, surgiu repentinamente em princípios do séc. XII: desconhecido nas chansons mais antigas, o torneio abunda na literatura cavaleiresca posterior, com as nuvens de poeira levantadas pelos cascos dos cavalos, os gritos dos participantes, os incitamentos do público, os apelos dos arautos e o fragor das armas que se chocam e das lanças que voam em pedaços em direção ao céu. A simbologia heráldica propaga-se rapidamente, a partir de então, certamente para distinguir os vários campeões no meio da mêlée. E gerações inteiras de cavaleiros são dizimadas — concorrendo, assim, para evitar a pulverização das heranças e, por conseguinte, para conservar sólidas as linhagens e as suas fortunas — pela morte em torneio, talvez mais do que pela morte em combate. De fato, em combate, os cavaleiros não pretendiam matar-se uns aos outros, mas aprisionar o inimigo para depois o poderem resgatar; em compensação, os acidentes mortais, no decorrer de um torneio ou de uma justa, eram extraordinariamente numerosos, bem como os graves efeitos das quedas desastrosas, quando o guerreiro desabava sob o peso das suas armas de ferro.  

14. Os cavaleiros, os trovadores, os arautos e os jograis que giravam à volta dos torneios não se cansavam de os elogiar como escolas de coragem e de lealdade. Chegavam mesmo a apresentá-los como espelho de valores cristãos, oportunidade de adestramento para a guerra e ocasião para se combinar expedições ao ultramar. De fato, era, por vezes, durante um torneio ou no seu final que muitos cavaleiros faziam voto de partir para a guerra contra os infiéis. Esses votos (de inspiração, por vezes, devota e, outras vezes, erótica ou mera ostentação de valentia) eram caros à tradição cavaleiresca. A Igreja, porém, durante muito tempo revelou-se pouco indulgente a respeito dos torneios. No séc. XIII, Jacques de Vitry demonstrou como, num torneio, se cometiam os sete pecados mortais.    

15. Os soberanos dos nascentes estados unidos europeus reagiram à crise da sociedade cavaleiresca a dois níveis distintos: conseguiram ir privando, progressivamente, a baixa nobreza (e, onde e quando puderam, também a alta nobreza) dos seus poderes e das suas prerrogativas jurídicas e sociopolíticas, num processo longo e não desprovido de períodos de estagnação e de ocasionais inversões de tendência (como a célebre «refeudalização» da época protomoderna), mas, essencialmente, bastante coerente; criaram para a nobreza, no sentido de melhor a ligarem a eles, uma série de «ordens de corte» copiadas das ordens militares religiosas e dos modelos propostos pela literatura cavaleiresca (o mais típico dos quais era, naturalmente, a Távola Redonda), das fantasiosas e imaginárias cerimónias, das faustosas insígnias, das vestes luxuosas, mas privadas de um significado que não estivesse ligado à corte.

Bibliografia consultada: CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 54-78. 

Coisas que Marx queria abolir

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Uma marca da obra O Manifesto Comunista, publicado por Friedrich Engels e Karl Marx em 1848 é a sua honestidade. Além da abolição da propriedade privada, a suma de toda a teoria comunista, O Manifesto defende a abolição da família (uma instituição burguesa), do indivíduo e da individualidade, as verdades eternas, as nações e o passado. 

Saiba mais ao ler o artigo disponível em Mises Brasil.  

#15Fatos Monges Medievais

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Imagem do final do século XII de um monge copista, possivelmente representando o Venerável Beda (c. 673-735). Yates Thompson MS 26, f. 2r.

1. Na atualidade, desapareceram quase completamente as multidões de solitários - os "eremitas" - que à margem do mundo monástico institucionalizado, sepultavam-se aos ermos campestres e nos bosques para reaparecerem, periodicamente, entre os homens, evocando com as suas figuras selvagens a ameaça da morte e a urgência da conversão. Mesmo os mosteiros e os priorados, contados aos milhares na Europa do século XII, estão reduzidos a poucas centenas em todo o mundo. 

2. Na autoconfiança que emergiu gradualmente da cultura monástica, antiga e medieval, e que foi cada vez mais reforçada por um largo consenso político e social, os únicos cristãos verdadeiros eram os monges. 

Ainda nos séculos IV e V, com o surgimento das primeiras e tumultuosas experiências anacoréticas e com a constituição dos primeiros modelos de biografias monásticas largamente exportados (sobretudo, a Vita S. Antonii, de Atanásio) que esboçou-se a relação entre a figura do monge, a "santidade" pessoal" e a fruição de poderes carismáticos e sobrenaturais. Isso veio a ser um elemento fundamental da religião medieval e da relação entre o mosteiro e a sociedade.  

3. Entre os séculos X e XI, o processo de redução do cristianismo autêntico à vida monástica atingiu a sua expressão máxima e, até certo ponto, definitiva. A memória desses tempos chegou-nos, sobretudo, através das vozes de monges - ou de sacerdotes profundamente influenciados pelos monges. Rastrear as origens desse modo de vida é, ao mesmo tempo, um desafio e uma necessidade para se compreender o desenvolvimento da sociedade monástica. 

4. A maneira de viver dos primeiros monges tem as suas origens na época da pregação apostólica. Os cristãos primitivos, segundo o livro de Atos dos Apóstolos, tinham tudo em comum. Contudo, após a morte dos apóstolos, o fervor da multidão dos crentes começou a esfriar e, alguns, achavam que não haveria prejuízo algum em conservarem seu patrimônio, professando ao mesmo tempo a sua fé em Cristo. No entanto, entre aqueles em quem o fervor apostólico se mantinha vivo, abandonaram as cidades e fixaram-se nos subúrbios e locais mais isolados, começando a praticar, particularmente, as regras que tinham sido estabelecidas pelos apóstolos para todo o corpo da Igreja.    

5. Pouco a pouco, separados da massa dos crentes e, pelo fato de se absterem do matrimônio e de se manterem afastados dos parentes e da vida deste mundo, foram chamados monachi. Suas comunidades foram chamadas posteriormente de cenobitas. Este foi o único e mais antigo tipo de monges.  

6. A vivência livre de Deus dispunha-se segundo as linhas sapientes de um método, colocado sob a direção e a vigilância de um superior hierárquico, ao passo que a renúncia ao mundo e a luta contra as suas seduções e contra as tendências pessoais passavam necessariamente pela renúncia e pelo abandono da vontade própria. A opção monástica, enquanto atuação individual da vida cristã e, por isso, confirmação e concretização das promessas do batismo, transformou-se, em certa medida, num ponto de chegada, no estádio em que a maioria dos monges deveria e poderia fixar-se, em relação à escala ininterrupta da árdua e solitária ascese em direção ao divino, que era o privilégio de poucas experiências de exceção.  

7. Entre os séculos V e VI, floresceram novas fundações monásticas, o que sem dúvida foi favorecido pelas condições cada vez mais precárias da vida civil. O monge não era, então, apenas uma alma em busca de Deus na oração e na solidão, mas também um homem que necessitava de tranquilidade e de paz, num mundo cada vez mais hostil e difícil. Os impulsos que deram origem às primeiras comunidades de mulheres eram, em grande medida, semelhantes.

Cassiodoro, ministro e conselheiro do rei godo na Itália, Teodorico, o Grande (séc. VI), pretendeu fazer da comunidade monástica de Vivarium um centro de conservação e de transmissão da cultura clássica, ainda que em função da sua recuperação e da sua integração na tradição cristã. O ambicioso projeto, no entanto, não resistiu à desagregação e à ruína das estruturas civis posteriores à invasão lombarda. 

8. Nesse mesmo período (séculos V-VI), apesar da variedade das orientações ascéticas e das tradições de espiritualidade, existiam alguns aspectos de fundo que se configuraram como amplamente comuns. Assim, a tendência era fazer do mosteiro um mundo à parte, autossuficiente e perfeitamente organizado em todos os aspectos: um centro de oração, de trabalho e também de cultura. O mosteiro era, portanto, uma ilha no interior de uma sociedade que se prefere ignorar, a não ser naquilo em que é necessário para o bem-estar espiritual e material dos monges e apenas na medida em que o é; daí, a tradicional obrigação da hospitalidade e a assistência concedida aos pobres. Nessa mesma época, as regras monásticas geralmente limitavam-se a recomendar ao monge que renunciasse a qualquer forma de propriedade privada, sem que isso implicasse a exclusão da propriedade coletiva. 

9. A partir dos séculos VI e VII, reis e poderosos da Europa deram um excepcional impulso às fundações monásticas. Nessa mesma época (e até o século VIII), as missões de monges irlandeses e anglo-saxônicos invadiram o continente, com um notável suporte local por parte dos soberanos - francos, sobretudo - e de Roma. Em pouco mais de século e meio, desde Columbano a Bonifácio, as fundações sofreram um incremento excepcional. Luxeuii (590), Bóbio (613), Saint-Denis (650), Jumièges (654), S. Vicente de Volturno (703-708), Reichenau (724), Fulda (741), Saint Gall (750) são nomes famosos que não devem, porém, fazer esquecer o fato de os mosteiros se contarem já por centenas. Essa primeira grande vaga monástica alcançou seu apogeu nos anos da hegemonia carolíngia.

10. As regras dos mosteiros normalmente previam, para todos os monges, a obrigação de aprenderem a ler (pelo menos até aos 50 anos de idade; cf. a Regula magistri). Isso colocava o monge num nível de instrução que já não correspondia ao nível comum. Essa obrigação estava estreitamente ligada à vida religiosa do monge - as regras da tradição ocidental estipulavam, geralmente, duas a três horas para as leituras espirituais. A leitura também era a premissa necessária para a meditatio, a repetição oral de textos bíblicos aprendidos de cor. Esse contexto exigia que o mosteiro dispusesse de biblioteca, escola, scriptorium. Tais instrumentos o transformavam, naturalmente, num local único e culturalmente privilegiado. 

11. A perpetuação dos cultos antigos, dos lugares tornados sagrados devido a túmulos e a sinais, símbolos e objetos carismáticos, cruzava-se e enriquecia-se com cultos e lugares novos, prolongando-se na realidade viva dos cenóbios, que não apenas guardavam os túmulos, as "relíquias" e as memórias dos santos fundadores, como eram igualmente centros de vida santa. Por conseguinte, ensejavam benefícios, graças e esperança de alívio e de salvação, para quem estivesse em contato com eles. Os mosteiros tornaram-se lugares de veneração, que se revelavam terríveis para os seus profanadores, mas que eram garantia e promessa de orações e de graças para seus benfeitores. Inspirados no apelo de Paulo para que se socorresse materialmente a comunidade dos "santos" de Jerusalém (Rm 15:25-27), indivíduos empenhavam-se em manter, com ofertas e doações de bens, as comunidades monásticas, como meio de compartilhar, em certa medida, dos seus méritos e de se beneficiar com as suas graças.   

12. As invasões dos sarracenos (século VIII), bem como as dos magiares e dos normandos (século IX) assolaram diversos mosteiros, rompendo e destruindo, em muitos casos, a continuidade das fundações e obrigando as gerações posteriores a recomeçarem, em certa medida, do zero num quadro de desolação e ruína. Isso, contudo, não interrompeu a continuidade da memória e da lógica que favoreciam, apoiavam e orientavam as fundações monásticas. A partir do século X, começou a recuperação monástica, primeiro lentamente, e depois de forma cada vez mais acelerada. Reis e grandes senhores, principalmente, apostaram nos mosteiros como centros religiosos de oração, herdades agrícolas e locais de expansão e reforço político no território.  

13. O monaquismo reformado, no entanto, logo se viu na necessidade de se defender das intromissões e da ambição dos poderes locais. Isso provocou um movimento de concentração e de associação. Pouco a pouco, os mosteiros deixaram de ser centros isolados, submetidos à jurisdição do respectivo bispo diocesano e às prepotências senhoriais, quer eclesiásticas quer leigas. Tenderam a congregar-se em torno de um único centro, organizando-se em grandes congregações que ambicionavam obter de Roma a isenção da jurisdição do prelado local. Um exemplo notório é Cluny, fundado em 910 pelo abade Bernon com o apoio de Guilherme de Aquitânia. Entre os séculos XI e XII, havia se tornado a congregação religiosa mais importante e autorizada da cristandade.

14. Em torno dos mosteiros, como em círculos concêntricos, eram acolhidos, em condições e a níveis diferentes, todos aqueles que têm uma determinada relação com ele. Para as pessoas de condição humilde ou que se encontravam em dificuldades devido a situações de autonomia e de subsistência precárias, quando não se limitavam a pedir, mais ou menos irregularmente, assistência ou asilo, a solução era "dar-se" ao mosteiro, muitas vezes oferecendo-se a si próprios, a sua roupa ou a sua pequena terra, em troca de proteção, ajuda e orações. 

Obra de mediação, de pacificação, de orientação, são portanto características fundamentais da presença monástica em relação aos poderes seculares, como a tentar exprimir, mesmo para além da ilha do claustro, essa realidade de paz e comunhão fraterna e ordenada que continua a ser um dos seus valores mais tenazmente ambicionados. 

15. A opção monástica era também uma opção de cultura e de conhecimentos; para os filhos da nobreza, representava a única alternativa real à profissão das armas. Não foi por acaso, portanto, que todas, ou quase todas, as biografias monásticas destes séculos revelam a repugnância do próprio herói pelos exercícios e pelas violências cavaleirescas e a sua irresistível vocação pela literatura, a meditação e a oração. A vocação para a santidade acompanhava a par e passo a vocação para a cultura.

Bibliografia consultada: MICCOLI, Giovanni. Os monges. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 33-54. 

Educação de Ouro

domingo, 16 de setembro de 2018

A Rede de Educação Adventista estende-se por 165 países, e conta com quase 8 mil instituições que atendem da educação infantil ao ensino superior. No Brasil, está presente há mais de 120 anos, e conta com 458 unidades escolares. 

Eu tive o privilégio de estudar em escolas adventistas. Desde 2014, tenho a honra de lecionar História no Colégio Adventista de Vitória (CAV). Já lecionei em diversas outras escolas e, inclusive, desde o final de 2016, acumulo outra cadeira, na rede pública estadual. Dedico-me de coração ao ofício que escolhi, e empenho-me da mesma forma, independentemente de onde atue. Afinal, cada contexto educacional é um desafio e uma grande oportunidade de crescimento profissional e pessoal. No entanto, tenho que confessar que tenho uma ligação especial com a Educação Adventista. Afinal, trata-se de uma rede cujo objetivo vai muito além do ensino, educando para a eternidade. 

Nesse sentido, uso este espaço para fazer menção a um prêmio que recebi na manhã de hoje - o Prêmio Giz de Ouro (segmento: Ensino Médio). Foi uma grande honra recebê-lo das mãos dos administradores responsáveis pela Educação Adventista para os municípios do centro-norte do Espírito Santo. Sou grato a toda a equipe do CAV e da AES, bem como aos pais e alunos que acreditam em nosso trabalho. Podem acreditar que seguirei firme nessa missão de educar. E a todos que ainda não conhecem essa rede de ensino, fica o convite para que o façam.    

O Governo Sarney (1985-1989)

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

José Sarney, em 28 de fevereiro de 1986. Na ocasião, ele anunciou ao país um conjunto de ações econômicas.

Tancredo Neves, eleito pelo Colégio Eleitoral ao final do ciclo militar, morreu antes de tomar posse como presidente da República. O vice em sua chapa, José Sarney de Araújo Costa, assumiu então o posto presidencial em 15 de março de 1985 e governou até 15 de março de 1990. 

Sarney fora imposto ao PMDB e era um oposicionista de última hora, o que colocou o país numa situação ainda mais sensível. Além disso, carecia de autoridade na Aliança Democrática. Ele começou a governar com o ministério nomeado por Tancredo. Do ângulo político, as atenções se fixavam em dois pontos: na revogação das leis que vinham do regime militar estabelecendo ainda limites às liberdades democráticas - o chamado "entulho autoritário"; na eleição de uma Assembleia Constituinte, encarregada de elaborar uma nova Constituição. 

O grande mérito do governo do governo Sarney foi o respeito às liberdades públicas. Apesar disso, Sarney não rompeu alguns elos com o passou autoritário. Por exemplo, o Serviço Nacional de Informações (SNI) foi mantido e continuou a receber recursos substanciais. Em maio de 1985, foram estabelecidas eleições diretas para a presidência da República. Os analfabetos passaram a ter direito a voto e todos os partidos políticos foram legalizados. O PCB e o PC do B, no entanto, converteram-se em organizações minoritárias diante da crise do stalinismo e o crescente prestígio do PT nos meios de esquerda.

Nas eleições de novembro de 1985, foram eleitos deputados e senadores encarregados de elaborar a nova Constituição. Também foram eleitos os prefeitos de 201 cidades. O PMDB saiu-se numericamente bem, ganhando em 19 das 25 capitais. Nessas eleições, ficou claro que, se o populismo como sistema estava morto, algumas figuras políticas populistas (como Jânio Quadros, eleito prefeito de São Paulo) continuavam vivas. 

Em 1985, o quadro econômico era menos grave do que em anos anteriores. Havia um saldo na balança comercial de 13,1 bilhões de dólares. No entanto, subsistia o problema das dívidas interna e externa, bem como o da inflação (235,5 % em 1985). Ao final do ano, o ministro da Fazenda, Francisco Dornelles, foi substituído por Dílson Funaro. A situação política e econômica se agravava. Assim, no dia 28 de janeiro de 1986, Sarney anunciou ao país o Plano Cruzado. 

Segundo o plano, o cruzeiro seria substituído pelo cruzado, na proporção de 1000 por 1; a indexação foi abolida; os preços e a taxa de câmbio foram congelados por prazo indeterminado e os aluguéis, por um ano. O salário mínimo foi reajustado e os reajustes posteriores seriam automáticos sempre que a inflação chegasse a 20%. Surgiram os "fiscais de Sarney", populares que ocupavam os supermercados na vã expectativa de que o congelamento de preços teria resultado. De qualquer modo, com os preços congelados, houve uma verdadeira corrida ao consumo, e o desequilíbrio das contas externas aumentava. Em novembro, quando se realizaram eleições, o Plano Cruzado já havia fracassado. 

A crise nas contas externas levou o Brasil a declarar uma moratória em fevereiro de 1987. Seguiu-se um clima de decepção e desconfiança por parte da população quanto aos rumos da economia. Nesse mesmo mês e ano, teve início o trabalho da Assembleia Nacional Constituinte, que estendeu-se até outubro de 1988. O texto da Constituição, quando afinal ela foi promulgada, foi muito criticado por entrar em temas que tecnicamente não são de natureza constitucional. Isso refletiu as pressões dos diferentes grupos da sociedade, e a Constituição refletiu o clima de instabilidade vivido pelo país. Além disso, a Carta Constitucional mostrou-se anacrônica na regulação da economia. Apesar disso tudo, a Constituição de 1988 refletiu o avanço ocorrido no país especialmente na extensão de direitos sociais e políticos aos cidadãos em geral e às minorias. 

Bibliografia consultada: FAUSTO, Boris. História do Brasil. Colaboração de Sérgio Fausto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013, p. 439-448.