sexta-feira, 21 de dezembro de 2012
Em 2002, o primeiro «proletário» foi eleito presidente do Brasil, por um partido que diz ser «dos trabalhadores». Nunca simpatizei-me com aquela figura ou com aquele partido. Mas existia uma esperança no ar, a sensação de que, por vias democráticas, os trabalhadores e os menos favorecidos iriam obter, finalmente, as suas reivindicações sociais.
Em dezembro do mesmo ano eu era um rapaz de quinze anos, já de barba, a passear por um Shopping Center. Não era nenhum consumista foraz, pelo contrário. Possuía muito pouco para além dos tostões dados pelos meus pais para pagar o meu transporte até lá, onde devia buscar o meu R.G. No entanto, o ardor revolucionário já me contagiava. Eu acabara de concluir o 1º ano do Ensino Médio, em um colégio interno. Era bolsista nesse colégio, tendo a obrigação de trabalhar longas horas na agricultura, abrasado pelo sol escaldante do norte do estado do Espírito Santo. Assim, me identificava ao proletariado. Era também apaixonado pela História, e essa disciplina, como se sabe, normalmente é ensinada com forte viés de esquerda nas escolas brasileiras.
Tudo isso me levava a uma obra que povoava a minha imaginação: O Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. Hoje sei que é o pior livro do mundo. Mas naquela fase de ingenuidade, procurava-o nas bibliotecas das escolas onde estudava. Para a minha decepção, pobres como a Coreia do Norte, tais bibliotecas não contavam com um único exemplar do Manifesto. Assim, naquele dia a andar pelo Shopping, num gesto revolucionário, lancei mão aos tostões que tinha no bolso, entrei numa livraria do Shopping e saí de lá munido para ser um revolucionário. A obra pareceu-me interessante, um texto ligeiro, próprio de um panfleto. No entanto, chamou-me a atenção os vários elogios tecidos à burguesia, tida como um classe autenticamente revolucionária.
O tempo passou. Não me tornei comunista, mas sempre era simpático, embora ferrenhamente anti-petista. Achava difícil conciliar o ateísmo pregado por Marx com o meu cristianismo, que não tinha intenções de abandonar (sobre a incompatibilidade entre o cristianismo e o marxismo, leia aqui).
Quis ler O Capital, mas não encontrei-o, e também não tinha como comprá-la. Mas lia o que podia, e estava sempre interessado em aprender mais sobre o assunto. Uma dessas leituras foi o panfletário As veias abertas da América Latina, do Eduardo Galeano. Em minha curiosidade intelectual, encontrei-o ao acaso na biblioteca da então Escola Agrotécnica Federal de Colatina (hoje IFES de Itapina). Tinha entre 16 e 17 anos. Recentemente, o autor mudou de ideia sobre o livro, 43 anos após escrevê-lo (leia aqui). Felizmente, eu mudei de ideia antes, como verão a seguir.
No primeiro semestre de 2006, eu ingressei na graduação de História. Lá eu pude ler muito mais, da literatura marxista e da anti-marxista. Meus olhos definitivamente se abriram. Além dos livros, marcaram-me documentários como The Soviet story. Vi que o comunismo se tratava de uma religião secular que legitimava o roubo e o massacre.
Transcorridos dez anos do meu primeiro contato com a literatura marxista, estava em Lisboa, prestes a concluir o mestrado em História. À noite, o meu passatempo era ler O Retrato, do O. Peralva, um clássico sobre a hipocrisia e as mentiras no PCB e no comunismo em geral. Mas, num dia do início de dezembro de 2012, encontrei, ao acaso, na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o seguinte livro:
GIROUD, Françoise. Jenny - a mulher de Karl Marx. Tradução de Eduardo Saló. Lisboa: Edição «Livros do Brasil», 1992.
[Nota: O título original está isento de qualquer eufemismo: Jenny Marx ou la femme du diable. Além da alteração descarada do título original, lemos na contracapa do livro: «Venda interdita na República Federativa do Brasil». Por quê? O livro foi traduzido em pleno regime democrático, por uma editora que se auto-intitula «Livros do Brasil»!]
Como o mundo dá voltas! Passados dez anos da minha leitura do Manifesto, debruçava-me sobre a vida da «mulher do diabo». A primeira surpresa: Marx se casou com uma aristocrata!
O livro é bastante interessante, e muito bem escrito. Põe «o rei a nu». Hipócrita, o Marx que salta em suas páginas é alguém que nunca visitou um bairro operário e que sempre vivia atrás de heranças (outra surpresa, no Manifesto é defendido o confisco de heranças!). Isso quando não recorria à sempre oportuna mesada de seu amigo Engels, um playboy.
Oh, mas como sofreu a pobre Jenny! Era uma linda mulher, e como tal era considerada pelos seus coetâneos. Era mais velha que Marx, e chegou a ficar noiva de outro pretendente. No entanto, este era uma «porteira», e a nossa Jenny apreciava homens inteligentes. Deu no «cabeção» (expressão do Diogo Mainardi). Após sete anos de noivado, eles se casaram. Mas, ao invés de procurar um emprego, seu marido preferia tagarelar com os comunistas ou escrever artigos e livros que rendiam muito pouco ou nada (alguns desses artigos eram, na verdade, de autoria de Engels, que cedia-os ao amigo sanguessuga, para que ele não morresse de fome). Quando não tricotava com os comunistas, Marx traía a esposa com a empregada, com quem teve um filho que nunca reconheceu. Como se não bastasse, o «mouro» fez com que Engels assumisse o menino para salvar a sua pele.
Os Marx quase sempre viviam em penúria, e quando ganhavam dinheiro, viviam como burgueses inconsequentes. Como eram hipócritas! Apesar de todos os problemas, parecia existir amor naquele lar, onde vários de seus rebentos morreram muito cedo (um deles passou muito tempo insepulto, por falta de grana para as exéquias). Mas as tragédias não pararam por aí. Duas filhas do casal se suicidaram na fase adulta, após a morte dos pais (uma delas junto com o marido, após concordarem de que não queriam atingir os setenta anos).
O livro é ideal para quem aprecia uma leitura leve, sem notas ou orações longas. Uma pena não ter uma bibliografia básica ao final, o que o desmerece enquanto literatura acadêmica. Bem, não vou me alongar sobre mais detalhes. Apenas citarei alguns excertos para estimular o vosso interesse.
O primeiro é de um «retrato» de Jenny, elaborado por um familiar, Wilhelm Liebnecht:
Foi ela a primeira pessoa que me ensinou a admitir o poder educativo da mulher (...). Antes de a conhecer, eu não tinha abarcado a verdade das palavras de Goethe: ‘Se queres aprender realmente o que convém, dirigi-te às mulheres nobres!’
Representou para mim, ora aquela que humaniza e educa os bárbaros, ora aquela que incute calma a quem se exalta ou duvida. Era simultaneamente mãe, amiga, confidente e conselheira. Foi e continua a ser, para mim, o ideal de mulher. (p. 179)
A seguir, como Marx, um antissemita e insensível para com a mãe, via o papel das mulheres:
Quem conhece a História sabe que as grandes mudanças sociais são impossíveis sem o fermento feminino. O progresso social pode medir-se exatamente pelo estatuto social do belo sexo (as feias incluídas). (p. 194)
Marx, Carta ao Dr. Kugelmann
Ora, pois, o «diabo» sabia ser espirituoso! E quanto à «cruz» da esposa, como ele se portava? Bem, «Marx, um bruto em muitos aspectos, sempre revelou uma profunda consciência das provações sofridas por Jenny» (p. 196). Assim, com uma mulher tão devota, o mínimo que ele poderia fazer era reconhecer a importância das mulheres na História, como o fez no trecho da carta acima.
Encerro com as palavras finais do livro, uma excelente conclusão:
Foram quatro os filhos de Jennychen Longuet (...) que asseguraram a descendência dos Marx. Mas os verdadeiros filhos de Marx estavam certamente noutro lugar. Entre os milhões e milhões (...) que veneram o profeta do céu na Terra, julgando encontrar nele, não uma filosofia, mas uma ciência com leis próprias para erradicar a miséria e sofrimento.
Ainda se vendem posters de Marx, na China. No entanto, a ilusão morreu, o mito desintegrou-se e o socialismo científico permanecerá como a mais trágica impostura do século.
Jenny von Westphalen, criatura de amor e de fé, terá sido a sua primeira e voluntária vítima. (p. 241)
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- Existem outras biografias de Marx e de sua mulher. A mais recente, Love and capital, foi escrita por Mary Gabriel. Leia o comentário de Lucas Mendes na BBC Brasil.
[Nota: contrariando as minhas expectativas, esse livro foi publicado no Brasil em 2013. Ele pode ser adquirido AQUI, e uma entrevista com a autora pode ler lida AQUI.]
- Recomendo veementemente os artigos Heil, Stálin! e Os filhos do marxismo, publicados no site Mídia Sem Máscara.
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