“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A Música no Brasil Colônia

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Muzico e Moderno Systema para Solfejar sem Confuzão, de Luís Álvares Pinto (Recife, 1776).


Durante muito tempo supôs-se que o padre José Maurício Nunes Garcia, que viveu no início do século XIX, fosse o precursor da música brasileira. Sabia-se da execução de obras musicais para fins didáticos pelos jesuítas desde o século XVI, ou da sua apresentação em festas particulares e oficiais. Eram, entretanto, quase sempre peças portuguesas ou de outros países europeus, executadas em geral por músicos estrangeiros e com instrumentos importados. Em Minas Gerais, no entanto, as pesquisas vêm demonstrando a existência de uma intensa atividade musical no século XVIII. Não apenas instrumentistas, mas compositores, com influência da música sacra e erudita europeia. Trata-se, segundo especialistas, de obras de boa qualidade e que refletem a influência dos mestres da música barroca e clássica que lhes era contemporânea. Do compositor mais conhecido, José Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, conhecem-se poucos originais, em geral bem acolhidos pelos especialistas, que se queixam apenas de defeitos na estrutura formal.

Para a capitania de Minas, o apogeu desta atividade (que incluiu a fabricação de instrumentos, como órgãos e violinos) costuma ser apontado em 1787-1790. Há indicações de atividade musical própria - além da execução de autores europeus - em outras regiões do Brasil, como a do compositor pernambucano Luís Álvares Pinto (1719-1789). 

WEHLING, Arno & WEHLING, Maria JoséFormação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 296.

Vestuário no Brasil Colônia

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Interior da casa de negros, 1814, pintura de João Cândido Guillobel.

O vestuário refletia hábitos e condições econômicas da população: nos estratos superiores, roupas masculinas e femininas de gala, para uso em ocasiões especiais (o "vestido" de igreja, a "roupa de igreja"), e roupas comuns, despojadas, de uso cotidiano; basicamente a camisa e as ceroulas para os homens e a saia sobre a camisola para as mulheres. Era frequente o registro dos vestidos de gala em testamento, com valor equivalente a uma casa urbana simples ou um escravo da Guiné. O luxo dessas camadas da sociedade era complementado pela influência oriental, com o uso de palanquins, sedas, chapéus de sol, leques chineses e colchas da Índia, numa demonstração de como eram intensas as relações do Brasil com as outras partes do Império português.

A maioria da população pobre vestia camisolões e calças grosseiras de algodão, tecido aliás pouco estimado em algumas regiões até pelos escravos. Quanto a estes, viviam com pouquíssimas peças de roupa, "seminus", na descrição de cronistas e viajantes.

Nas áreas pecuaristas, o couro influenciava não apenas o vestuário mas todo o restante do cotidiano, na descrição clássica de Capistrano de Abreu:

De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem... as roupas de entrar no mato.

Quanto aos indígenas, a Igreja - em especial os jesuítas - preocupou-se com sua nudez, impondo-lhes o uso de roupas. Os resultados não foram bons, com inadaptação e sujeira. Os pastores calvinistas franceses no Rio de Janeiro também não foram bem-sucedidos na mesma exigência: à noite os indígenas tiravam as roupas para nadar, nus, nas praias. 

WEHLING, Arno & WEHLING, Maria JoséFormação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 263.

Higiene e Saúde no Brasil Colônia

terça-feira, 24 de junho de 2025

Fonte: Scielo

As noções de higiene pública e pessoal eram em geral precárias. Interesses individuais exacerbados e pouca atenção à comunidade parecem caracterizar a higiene na Colônia, com graves danos para a saúde pública. Em Mojiguaçu, na capitania de São Paulo, no século XVIII, uma epidemia foi provocada pelo apodrecimento do peixe, capturado em excesso: 

Foi tão grande a quantidade de peixe, que apodrecendo infestou de tal modo o ar, que foi causa de perecer um grande número de pessoas. (Luís D'Alincourt)

Na Bahia, o professor régio Luís Santos Vilhena criticou severamente a administração dos cemitérios, por não impedir que sepulturas malfeitas exalassem mau cheiro, empestando o ar e provocando epidemias.

Outros fatores tornavam muito precária a higiene pública. No litoral, os mercados de escravos, sobretudo nos períodos de tráfico mais intenso, eram focos de escorbuto, varíola, sarampo, sarna e peste bubônica. As armações de pesca de baleias também contribuíam para trazer riscos à saúde pública. Em certas regiões, como Rio de Janeiro, Salvador e Belém, eram as próprias condições locais, com charcos e brejos poluídos, que facilitavam os "maus ares" e a propagação de doenças.

Legalmente, a supervisão da higiene e da saúde públicas era responsabilidade das câmaras municipais e, acima delas, do físico-mor e cirurgião-mor do reino. Seu controle, porém, era muito precário, com interesses e privilégios que impediam um funcionamento correto. Em 1792, por exemplo, a Câmara de Belém regulamentou minuciosamente o assunto, determinando que um de seus vereadores, o "provedor-mor de saúde", se encarregasse de toda a inspeção sanitária. O critério da indicação para o preenchimento do cargo, porém, foi estamental e não técnico: exigia-se que a pessoa nomeada fosse fidalgo, e não cirurgião, médico ou boticário.

WEHLING, Arno & WEHLING, Maria JoséFormação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 267.

A Falta de Calçados no Brasil Colônia

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Praça XV com o chafariz do Mestre Valentim, no Rio de Janeiro. Nota-se uma intensa presença de comerciantes e demais trabalhadores da região portuária, quase todos descalços. Pintura de Jean-Baptiste Debret (1768-1848).


A falta de calçados foi característica marcante da Colônia. O alto custo de sapatos e botas fez com que fossem deixados como herança em testamento, do século XVI ao XVIII, em São Vicente. Outros documentos registram casos de pessoas que não saíam à rua ou deixavam de ir à igreja por falta de sapatos, no século XVII. No Rio Grande do Sul, no século XVIII, era comum cavalgar descalço, como mostram os estribos de quatro dedos, que deixavam de fora o polegar, e o estribo em triângulo, no qual, ao contrário, só cabia o polegar. O exemplo mais marcante foi dos vicentinos. Os bandeirantes percorriam descalços quatrocentas léguas "como se passeassem pelas ruas de Madri" (Montoya, 1643).

Os portugueses que até aqui se viram são todos mancebos descalços de pé e perna com escopetas e alfanjes. (Cabildo de Assunção, 1676)

Somente na entrada das vilas os bandeirantes costumavam limpar os pés da poeira e bichos para calçar-se, o que, segundo Sérgio Buarque de Holanda, pode ter dado o nome a uma das entradas de São Paulo ("Lavapés"). 

WEHLING, Arno & WEHLING, Maria JoséFormação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 264.

Doenças no Brasil Colônia

sexta-feira, 13 de junho de 2025

 

Doenças como o sarampo, a sífilis e a varíola dizimaram populações indígenas inteiras no período colonial.

No início da colonização costumava-se distinguir as doenças do litoral, vindas da Europa - como o sarampo, a varíola e a sífilis - e as doenças do sertão, genericamente chamadas "febres malignas", e também fatais. As expedições ao interior durante os séculos XVII e XVIII acabaram por disseminar umas e outras, de forma que as condições de saúde no período final da Colônia eram muito precárias. Somente nos últimos anos do século XVIII, com a introdução da vacina contra a varíola, foi possível enfrentar com sucesso pelo menos este mal.

Quanto à sífilis, extremamente difundida desde o século XVI, foi introduzida no Brasil tanto por portugueses como por franceses. Aliás, a expansão da doença acompanhou o processo de mundialização do comércio nesse século: os europeus a deixaram por todas as regiões onde estiveram. No Japão, aberto ao Ocidente pelo comércio português, a doença chamou-se mambakassam - doença dos portugueses. No Brasil, segundo o testemunho de alguns autores, a sífilis era pouco cuidada. As marcas na pele, típicas dos vários estágios da doença, eram ostentadas como honrosas "feridas de guerra" pelos homens, no dizer de Gilberto Freire.

As verminoses parecem ter sido endêmicas em todas as regiões do Brasil colonial. Documentos descrevem com frequência seus sintomas, demonstrando que o "Jeca Tatu" denunciado por Monteiro Lobato no século XX já existia vários séculos antes.

A malária também grassou no período colonial, sendo impossível precisar seu itinerário. Na região de Guairá, por exemplo, segundo mostra Sérgio Buarque de Holanda, ela era desconhecida à época das missões jesuíticas, no final do século XVI, tornando-se fortemente disseminada bem mais tarde.

Eventualmente, havia surtos epidêmicos, cuja disseminação era facilitada pelas más condições higiênicas dos portos e pela ignorância das formas de contágio. Houve epidemias de varíola desde o século XVI. Uma das mais fortes ocorreu em 1665-1666. Começando em Pernambuco, desceu a costa até o Rio de Janeiro, enfraquecendo-se à medida que avançava.

WEHLING, Arno & WEHLING, Maria JoséFormação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 268.

Congadas no Brasil Colônia

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Konshaça, banda de Congo de Serra, ES


Congos ou congadas eram autos populares, de origem africana, mas já diferenciados, que ocorriam não apenas no ciclo de Natal, mas em outras datas comemorativas, geralmente de devoções religiosas dos negros. Comum a sudaneses e bantos, a congada tinha como elementos principais a coroação do rei do Congo, préstitos, embaixadas e danças guerreiras. Sabe-se de sua existência na festa de N. S. do Rosário, no Recife, em 1674, e em outros locais nos séculos XVII e XVIII. Nos desfiles havia imagens e homenagens aos santos protetores dos negros, cuja devoção se concentrava em quatro: N. S. do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e Santo Antônio Preto. Além das representações, as congadas contavam também com bailes e banquetes, com a presença de autoridades portuguesas e dos senhores de escravos, que, aliás, frequentemente lhes emprestavam joias e adereços. Em 1748, no Rio de Janeiro, celebrou-se com luxo e aparato a coroação de um "rei do Congo", numa grande congada. Em 1760, nas festas oficiais, em Salvador, por motivo do casamento da futura rainha dona Maria I, foi a eles incorporada uma congada. Torna-se, assim, evidente o papel político atribuído pelas autoridades governamentais a essa festa, que reunia basicamente escravos e ex-escravos.

WEHLING, Arno & WEHLING, Maria JoséFormação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 256.

Sincretismo no Brasil Colônia

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Maracatu


As atitudes sincréticas e supersticiosas revelavam-se em muitos aspectos da vida social. A divindade africana das águas, por exemplo, tinha sua correspondente na "moura encantada" da tradição portuguesa, deusa das águas que, vaidosa, vivia junto às fontes, penteando-se. A cor vermelha era considerada eficiente contra os maus espíritos nas três culturas: muitas tribos usavam tinturas desta cor para espantar os demônios da floresta; os portugueses colocavam fitas desta cor no pescoço dos animais e usavam preferencialmente telhas vermelham em suas casas; a tradição africana também a considerava profilática contra os maus espíritos, razão pela qual os maracatus e reisados o rei e a rainha vestiam-se com trajes vermelhos.

A concepção indígena de que a floresta era povoada por seres mágicos combinava-se com o imaginário medieval que os portugueses traziam de sua terra, com o imaginário africano e com o catolicismo. Assim, em documentos missionários, há frequentes referências associando os espíritos da floresta com o demônio da tradição cristã, bem como expedientes híbridos para dominá-los: a bala de cera benta para matar o caipora (se o atinge no umbigo) e o laço do rosário usado para aprisionar o saci são exemplos. 

É possível, assim, figurar a religiosidade colonial como sempre presente na vida dos homens, fornecendo explicações e soluções para todos os momentos de sua existência. Era, em seu topo "oficial", barroca, mística, muitas vezes soturna e angustiada, dominada pela obsessão com o pecado e o castigo eterno. Na prática social, porém, era mesclada e sincrética. Além dos princípios da religião oficial, incorporava elementos mágicos e supersticiosos de origem não apenas indígena ou africana, mas também medieval portuguesa, como o culto nas encruzilhadas.

WEHLING, Arno & WEHLING, Maria JoséFormação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 250.