“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A Sacrílega Idade Média

quarta-feira, 31 de maio de 2023

 

À esquerda, um monge (que segura um saco de dinheiro) joga cartas com uma freira. A cena é uma denúncia à hipocrisia da Igreja, no contexto da Reforma Protestante. 10 de Copas, c. 1535, de Hans Schäufelein (c. 1480-c. 1540), The Playing Cards of Hans Schäufelein. Germanisches Nationalmuseum, Nuremberg.

Nos dias de festa, conta Nicolau de Clemanges, pouca gente ia à missa. Não se mantinham lá até ao fim e contentavam-se com aspergir-se de água benta, ajoelhar diante de Nossa Senhora ou beijar a imagem de certo santo. Se ficavam até ao erguer da hóstia gabavam-se do fato como se tivessem prestado um favor a Cristo. Nas matinas e vésperas o padre e o ajudante eram as únicas pessoas presentes. O cavaleiro da aldeia faz o padre esperar que ele a mulher se levantem e se vistam para começar a dizer missa. As festividades mais sagradas, mesmo a noite de Natal, segundo Gerson, são passadas no deboche, jogando as cartas, jurando e blasfemando. Quando são repreendidas, as pessoas apontam o exemplo da nobreza e do clero, que se comportam da mesma maneira com impunidade. "Também nas vigílias", diz Clemanges, "se entoam canções lascivas, e danças, mesmo na igreja; os padres dão o exemplo jogando os dados e observando".

HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. 2ª edição. Tradução de Augusto Abelaira. Lousã, Coimbra: Ulisseia, s/d, p. 167. 

A Patologia do Jacobinismo

domingo, 28 de maio de 2023

 

Celebração do Culto ao Ser Supremo, na França revolucionária.

Muitos líderes da revolução seguiram o que viram como apelo de Rousseau para uma nova mitologia, uma nova religião civil, para substituir tanto as superstições do cristianismo tradicional quanto o árido racionalismo do Iluminismo. No auge do seu poder, Robespierre montou um espetáculo particularmente extravagante. Os deputados da Assembleia Nacional eram "cercados por grupos de meninos com grinaldas de violetas nas cabeças, por rapazes com coroas de murta, por homens mais velhos usando folhas de carvalho, hera e oliveira... Uma orquestra começava a tocar; os vários grupos começavam a cantar; os rapazes sacavam espadas e juravam aos mais velhos defender a pátria...".

Essas cenas fortemente contrastantes - donzelas de branco carregando feixes de trigo alternando com turbas urrando diante de uma guilhotina encharcada de sangue - ilustram a patologia do jacobinismo e de todas as revoluções milenaristas subsequentes. As pessoas devem ser subjugadas e esmagadas, todas as suas tradições e vínculos habituais destruídos, para serem reconstruídos num coletivo mais puro, mais harmonioso. Selvageria e sadismo correm em contraponto a explosões de emoção e afeto, já que os defeitos das pessoas são purgados pelo terror para permitir que sua subjacente bondade natural venha à tona.      

NEWELL, Waller R. Tiranos - Uma História de Poder, Injustiça e Terror. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Cultrix, 2019, p. 171.

Projeto Vitória

terça-feira, 23 de maio de 2023

 

O Projeto Interdisciplinar Vitória será desenvolvido ao longo do 3º bimestre, pelos alunos do 3º ano EM. A entrega do relatório e do vídeo ocorrerá nos primeiros dias do 4º bimestre. O objetivo será, em primeiro lugar, fazer um levantamento de seis dos principais problemas do município de Vitória, capital do Espírito Santo. A seguir, os alunos buscarão soluções para tais desafios a partir de três frentes: administração pública, iniciativa privada e terceiro setor.

Nesse sentido, a turma será dividida em equipes, a partir das duplas e seus respectivos temas do seminário Admirável Mundo Novo. Assim, eis os eixos do projeto:

I. Sociedade: temas 1, 2 e 3

II. Poder: temas 4, 9 e 19.

III. Economia: temas 5, 6 e 7.

IV. Educação: temas 10, 11 e 20.

V. Segurança: temas 12, 13 e 14.

VI. Meio Ambiente: temas 17 e 18.

Cada equipe deverá eleger um líder, um secretário e um editor (no eixo VI, poderão ser escolhidos apenas o líder e um secretário-editor), preferencialmente de duplas diferentes. Na primeira semana do 3º bimestre, cada secretário deverá entregar ao professor um cronograma do trabalho. Vale lembrar que o recorte do problema deverá ser bem delimitado; assim, por exemplo, ao invés de se tratar das dificuldades da rede municipal de ensino de forma genérica, é melhor avaliar eventuais atrasos em certas metas do Plano Municipal de Educação de Vitória, disponível aqui.  

Como metodologia, serão adotados questionários (via Google Forms ou outros recursos), entrevistas (preferencialmente gravadas), levantamentos (especialmente de dados disponíveis na Web) e pesquisas de campo (registradas por fotos e/ou vídeos). Pelo menos um secretário municipal - ou vereador - deverá ser entrevistado (confira a lista das secretarias aqui), bem como um empresário e um representante do terceiro setor. Entidades relevantes nesse sentido são a CDL Vitória, o SINEPE, a OPBB-ES, a ADRA Espírito Santo, dentre outras.

Ao final, os dados deverão ser reunidos e analisados à luz de pelo menos uma referência bibliográfica do seminário Admirável Mundo Novo. Toda a exposição, incluindo a proposta de intervenção e as conclusões, deverão constar num relatório de quatro laudas digitado (fonte: Times New Roman; tamanho 12; espaçamento entre linhas: 1,5; dentre outras normas da ABNT). Baixe o modelo de capa aqui. Além disso, um vídeo de apresentação, de 10 a 15 minutos, deverá ser produzido por cada equipe (com exceção do editor, todos os integrantes deverão, necessariamente, participar nesse vídeo).

A orientação e as discussões relativas ao projeto se concentrarão nas aulas de Filosofia e Sociologia. Não se esqueça: o planejamento antecipado é a chave do sucesso. Nesse sentido, sugiro um Plano de Estudos.    

Pérola de Paul Veyne

segunda-feira, 22 de maio de 2023

"O enriquecimento secular do pensamento histórico se fez mediante uma luta contra nossa tendência natural a banalizar o passado. Traduz-se por um aumento do número de conceitos de que dispõe o historiador e, consequentemente, por uma ampliação da lista de perguntas que poderá fazer aos seus documentos." 

Paul Veyne (1930-2022)

Orgulho clássico x Humildade cristã

domingo, 21 de maio de 2023

Jesus lava os pés dos discípulos, na última ceia: ato de humildade abominado pela civilização greco-romana.

O cristianismo, ao contrário [da civilização greco-romana, rigorosa e aristocrática em sua totalidade], era em seu cerne uma religião verdadeiramente igualitária. Todos os homens eram iguais aos olhos de Deus, igualmente vulneráveis ao pecado, igualmente capazes de salvação. Embora isso não levasse necessariamente a qualquer ataque direto à hierarquia estabelecida de riqueza e posição romanas - dilatada pela hierarquia eclesiástica mais recente de bispos com seus palácios e catedrais - levou a uma mudança no tom moral da sociedade, a uma desaprovação, por exemplo, da violência gratuita dos jogos de gladiadores, ao encorajamento para que os proprietários de escravos os libertassem e não comprassem outros; e a longo prazo essa mudança no tom moral contribuiria para uma luta no aqui e agora, para tornar os homens iguais na terra assim como no céu. O contraste é talvez melhor sintetizado pela ênfase clássica no orgulho como a mais elevada virtude humana, o coroamento da excelência marcial, moral e cívica como oposta à ênfase cristã na humildade. Para Aristóteles, enquanto o orgulho pelas realizações que alguém alcançava era a mais alta virtude na vida cívica (o que não deve ser confundido com a mera e vaidosa atitude de se vangloriar de honras não verdadeiramente merecidas), a humildade era de fato uma fraqueza, porque só alguém "com uma alma pequena" (expressão grega traduzida maravilhosamente no inglês médio como "pusilânime") hesitaria em reivindicar uma honra para a qual sua virtude ou posição o autorizasse. Para Agostinho, ao contrário, todo orgulho, merecido ou não, era redutível a vaidade porque estava baseado na tolice de que um homem pode realizar alguma coisa boa por conta própria, sem Deus.      

NEWELL, Waller R. Tiranos - Uma História de Poder, Injustiça e Terror. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Cultrix, 2019, p. 97.

A Ordem da Paixão

sexta-feira, 19 de maio de 2023

 

Philippe de Mézières (c. 1327-1405), fundador da Ordem da Paixão de Jesus Cristo, entrega o seu livro ao rei Ricardo II (r. 1377-1399).

Nos séculos XIV e XV a real importância das ordens de cavalaria, que existiam em grande número, era muito pequena, mas as aspirações professadas ao fundá-las eram sempre as do mais alto idealismo ético e político. Philippe de Mézières, sonhador político sem igual, desejava remediar todos os males do século por meio de uma nova ordem de cavalaria, a da Paixão, destinada a unir a Cristandade num esforço comum para expulsar os turcos. Burgueses e trabalhadores podiam entrar nela, ombro a ombro com os nobres. Os três votos monásticos seriam modificados por motivos práticos: em lugar do celibato apenas se requeria a fidelidade conjugal. Mézières juntou-lhe um quarto voto, desconhecido nas precedentes ordens, o da perfeição moral individual, summa perfectio. Ele confiou a tarefa de propagar a Militia Passionis Jhesu Christi a quatro messaiges de Dieu et de chevalerie (entre os quais se contava o célebre Othe de Granson), que deviam ir a "diversas terras e reinos pregar e anunciar a santa cavalaria referida como quatro evangelistas". 

HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. 2ª edição. Tradução de Augusto Abelaira. Lousã, Coimbra: Ulisseia, s/d, p. 88. 

A Tirania dos Césares

domingo, 7 de maio de 2023

 

Domiciano (r. 81-96), autoproclamado "Senhor e Deus do Mundo".

Fora de questão está o firme desdobramento da posição do imperador da charada de ser meramente "primeiro cidadão" para o franco despotismo de punhos à mostra. Enquanto o exército não estava autorizado a entrar em Roma durante a República porque a ameaça de força militar era considerada uma afronta a uma cidadania livre, os imperadores estavam sempre acompanhados por guarda-costas armados, como os tiranos da antiga Grécia e do Oriente Médio, incluindo (para os júlio-claudianos) um grupo de alemães gigantescos para quem o imperador era seu chefe guerreiro tribal. Esses guarda-costas se expandiram para uma força de 5 mil, a Guarda Pretoriana, permanentemente estacionada perto da cidade para cumprir o poder autocrático do imperador (quando não estavam subornados para derrubá-lo em favor de um novo senhor). Gradualmente, mesmo os patrícios perderam a proteção da lei contra a decisão do imperador, às vezes por capricho, de mandá-los matar. Segundo Cássio Dio, quando Tibério acionou seu cruel e ambicioso prefeito pretoriano Sejano e ordenou-lhe que executasse seus filhos, os soldados tiveram primeiro de estuprar sua filha Junila, porque não havia precedente para a punição capital de uma virgem. Mais tarde, mesmo esse tipo de repugnante simulacro de legalidade foi abandonado. Como mencionei na Introdução, quando um arquiteto ilustre criticou o projeto de um templo esboçado por Adriano, o novo imperador ordenou que o executassem. O desrespeito pela "grandeza" (majestas) do imperador tornou-se um delito capital e ser denunciado por isso era com frequência equivalente a ser considerado culpado. O fingimento original de Augusto ao não reivindicar ser divino também se dissolveu lentamente sob seus sucessores - o imperador Domiciano era abertamente tratado de "Senhor e Deus do Mundo".      

NEWELL, Waller R. Tiranos - Uma História de Poder, Injustiça e Terror. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Cultrix, 2019, p. 89-90.

Como os Romanos viam a Democracia

quinta-feira, 4 de maio de 2023

 

Quando falamos sobre a compreensão romana do bem comum - o termo para república, Res Publica, significava aproximadamente "a coisa pública" -, devemos sempre ter em mente que, para muitos romanos de classe alta, isso não incluía a multidão, a plebe, que suas lideranças às vezes rotulavam zombeteiramente "o esgoto da cidade". Romanos instruídos encaravam a experiência ateniense como democracia como um desastre, até porque os cérebros mais importantes dos próprios gregos, incluindo Platão, tinham assumido essa visão negativa acerca do assunto. Como Esparta antes dela, a República Romana era uma aristocracia autogovernante, cujos membros se autodenominavam "patrícios", pois afirmavam descender dos pais, das grandes famílias originais remontando à época de Rômulo.      

NEWELL, Waller R. Tiranos - Uma História de Poder, Injustiça e Terror. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Cultrix, 2019, p. 76.

«Tiranos», de Waller R. Newell

terça-feira, 2 de maio de 2023

 

Baixe essa obra gratuitamente aqui.

A aversão romana à Realeza

segunda-feira, 1 de maio de 2023

 

Uma forte reação contra a monarquia marcou a expulsão do último rei de Roma, Tarquínio, o Soberbo, em 509 a.C.

Se os antigos gregos estavam preocupados com a tirania, pode-se dizer que a Roma republicana estava obcecada por ela. Numa grande epopeia nacional composta por seus historiadores, como Lívio e Políbio (na realidade um grego), e seu próprio Homero, o poeta Virgílio, toda a existência de Roma estava voltada para impedir a autoridade arbitrária de um homem sobre o bem comum. Os gregos, como vimos, distinguiam entre monarcas legítimos e tiranos que tinham usurpado o poder e tinham admitido que mesmo os últimos poderiam às vezes fazer coisas boas por seus países. Para os romanos, essas distinções se reduziam brutalmente a um termo simples, odiado e extremamente abrangente - Rex. Embora o traduzamos por "rei", para os romanos era indistinguível do que os gregos quiseram dizer com tirania em seu pior sentido. Regnum - realeza - era a mais detestada forma de autoridade, reduzindo cidadãos livres à condição de escravos. Não havia diferença se os reis faziam coisas boas ou más; o poder que tinham sobre os cidadãos era intolerável. Para os gregos, fazia diferença que Sófocles tivesse chamado Édipo de tirano em vez de rei (basileus). Para os romanos, não fazia a menor diferença, motivo pelo qual traduziram a peça como Oedipus Rex, Édipo Rei - em outras palavras, tirano.      

NEWELL, Waller R. Tiranos - Uma História de Poder, Injustiça e Terror. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Cultrix, 2019, p. 74.