“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Do «Manifesto» à «mulher do diabo»

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Em 2002, o primeiro «proletário» foi eleito presidente do Brasil, por um partido que diz ser «dos trabalhadores». Nunca simpatizei-me com aquela figura ou com aquele partido. Mas existia uma esperança no ar, a sensação de que, por vias democráticas, os trabalhadores e os menos favorecidos iriam obter, finalmente, as suas reivindicações sociais. 

Em dezembro do mesmo ano eu era um rapaz de quinze anos, já de barba, a passear por um Shopping Center. Não era nenhum consumista foraz, pelo contrário. Possuía muito pouco para além dos tostões dados pelos meus pais para pagar o meu transporte até lá, onde devia buscar o meu R.G. No entanto, o ardor revolucionário já me contagiava. Eu acabara de concluir o 1º ano do Ensino Médio, em um colégio interno. Era bolsista nesse colégio, tendo a obrigação de trabalhar longas horas na agricultura, abrasado pelo sol escaldante do norte do estado do Espírito Santo. Assim, me identificava ao proletariado. Era também apaixonado pela História, e essa disciplina, como se sabe, normalmente é ensinada com forte viés de esquerda nas escolas brasileiras. 

Tudo isso me levava a uma obra que povoava a minha imaginação: O Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. Hoje sei que é o pior livro do mundo. Mas naquela fase de ingenuidade, procurava-o nas bibliotecas das escolas onde estudava. Para a minha decepção, pobres como a Coreia do Norte, tais bibliotecas não contavam com um único exemplar do Manifesto. Assim, naquele dia a andar pelo Shopping, num gesto revolucionário, lancei mão aos tostões que tinha no bolso, entrei numa livraria do Shopping e saí de lá munido para ser um revolucionário. A obra pareceu-me interessante, um texto ligeiro, próprio de um panfleto. No entanto, chamou-me a atenção os vários elogios tecidos à burguesia, tida como um classe autenticamente revolucionária. 

O tempo passou. Não me tornei comunista, mas sempre era simpático, embora ferrenhamente anti-petista. Achava difícil conciliar o ateísmo pregado por Marx com o meu cristianismo, que não tinha intenções de abandonar (sobre a incompatibilidade entre o cristianismo e o marxismo, leia aqui).

Quis ler O Capital, mas não encontrei-o, e também não tinha como comprá-la. Mas lia o que podia, e estava sempre interessado em aprender mais sobre o assunto. Uma dessas leituras foi o panfletário As veias abertas da América Latina, do Eduardo Galeano. Em minha curiosidade intelectual, encontrei-o ao acaso na biblioteca da então Escola Agrotécnica Federal de Colatina (hoje IFES de Itapina). Tinha entre 16 e 17 anos. Recentemente, o autor mudou de ideia sobre o livro, 43 anos após escrevê-lo (leia aqui). Felizmente, eu mudei de ideia antes, como verão a seguir.

No primeiro semestre de 2006, eu ingressei na graduação de História. Lá eu pude ler muito mais, da literatura marxista e da anti-marxista. Meus olhos definitivamente se abriram. Além dos livros, marcaram-me documentários como The Soviet story. Vi que o comunismo se tratava de uma religião secular que legitimava o roubo e o massacre. 

Transcorridos dez anos do meu primeiro contato com a literatura marxista, estava em Lisboa, prestes a concluir o mestrado em História. À noite, o meu passatempo era ler O Retrato, do O. Peralva, um clássico sobre a hipocrisia e as mentiras no PCB e no comunismo em geral. Mas, num dia do início de dezembro de 2012, encontrei, ao acaso, na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o seguinte livro:

GIROUD, Françoise. Jenny - a mulher de Karl Marx. Tradução de Eduardo Saló. Lisboa: Edição «Livros do Brasil», 1992.

[Nota: O título original está isento de qualquer eufemismo: Jenny Marx ou la femme du diable. Além da alteração descarada do título original, lemos na contracapa do livro: «Venda interdita na República Federativa do Brasil». Por quê? O livro foi traduzido em pleno regime democrático, por uma editora que se auto-intitula «Livros do Brasil»!]

Como o mundo dá voltas! Passados dez anos da minha leitura do Manifesto, debruçava-me sobre a vida da «mulher do diabo». A primeira surpresa: Marx se casou com uma aristocrata! 

O livro é bastante interessante, e muito bem escrito. Põe «o rei a nu». Hipócrita, o Marx que salta em suas páginas é alguém que nunca visitou um bairro operário e que sempre vivia atrás de heranças (outra surpresa, no Manifesto é defendido o confisco de heranças!). Isso quando não recorria à sempre oportuna mesada de seu amigo Engels, um playboy

Oh, mas como sofreu a pobre Jenny! Era uma linda mulher, e como tal era considerada pelos seus coetâneos. Era mais velha que Marx, e chegou a ficar noiva de outro pretendente. No entanto, este era uma «porteira», e a nossa Jenny apreciava homens inteligentes. Deu no «cabeção» (expressão do Diogo Mainardi). Após sete anos de noivado, eles se casaram. Mas, ao invés de procurar um emprego, seu marido preferia tagarelar com os comunistas ou escrever artigos e livros que rendiam muito pouco ou nada (alguns desses artigos eram, na verdade, de autoria de Engels, que cedia-os ao amigo sanguessuga, para que ele não morresse de fome). Quando não tricotava com os comunistas, Marx traía a esposa com a empregada, com quem teve um filho que nunca reconheceu. Como se não bastasse, o «mouro» fez com que Engels assumisse o menino para salvar a sua pele. 

Os Marx quase sempre viviam em penúria, e quando ganhavam dinheiro, viviam como burgueses inconsequentes. Como eram hipócritas! Apesar de todos os problemas, parecia existir amor naquele lar, onde vários de seus rebentos morreram muito cedo (um deles passou muito tempo insepulto, por falta de grana para as exéquias). Mas as tragédias não pararam por aí. Duas filhas do casal se suicidaram na fase adulta, após a morte dos pais (uma delas junto com o marido, após concordarem de que não queriam atingir os setenta anos).




O livro é ideal para quem aprecia uma leitura leve, sem notas ou orações longas. Uma pena não ter uma bibliografia básica ao final, o que o desmerece enquanto literatura acadêmica. Bem, não vou me alongar sobre mais detalhes. Apenas citarei alguns excertos para estimular o vosso interesse.

O primeiro é de um «retrato» de Jenny, elaborado por um familiar, Wilhelm Liebnecht: 

Foi ela a primeira pessoa que me ensinou a admitir o poder educativo da mulher (...). Antes de a conhecer, eu não tinha abarcado a verdade das palavras de Goethe: ‘Se queres aprender realmente o que convém, dirigi-te às mulheres nobres!’

Representou para mim, ora aquela que humaniza e educa os bárbaros, ora aquela que incute calma a quem se exalta ou duvida. Era simultaneamente mãe, amiga, confidente e conselheira. Foi e continua a ser, para mim, o ideal de mulher. (p. 179)

A seguir, como Marx, um antissemita e insensível para com a mãe, via o papel das mulheres:

Quem conhece a História sabe que as grandes mudanças sociais são impossíveis sem o fermento feminino. O progresso social pode medir-se exatamente pelo estatuto social do belo sexo (as feias incluídas). (p. 194)
Marx, Carta ao Dr. Kugelmann

Ora, pois, o «diabo» sabia ser espirituoso! E quanto à «cruz» da esposa, como ele se portava? Bem, «Marx, um bruto em muitos aspectos, sempre revelou uma profunda consciência das provações sofridas por Jenny» (p. 196). Assim, com uma mulher tão devota, o mínimo que ele poderia fazer era reconhecer a importância das mulheres na História, como o fez no trecho da carta acima. 

Encerro com as palavras finais do livro, uma excelente conclusão:

Foram quatro os filhos de Jennychen Longuet (...) que asseguraram a descendência dos Marx. Mas os verdadeiros filhos de Marx estavam certamente noutro lugar. Entre os milhões e milhões (...) que veneram o profeta do céu na Terra, julgando encontrar nele, não uma filosofia, mas uma ciência com leis próprias para erradicar a miséria e sofrimento. 

Ainda se vendem posters de Marx, na China. No entanto, a ilusão morreu, o mito desintegrou-se e o socialismo científico permanecerá como a mais trágica impostura do século.

Jenny von Westphalen, criatura de amor e de fé, terá sido a sua primeira e voluntária vítima. (p. 241)

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- Existem outras biografias de Marx e de sua mulher. A mais recente, Love and capital, foi escrita por Mary Gabriel. Leia o comentário de Lucas Mendes na BBC Brasil
[Nota: contrariando as minhas expectativas, esse livro foi publicado no Brasil em 2013. Ele pode ser adquirido AQUI, e uma entrevista com a autora pode ler lida AQUI.]
- Recomendo veementemente os artigos Heil, Stálin! Os filhos do marxismo, publicados no site Mídia Sem Máscara.

A praga do marxismo

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012


«O marxismo é o ópio dos intelectuais.» Raymond Aron (1905-1983)

«Os comunistas são as pessoas que leram Marx e Engels, os anticomunistas são aqueles que entenderam.» Ronald Reagan (1911-2004)

Em breve escreverei sobre a minha peregrinação intelectual nestes últimos dez anos. Explicarei como passei de simpatizante do marxismo a tenaz anti-comunista. Dois livros marcam esse percurso: o primeiro é o próprio Manifesto Comunista

Uma postagem a ser lida.

P.s. Clique na imagem acima para expandi-la.

De quem é a culpa?

quarta-feira, 28 de novembro de 2012


- Tu foste incendiar a Biblioteca?

- Sim, queimei-a.

- Mas é um crime inaudito e ruim,

Que mesmo contra ti, infame, praticaste!

A luz que tua alma aclara, intrépido, apagaste!

É tua própria luz que acabas de soprar.

Isso que teu ódio ímpio e louco ousa queimar

É teu bem, teu tesouro, a herança de tua alma,

O livro te protege, instrui, anima e acalma.

O livro toma sempre a tua defensiva.

Vale uma biblioteca o ato de fé que, agora,

Cada uma geração, nos livros rediviva,

Presta: é a noite rendendo um testemunha à aurora.

Oh! nesse venerando acervo de verdade,

Nessas obras geniais jorrando claridades,

Tumba da Antiguidade erguida em repertório.

Nos séculos de luz, nesse genuflexório,

No passado, lição que soletra o porvir.

Nisso que se criou para não se extinguir,

Nos poetas, nos heróis, belos, imarcescíveis,

Na ruma divinal dos Eschylos terríveis,

Dos Homeros, dos Jobs, de pé sobre o arrebol,

Em Moliére, em Voltaire e Kant, a luz do sol,

Ímpio! foste chegar uma tocha inflamada!

Todo o espírito humano em cinza, em fumarada!

Esqueceste que o livro é o teu libertador?

La na altura ele esta, como altivo condor:

Brilha. Porque ele brilha é que nos ilumina;

Destrói o cadafalso, a miséria, a chacina.

Ele fala, e nos diz: - Nada de escravo ou pária.

Abre um livro,vai ler: - Platão, Milton, Beccária,

Esses profetas: Dante e Corneille, e Shakespeare;

A alma imensa que tem, em ti sentes surgir;

Lendo-os, sentes-te igual a eles todos, altivo;

Lendo, tornas-te meigo, austero e pensativo,

Eles, em tua mente, aumentam de grandeza.

À escuridão de um claustro a alva vem dar clareza.

À proporção que ele entra e afunda em tua mente,

Tornas-te mais feliz, tornas-te mais vivente.

Tua alma, torna-se apta a arguida responder.

Reconheces-te bom e sentes derreter,

Como a neve ao calor, a vaidade sombria,

O mal, o preconceito, o dogma, a tirania!

Pois, no homem o saber é o que chega primeiro;

Depois a liberdade. Esta divina luz

É tua, e foste tu que, de pronto, a apagaste.

O livro atinge os fins que tu próprio sonhaste.

Entra em teu pensamento e solta e desenleia

Os grilhões com que o erro a verdade aperreia.

A consciência é um nó górdio horrível, que asfixia.

O livro é teu guardião, teu médico, teu guia.

Tua raiva ele acalma e tira-te a demência.

Eis o que perdes, tu, por tua intransigência.

O livro é teu tesouro; é a riqueza, é o saber,

O direito, a verdade, a virtude o dever,

A razão, aclarando a tua inteligência.

E TU QUEIMASTE TUDO, INFAME!...

- EU NÃO SEI LER!


Victor Marie Hugo

(Extraído da coleção Antologia da Literatura Mundial – Poetas Estrangeiros – tradução de Modesto de Abreu – Gráfica e Editora Edigraf Ltda., p. 74)

Um ode à beleza feminina

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Outrora admirava-me de que uma mulher tivesse sido a causa de uma guerra
Tão grande entre a Europa e a Ásia, junto aos muros de Pérgamo;
Agora vejo que tu, Páris, foste sábio, e tu, Menelau,
Tu, porque reclamavas, tu, porque demoravas.
Na verdade, o seu rosto era digno até de que Aquiles morresse por ele; 
Até de que Príamo o aceitasse como causa da guerra.Se alguém quer superar em fama as antigas pinturas,
Tome a minha amada como modelo na sua arte:
Quer mostre aos povos do Ocidente, quer mostre aos do Oriente,
Inflamará de amor os do Oriente, inflamará também os do Ocidente.
Ao menos que eu me mantenha nestes limites! Ah! Se tivesse vindo
Um outro amor, para eu morrer mais amargamente!

Propércio, Elegias, Livro II, 3, 35-46.

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- Imagem: «Helen of Troy», por Evelyn De Morgan (1898).

«Os Gregos», de Kitto

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Não estava nos meus planos comprar esse livro, nessa altura em que aguardo ansioso pela minha defesa. Passei pela Bulhosa, que fica no Campo Grande, bem perto de onde moro, e por acaso vi-o em preço de saldo (pelo que me lembro, paguei menos de 6€ por ele). Abri-o, comecei a lê-lo, e decidi comprá-lo. Eis a sua referência:

KITTO, H. D. F. Os Gregos. Tradução e prefácio de José Manuel Coutinho e Castro; revisão de Maria Helena da Rocha Pereira. 3ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1990.

O lançamento do livro data de 1951, na Inglaterra. O prefácio, muito acertado, diz o seguinte:

Obra séria e profunda, aliando honestidade da investigação e à segurança informativa o ‘humor’ tão caracteristicamente britânico, constitui entusiástica e nobre apologia do espírito ático e da democracia ateniense.

O tema não é o que os Gregos fizeram, mas o que foram. Por tudo isso, há vários elementos originais ou pouco destacados pelos demais helenistas. Já na introdução, o autor destaca uma interessante questão: o termo «bárbaro» não tem o mesmo sentido atual; significava apenas aqueles que não falavam o idioma grego. Além disso, Kitto admite que tratou os homens grandes de preferência aos insignificantes, e dos filósofos mais do que os patifes. É que, para ele, os patifes são bastante iguais em toda a parte.

O livro está, assim, repleto de elementos interessantes. Limitar-me-ei a destacar alguns dos primeiros capítulos. No cap. II, «A formação do povo grego», o autor chama a atenção que, por vezes, as lendas têm sido confirmadas num grau espantoso (p. 29). Está aí uma questão metodológica interessante, muitas vezes desprezada. Nesta mesma página, destaca que há inúmeras provas de que, desde os primeiros alvores do terceiro milênio a.C. até c. 1400 a.C., Creta, e em especial a cidade de Cnossos, foi o centro de uma brilhante civilização. O autor prova, em diversos momentos, ser um linguista, um historiador que domina o idioma das suas  fontes; assim, com autoridade, destaca: «A língua grega é, por natureza, exacta, subtil e clara» (p. 47).

No cap. III, «O país», trata considerações sobre a geografia da Grécia, «terra de grande diversidade». Mesmo no séc. V a.C., muitos dos cidadãos atenienses eram, antes de tudo, lavradores. As invasões espartanas os transformaram em moradores da cidade (p. 51). As comunicações por mar eram fáceis e, desde os tempos pré-históricos, a Grécia «era convidativa e aberta aos comerciantes e outras pessoas de Creta, e depois da Fenícia (...)» (p. 53). Apesar disso, em seus primeiros tempos, os Gregos não eram comerciantes. Fator muito importante para o desenvolvimento da democracia ateniense, o clima, é, no conjunto, «muito agradável e constante» (p. 54). A escravatura, mas principalmente a vida frugal, permitia aos atenienses gozar o ócio que tanto apreciavam (p. 62). E o ócio era tão importante que só a glória era mais exaltada que ele.

Poucos foram tão sociáveis como os Gregos, e graças a isso, eles aguçaram sua inteligência e aperfeiçoaram as suas maneiras. Tal foi o caso de Sócrates, um homem que modificou a corrente do pensamento humano simplesmente falando das ruas da cidade (p. 63). Talvez, mais que qualquer outro, Sócrates combina a simplicidade e a grandiosidade dessa civilização que até hoje nos fascina.

«A guerra no Império Romano Tardio», de Raphael

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Eis o meu primeiro livro. Como li certa vez em um livro do Eduardo Galeano (ah, tristes anos de leituras esquerdistas...), escrever um livro é como lançar uma garrafa com uma mensagem ao mar. As probabilidades de que alguém os leia é sempre remota.

Para início de conversa, eis a referência da obra:

TEIXEIRA, R. L. A guerra no Império Romano Tardio. Prefácio de Ricardo da Costa e orelhas de Rogério Rosa. Vitória: DLL-UFES, 2012.

O texto-base foi o da monografia que apresentei ao Departamento de História da UFES quando concluí a licenciatura e o bacharelado, em 2009. Naquela altura tive a honra de ser orientado pelo Prof. Dr. Ricardo da Costa, que também é o autor do prefácio. A propósito, o prefácio está disponível em seu SITE.


Já o autor das orelhas do livro, o Prof. Dr. Rogério Rosa, foi o meu professor de História do Brasil Colônia, Teoria e Metodologia da História. Atualmente é professor adjunto de Teoria e Metodologia da História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). São dele as palavras que se seguem (volto a seguir):

O texto que Raphael apresenta ao leitor permite acompanhar o processo de fabricação do trabalho do historiador com todo o rigor acadêmico exigido àqueles que se dedicam ao ofício. Para narrar sua história o autor escolheu como guia um personagem, Vegécio, e uma obra, Epitoma rei Militaris. Na oficina do historiador a escolha da fonte marca profundamente o desenvolvimento do produto final. O contexto de sua produção, a linguagem, os valores individuais e coletivos do sujeito, bem como as forças motrizes da época deixam marcas indeléveis no documento. Identificá-las é o desafio. Diante das escassas informações sobre o sujeito objeto de sua pesquisa, Raphael recorreu a uma estratégia cara ao historiador, qual seja a de estabelecer relações do texto de Vegécio com outras fontes da época, comparar a proposta apresentada no Epitoma com experiências militares de outros períodos históricos, além de evocar uma miríade de autoridades em história romana para sustentar seus argumentos. Para além desse procedimento que poderíamos nominar de científico há que ressaltar os subjetivos: a evocação afetuosa feita ao pai, militar da reserva, a inquietação diante da banalização da violência e da guerra na atualidade e a confissão de que por um momento desejou ingressar nas Forças Armadas. Ao fim, a pesquisa de Raphael nos abre uma janela para o passado e outra para o presente, e na interseção desses tempos, a oportunidade de observar as memórias, concepções e estratégias de um historiador em formação.

A esses dois mestres devo muitíssimo do meu aprendizado inicial de historiador. Mais uma vez, meu muito obrigado a ambos.

Apesar do título (ah, os interesses editoriais...), o livro trata apenas da guerra romana no século IV d.C., com rápida contextualização dos séculos precedentes. No século em questão produziram-se mudanças cruciais na estratégia, na tática e na organização do exército romano. Foram reflexos das mudanças na governação do Império, que desde o século III era cada vez mais acossado pelas invasões bárbaras e pelas guerras civis e golpes de Estado. No livro eu procuro explicar esse processo, tendo como principal fonte o Epitoma rei militaris, tratado escrito por Flávio Vegécio, no fim do séc. IV.

No mestrado, como era de se esperar, eu procurei pesquisar um tema mais delimitado: a cristianização do exército romano e as relações do processo com a política imperial. A dissertação já está pronta e devo defendê-la brevemente. Pretendo publicá-la também, e vocês podem conferir na internet a CAPA e DISSERTAÇÃO. Ainda mais interessante, será, de facto, uma "part two" da obra que agora lanço. Estou muito contente pelos frutos dessa pesquisa sobre a qual tenho me debruçado já há alguns anos.

Quem sabe se a tese de doutorado não forma uma trilogia... veremos.
 

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Imagens: representações modernas de soldados romanos do século IV.

Atenção: o livro está disponível para compra no AGBOOK.

«Teodosio», de Hartmut Leppin

sexta-feira, 6 de julho de 2012


Descobri recentemente que a editora espanhola Herder publicou várias biografias de interessantes personagens da Antiguidade: Sila, Cleópatra, Augusto, Pompeu, Calígula, Flávio Josefo, Juliano, Atenais, dentre outros. A editora está assim de parabéns, especialmente pelo fato de a maioria se tratar de traduções, várias delas a partir do complicadíssimo idioma alemão.

Assim, na sequência das dicas de leitura deste blogue, indico uma dessas biografias, lida há poucas semanas:

LEPPIN, Hartmut. Teodosio. Traducción de Marciano Villanueva. Barcelona: Herder, 2008.


Eis a sinopse:

¿Se sirvió el Dios cristiano –ya hegemónico en el siglo IV– de un emperador nacido en Hipania y afincado en Constantinopla para afirmar en el orbe conocido la fe verdadera trinitaria? ¿O bien fue el emperador segoviano quien, desde el extremo oriental del Imperio, se sirvió de la una fe única en un único Dios trinitario para consolidar la unidad de su Imperio, a ejemplo de su predecesor Constantino?

Esta biografía del emperador Teodosio es también, y sobre todo, un inmenso tapiz en el que bulle la efervescencia del Imperio romano en el último tercio del siglo IV de nuestra era. Descomunales personajes diseminados por el espacio mediterráneo de los cuales –bajo el bisturí impasible del historiador– uno puede deslindar hasta qué punto fueron héroes y santos o bien meros usurpadores y estrategas: obispos como Ambrosio de Milán, Dámaso de Roma, Cirilo de Jerusalén, Demófilo y Nectario de Constantinopla, Petros de Alejandría, Gregorio de Nacianzo; usurpadores como Máximo y Eugenio; paganos y cristianos herejes de todo pelaje y distinta grandeza: apolinaristas, eunomianos, homoiusianos, maniqueos, priscilianistas; bárbaros del Este presionados por el hambre y las guerras y finalmente asimilados a los ejércitos imperiales: godos, alanos, hunos…

¿Y a todo esto, en qué consiste la grandeza de Teodosio? Fueron muchos los temas en los que Teodosio siguió de cerca los pasos de sus predecesores. Lo novedoso en su gobierno parece situarse en la capacidad de servirse del cristianismo, que se había convertido en una potencia social de primer orden, para afirmar su poder.

In:  Herder 


Quando soube desse livro, e vi que o autor é alemão, já estava quase certo de que se tratava de uma boa obra - nunca soube de um historiador germânico que fizesse um mau trabalho. E a expectativa se confirmou. Trata-se de um livro erudito, bem escrito e objetivo, embora forneça um panorama interessante acerca do quadro político-militar e religioso do século IV. Dezenove figuras - dentre elas várias representações numismáticas - e três mapas facilitam a compreensão da narrativa. Todos os capítulos são devidamente referenciados, e Leppin se utilizou largamente da documentação primária disponível. A obra conta ainda com um oportuno glossário.

O imperador Teodósio (379-395) que é retratado por Leppin é um homem pragmático e religioso, dividido assim por essa ambiguidade existencial. Homem pacífico, tolerante e integrador, viu-se desde o início pressionado pelas consequências nefastas da arrasadora derrota romana em Adrianópolis (378). Em muitos casos teve tremenda sorte (alguns apelariam à Providência), sendo talvez a principal delas a paz com a Pérsia, que durante todo o seu reinado esteve ocupada com seus próprios problemas. Em compensação, teve ameaças de sobra no quadro político interno, com usurpadores como Máximo e Eugênio, que levaram-no a empregar a nova força militar do exército romano tardio: os foederati bárbaros. Os visigodos, aliados do Império após invadirem-no em fins da década de 370, pagaram um preço de sangue alto a Teodósio.

De modo geral, Leppin se sai muito bem ao lidar com uma das questões mais problemáticas da Antiguidade Tardia: as ligações entre a religião e o poder. Demonstrou ter a imparcialidade que se espera de um historiador. Isso não quer dizer que sua análise seja isenta de erros - por vezes ele se inclina ao ceticismo ao considerar os interesses do imperador acima de sua fé. Mas isso não compromete de modo algum sua narrativa, e com a escassez de fontes sobre o assunto, pode ser que tenha razão. O mais discutível neste ponto é a sua opinião de que a novidade no governo de Teodósio foi a capacidade imperial de servir-se do cristianismo. Ora, Constantino, no início do século IV, deu mostras indiscutíveis dessa capacidade. 

O balanço final sobre o Teodósio enquanto estadista é muito oportuno: "No fue un modelador de la historia, un impulsor, no hay en él nada de brillante" (p. 282). Mesmo assim, a Igreja agiu corretamente ao conceder-lhe o título de "o Grande" e a historiografia pode prosseguir no mesmo caminho, visto que Teodósio soube aproveitar a força da Igreja de Nicéia aos seus próprios fins, ao passo em que os cristãos alcançavam crescente influência tanto no cotidiano quanto no estilo de governo. 

Enfim, trata-se de um livro a ser lido. Até porque o preço é módico (26 €), sobretudo se considerarmos um pensamento do professor que inspirou-me a publicar essas dicas de leitura: "Se você acha caro o valor do conhecimento, procure saber o preço da ignorância."

Portugal Romano

sábado, 5 de maio de 2012

A Lusitânia tornou-se província romana a partir de 29 a.C. Era a província ocidental mais remota, e integrava o atual território português ao sul do Douro, mais a Estremadura e parte da província da Salamanca (Espanha). O domínio romano prosseguiu até 411, quando a Lusitânia passou ao controle dos bárbaros alanos. A capital da província era Emerita Augusta, atual Mérida. Olisipo (atual Lisboa), uma das cidades mais antigas da Europa, era também uma das mais importantes da província, e estava isenta de impostos por ter se aliado aos romanos durante as guerras de conquista. Hoje é possível conhecer parte de seu passado romano graças à reconstrução da cidade após o terramoto de 1755. Um dos monumentos mais notáveis da época romana são as Galerias romanas da rua da Prata. Vale a pena conferir também o núcleo arqueológico da rua dos Correiros e as termas romanas dos Cássios.  

Mais informações em: Portugal Romano

Passado e passados

sábado, 7 de abril de 2012


"Nada é mais antigo que o passado recente." Assim se pronunciou o grande Nelson Rodrigues (1912-1980), dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro. A frase - contraditória à primeira vista - serve-nos de munição para aniquilarmos a terminologia mal forjada de uma corrente da historiografia: a dita "História do Tempo Presente." Não existe História do Tempo Presente, assim como não existe História do Futuro. O presente é um brevíssimo lapso temporal, fugidio e inacabado. O tempo no qual escrevia a frase anterior está já no passado, e o passado, como sabemos, é um dado imutável. Por mais que se tente, por mais queira modificá-lo, o máximo que se conseguirá é produzir versões diferentes do que ele foi. Versões essas que nada mais são que mentira, muitas vezes intoxicadas por ideologias e preconceitos.

Já em seus primórdios a História dedicava-se aos acontecimentos mais recentes, como atesta as obras de Heródoto (485? a.C. - 420 a.C.), Tucídides (entre 460-455 a.C. - c. 400 a.C.) e Políbio (c. 210/200 – c. 127 a.C.). Pensava-se que o passado mais remoto seria impossível de ser estudado. A tradição oral, os lapsos, as perdas e os esquecimentos tornariam-no irreconhecível. Ainda hoje há quem pense assim quando, na verdade, a análise dos fatos recentes pode ser ainda mais complicada. Ora, ao observarmos a atualidade somos estudiosos e ao mesmo tempo objeto, além de que o excesso de informação coloca-nos um grande desafio. Não usufruimos da distância temporal e emocional tão oportuna que temos, por exemplo, ao estudarmos a História da Antiguidade.

No meu quase um quarto de século de vida (completarei em 13/07), testemunhei grandes transformações. Sempre apreciei a atualidade internacional e sobretudo nestes últimos anos ela tem sido especialmente rica. Ainda não possuía consciência política quando caiu o muro de Berlim (1989) e a moribunda URSS (nata de 1991). A transição do antigo bloco comunista para o mundo capitalista e democrático (transição essa longe de sua conclusão) é guardada em minha memória sobretudo pela figura espalhafatosa de Bóris Yeltsin (1931-2007). Apesar de ser miúdo, lembro-me perfeitamente das imagens da Guerra do Golfo (1991), quando os EUA e as força de sua coligação derrotaram de forma avassaladora o Iraque do tresloucado Saddam Husseim (1937-2006), executado após a Guerra do Iraque (2003). Esta foi um bizarro ato da administração de Bush filho, justificado dentro do contexto da Guerra ao Terror, desencadeada após aos atentados terroristas em 2001, quando quase três mil vidas foram ceifadas em solo americano, e as torres gêmeas do World Trade Center foram abaixo, bem como uma parte do Pentágono, atingindo em cheio o orgulho ianque. No Brasil, os anos 90 foram marcados pelas primeiras eleições diretas da redemocratização, o impeachment de Collor, a estabilização e abertura da economia pelos presidentes Itamar Franco e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).

Em 2002 eu já estudava no internato, iniciando uma importante fase de minha vida. Naquele ano a seleção brasileira de futebol venceu a Copa do Mundo do Japão e da Coreia e sagrou-se pentacampeã. No segundo semestre o PSDB perdeu as elições no 2º turno e Lula, do PT, realizou seu sonho de se tornar presidente. Embora com o governo mergulhado em escândalos de corrupção, reelegeu-se em 2006, permanecendo no poder até 2010. Ele conseguiu ainda fazer a sucessora, a primeira mulher a governar o Brasil, no poder até hoje.

Desde a "era FHC" o país vem alcançando mais projeção internacional, embora as diretrizes do PT sejam um tanto atrapalhadas às vezes (como apoiar as ditaduras dos aiatolás, no Irão, e dos irmãos Castro, em Cuba). O país passou a acalentar pretensões de ter um assento permanente no obsoleto Conselho de Segurança da ONU. Ao lado de Rússia, Índia, China e agora África do Sul, forma o grupo dos países emergentes (BRICs).

Em todo o mundo, grandes problemas econômicos, políticos, sociais e ambientais continuaram a receber destaque. Novas doenças e pestes nos assombraram com alguma regularidade. Golpes de Estado, guerras civis, movimentos separatistas e emergência de novas nações em um espectro político para lá de confuso também pipocaram. Como se tudo isso não bastasse, uma crise econômica mundial estourou em 2008. Os culpados, o 1%, como acabaram denominados pelos movimentos de ocupação que surgiram para contestar o sistema. O 1% nada mais seria que os especuladores, aqueles que movimentam o capital financeiro sem produzir nada, arrastando economias de países inteiros para a crise devido aos seus malabarismos financeiros irresponsáveis. Nesse mundo atribulado, uma dose de esperança: Barack Hussein Obama II, o primeiro negro a se tornar presidente dos Estados Unidos da América. Tomou posse em 20/01/2009, e logo viria a se revelar uma decepção. Embora tenha vencido o nobel da paz no mesmo ano, umas das poucas coisas que fez nesse sentido foi retirar as tropas americanas do Iraque, onde a situação já era insustentável. Não fechou a infame prisão de Guantánamo e manteve a ocupação do Afeganistão. Foi pego de surpresa com a "Primavera árabe", um movimento popular que passou a exigir a renúncia dos ditadores no norte da África e no Médio Oriente.

Entre o início da crise e estes acontecimentos que acabei de descrever, conclui a licenciatura e o bacharelado, a seguir comecei a lecionar, tomei posse em um concurso e pedi exoneração pouco depois a fim de embarcar rumo ao mestrado na Universidade de Lisboa (2010). Ao chegar no aeroporto, ainda com poucas informações sobre o que me aguardava, um jornal esquecido em um assento deu-me as boas-vindas. A manchete dizia o seguinte: "O Primeiro-Ministro prevê um ano terrível para os portugueses". Considerando que os políticos por norma sempre tentam esconder ou minimizar uma catástrofe, vi que estava a entrar num mundo caótico. Poucos dias depois a República Portuguesa comemorava 100 anos de existência (05/10/2010), sem grandes razões para celebrar. Nos meses que se seguiram o governo finalmente cedeu e suplicou um pacote de ajuda financeira junto ao famigerado FMI, sendo obrigado a acatar uma série de exigências que quase sufocaria as vidas dos trabalhadores. A Espanha bate recordes de desemprego, e na Itália a situação não é das melhores (tem pedido "socorro" para que seus antigos e belos monumentos, como o Coliseu, possam ser preservados). Na Grécia a situação é gravíssima, sendo que há alguns dias um aposentado suicidou-se perto do Parlamento por recusar-se "a buscar comida no lixo." É a crise (quiçá o ocaso?) do Velho Mundo.

No presente, a comunidade internacional se incomoda com as pretensões nucleares do Irão e da Coreia do Norte (na 3ª geração de ditadores comunistas endeusados), além dos massacres sem interrupção na Síria. Um golpe de Estado e a instalação de uma junta militar no Mali revelou, mais uma vez, como boa parte do continente africano está longe de alcançar a maturidade institucional e democrática.

Assim segue o mundo, com velhos e novos problemas. Mas, no fundo, em essência a humanidade continua a mesma. Como dizia o Pregador (Salomão?): "Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: Veja: isto é novo, ela já existia nos tempos passados." Eclesiastes 1, 10.


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Imagem: A Persistência da Memória (1931), 24cm x 33 cm, de Salvador Dalí.

O historiador e a sua profissão

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012


O que significam as palavras escritas? O que o escritor quis dizer com aquilo quando escreveu? Por que escreveu? Quando? Como? Onde? Para quem? Na belíssima iluminura medieval acima, o bispo Virgil von Salzburg (c. 746-784) medita profundamente o texto que acaba de ler. Sua mão direita apóia seu queixo, seus imensos olhos perscrutam o livro aberto. A cena, reflexiva e contemplativa, é emoldurada por seres fantásticos e sinuosos motivos geométricos. Viena, Osterreichische Nationalbibliothek, Cod. 1224, fol. 17v. (Texto de Ricardo da Costa)


Como historiadores, somos frequentemente questionados sobre o sentido do nosso trabalho. Marc Bloch (1886-1944), em sua esplêndida obra Apologia da História ou O ofício de historiador já dizia que se a História fosse julgada incapaz de outras tarefas, poderíamos dizer ao seu favor que ela diverte. De fato. As humanidades - da qual a História faz parte - são disciplinas não-práticas que têm por meta a sabedoria. Diferem-se, portanto, das ciências, que têm por objetivo a maestria, e são matérias práticas por excelência.

Na Antiguidade Clássica, Políbio (c. 203 a.C.-120 a.C.), geógrafo e historiador grego, acreditava que "a melhor educação e a melhor aprendizagem para a vida política ativa é o estudo da História" (Histórias, I, p.1). Na Idade Média, o Islã produziu um genial filósofo da História - Ibn Khaldun (1332-1406). Segundo ele (al-Muqaddima, introdução):

A História é uma ciência nobre. Apresenta muitos aspectos úteis. Propõe-se atingir um fim nobre. Faz-nos conhecer as condições específicas das nações antigas, que se traduzem no seu caráter nacional. (...) Assim, quem quiser pode obter bons resultados, pela imitação dos modelos históricos, religiosos e profanos. Para escrever obras históricas é preciso dispor de numerosas fontes e variados conhecimentos. É também preciso um espírito reflexivo e profundo: para permitir ao investigador atingir a verdade e defender-se do erro.

Na Renascença, o humanista e filósofo neoplatônico Marsílio Ficino entendeu perfeitamente a importância do estudo da História para a vida humana. Em carta a Giácomo Bracciolini, Ficino registrou iluminadas palavras acerca do valor da História:

A História é importante não apenas para tornar a vida mais agradável mas também para lhe dar uma significação moral. O que é imortal em si mesmo consegue a imortalidade através da História; o que é ausente torna-se presente, velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo se iguala à maturidade dos velhos. Se um homem de setenta anos é considerado sábio devido à sua idade, quão mais sábio é aquele cuja vida abrange o espaço de mil ou três mil anos! Pois, na verdade, pode-se dizer que um homem viveu tantos milênios quantos os abarcados pelo seu alcance de conhecimento de História.

Ao buscar a sabedoria e orientado pela paixão (que em algum momento amadurece e se torna amor), o historiador escolhe o seu tema. A seguir, em pleno trabalho, debruça-se sobre as suas fontes - textuais, orais, arqueológicas, iconográficas, etc.. Faz uma imersão nos símbolos ao tentar compreender o texto. Este é a expressão que restou dos homens, que são o seu objeto. Imagina. Sim, segundo Georges Duby (1919-1996), o historiador deve imaginar. A seguir, sonha com a História - para Fernand Braudel (1902-1985, “quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.”

Mas o historiador tem um compromisso com a verdade (segundo Cícero [106-43 a.C.], antes de tudo espera-se que ele só diga a verdade). Isto põe freios à sua imaginação. Para que ele não queira que o passado tenha sido algo que não foi, algo que gostaria que tivesse sido - o que invalidaria o seu esforço intelectual - lança mão de teoria e métodos. Só eles os mantêm totalmente seguros do alerta de Eric Hobsbawm (1917-2012):

A História é atualmente revista ou inventada por gente que não deseja o passado real, mas somente um passado que sirva aos seus objetivos. Estamos hoje na grande época da mitologia histórica.

Após todo esse percurso, o historiador escreve. Esta é a expressão final do seu trabalho. Há alguns raros eleitos que, sem abandonarem a erudição ou se tornarem incompreensíveis aos leigos, imprimem grande estilo ao seu texto. Penso aqui em um Edward Gibbon (1737-1794) ou um Johan Huizinga (1872-1945) que se tornaram referências neste quesito. O já citado Cícero dizia: "A mim me bastam a clareza e a simplicidade, que são o melhor ornamento da verdade (...) falar clara e simplesmente é o que compete a um homem inteligente e douto" (Do sumo bem e do sumo mal, Livro III, V). Assim, em última análise, o historiador é um escriba (lembro-me aqui daquela maravilhosa fonte egípcia na qual o pai recomendava ao filho esta profissão, a melhor de todas). O "fruto" do seu trabalho não deve ser reputado como menos digno:

O fruto das letras é, por muitas razões, o mais aprazível, principalmente porque, suprimido o empecilho de qualquer separação espacial e temporal, elas exibem aos amigos a presença mútua, e não permitem que pereçam com o tempo as coisas dignas de lembrança. Pois até as artes teriam perecido, os juramentos ter-se-iam esvaído, todos os ofícios de qualquer religião teriam ruído, e o próprio uso da boa expressão ter-se-ia corrompido, se a misericórdia divina não tivesse providenciado para aos mortais o uso das letras como remédio para a fraqueza humana. O exemplo dos antigos, a exortação e incentivo da virtude, não erigiria nem conservaria absolutamente nada, se a solicitude piedosa dos escritores e o zelo, vencedor do descuido, não tivessem transmitido aos pósteros. John of Salisbury, Policraticus (1159).

Mas alguém ainda pode querer um dado "mais próximo" em favor da História. Para o que há pouco se apaixonou pela adorável Clio, aquele pobre a enfrentar as pressões internas, familiares e sociais para escolher uma profissão "mais rentável", ficam as dicas de dois livros, recém-lançados. O primeiro é de Karl Pillemer e chama-se 30 Lessons for Living. Trata-se de uma compilação de mais de 1.000 entrevistas realizadas com idosos de diferentes níveis econômicos e educacionais, destinadas ao objetivo de oferecer conselhos práticos baseados no que estes fizeram de certo ou errado em suas vidas. Questionados sobre a carreira profissional, nenhum dos mil entrevistados considerou que a felicidade estaria associada ao trabalho excessivo que rendesse dinheiro suficiente para comprar o que quer que fosse. Há ainda outros estudos, desnecessários de serem mencionados que aqui, que apontam para a mesma conclusão: não é o dinheiro que traz a felicidade. Bons profissionais trabalham naquilo que amam, e o retorno financeiro é mera consequência disso.

O segundo livro foi escrito pela enfermeira australiana Bronnie Ware, especialista em cuidados paliativos e doentes terminais. O livro intitula-se The Top Five Regrets of the Dying - A Life Transformed by the Dearly Departing . Segundo a autora, reuniu nele 'confissões honestas e francas de pessoas em seus leitos de morte.' Advinha qual foi o maior arrependimento que ela constatou? Não ter tido coragem de se fazer o que realmente se queria e não o que outros esperavam que fosse feito.

Tendo tudo isso em vista, só tenta dissuadir o filho da ideia de cursar História o pai que desconhece o pensamento abaixo:

O meu filho deve ler muita História e meditar sobre ela; é a única filosofia verdadeira. Napoleão Bonaparte, Testamento político (Abril de 1821).


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- Para os que queiram se aprofundar na questão da utilidade da História, recomento o artigo do Prof. Dr. Ricardo da Costa intitulado Para que serve a História? Para nada... , in: AQUI.
- Sobre o livro de Karl Pillemer, ver G1.
- Sobre o livro de Bronnie Ware, ver G1 (Ciência e Saúde).