sexta-feira, 30 de junho de 2023
Historia magistra vitae est. Cícero (106-43 a.C.)
A Sociedade Civil é um grupo de instituições e associações suficientemente fortes para impedir a tirania, nas quais, entretanto, se entra e das quais se sai livremente, e não por imposição do nascimento ou de um ritual impressionante. Pode-se, por exemplo, aderir ao Partido Trabalhista sem ter que matar uma ovelha - na verdade, dificilmente seria permitido que se fizesse isso - e sair sem correr o risco de ser condenado à morte por apostasia. Quando os partidos políticos modernos se estabeleceram no recém-independente Marrocos em 1956, as tribos das montanhas aderiram a eles no velho estilo, como estavam habituadas a fazer nos movimentos religiosos: fizeram-no como coletividades, com um juramento e um sacrifício. Um clã, não um indivíduo, se filiaria ao Partido Socialista, e um touro pereceria nesse processo. Era a curiosa confluência de dois códigos sociais distintos. A comunidade carismática que penaliza a apostasia com a morte é uma outra questão, e não pode conviver facilmente com a Sociedade Civil. A verdadeira Umma foi e é completamente diferente em suas instituições morais, como o público ocidental ficou sabendo, para seu horror, através do caso Rushdie.
GELLNER, Ernest. Condições da Liberdade - a sociedade civil e seus rivais. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 93.
A lista de grandes nomes associados com a Viena do fim do século XIX e do início do século XX parece infinita. A relação inclui:
1. Filósofos: Ludwig Boltzmann, Franz Brentano, Rudolph Camap, Edmund Husserl, Ernst Mach, Alexius Meinong, Karl popper, Moritz Schlick e Ludwig Wittgenstein.
2. Matemáticos: Kurt Godel, Hans Hahn, Karl Menger e Richard von Mises.
3. Economistas: Eugen von Böhm-Bawerk, Gottfried von Haberler, Friedrich A. von Hayek, Carl Menger, Fritz Machlup, Ludwig von Mises, Oskar Morgenstern, Joseph Schumpeter e Friedrich von Wieser.
4. Advogados e juristas: Rudolph Jhering, Hans Kelsen, Anton Menger e Lorenz von Stein.
5. Psicologistas: Alfred Adler, Joseph Breuer, Karl Bühler e Sigmund Freud.
6. Historiadores e sociólogos: Max Adler, Otto Bauer, Egon Friedell, Heinrich Friedjung, Paul Lazarsfeld, Gustav Ratzenhofer e Alfred Schutz.
7. Escritores e críticos literários: Hermann Broch, Franz Grillparzer, Hugo von Hofmannsthal, Karl Kraus, Fritz Mauthner, Robert Musil, Arthur Schnitzler, Georg Trakl, Otto Weininger e Stefan Zweig.
8. Artistas e arquitetos: Gustav Klimt, Oskar Kokoschka, Adolf Loos e Egon Schiele.
9. Compositores: Alban Berg, Johannes Brahms, Anton Bruckner, Franz Lehar, Gustav Mahler, Arnold Schonberg, Johann Strauss, Anton von Webern e Hugo Wolf.
"Quando homens maus se unem, homens bons devem se associar; caso contrário, eles vão acabar, um por um, fazendo um sacrifício impiedoso em uma luta ingrata."
Edmund Burke (1729-1797)
Centralização Política e Descentralização Econômica
Há duas razões principais pelas quais a descentralização econômica é essencial na sociedade industrial e constitui certamente um pré-requisito de qualquer coisa que se assemelhe a uma Sociedade Civil.
Essa sociedade só pode ser plural - e contendo forças e mecanismos que contrabalancem o poder, que estejam situados na esfera econômica ou funcionem através do poder econômico - precisamente porque uma efetiva centralização política coercitiva é um pré-requisito necessário para seu funcionamento; assim não pode haver muito equilíbrio na esfera coercitiva. As sociedades tradicionais podem ter pluralismo na esfera da manutenção da ordem, e algumas vezes o têm. Como as estruturas econômicas e sociais não são separadas das políticas, devem tê-lo nessa esfera conjunta, se é que devem tê-lo em algum lugar.
Na medida em que esse pluralismo político pressupõe eventuais ou ocasionais conflitos violentos, as unidades que se opõem entre si e que de tempos em tempos entram em conflito devem assegurar-se da lealdade de seus membros, suficiente para levá-los a lutar e a arriscar suas vidas. Consequentemente, como já dissemos, devem ser altamente ritualizadas.
Na moderna sociedade industrial, essa profunda aura adere apenas à comunidade total, o Estado Nacional, e talvez à preservação da sua ordem política básica. Não adere às subunidades, que são opcionais e superficiais. Não se espera que um homem morra pela sua região, seu burgo ou sua comunidade de trabalho. Não é obrigado a usar roupas que indiquem sua condição de membro de um grupo, nem é obrigado a torcer pela equipe esportiva local. Pode, sem ser insultado ou agredido, torcer pela rival. Há torcidas da Inter de Milão fora de Milão, ou do Manchester United fora de Manchester, e seus membros não são excluídos dos ritos e da vida social de suas comunidades locais - podem frequentar as festas locais tranquilamente. Isso deve ter sido difícil na cidade antiga, mas é aceito na moderna. Um homem pode modificar laços desse tipo sem sentir-se envergonhado ou estigmatizado. O que George Santayana disse sobre nossa nacionalidade e sobre nossas relações com as mulheres - não podem ser honrosamente modificadas, e são muito acidentais para merecer mudanças - aplica-se ao país, mas não à região. Podemos mudar de região sem formalidades, rituais, trauma ou traição. Não era assim nos dias de clãs e linhagens. A comunidade total nacional ainda é muito significativa - ou antes, é mais significativa do que jamais foi - mas suas subunidades perderam sua potência.
Por essas várias razões, o pluralismo político, em termos de unidades coercivas independentes ou autônomas, está "fora de moda". As unidades locais não têm o peso adequado. Por outro lado, a liberdade é impossível sem pluralismo, sem um equilíbrio de poder. Como não pode ser política, tem que ser econômica. (O pluralismo ideológico ainda deve ser discutido; por enquanto, a argumentação supõe apenas duas opções.)
GELLNER, Ernest. Condições da Liberdade - a sociedade civil e seus rivais. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 80-84.
A virtude como objetivo de Estado ou como política pública é provavelmente desastrosa para a liberdade. A virtude, livremente praticada entre adultos, pode ser uma boa companheira da Sociedade Civil, ou até o seu pré-requisito essencial. A preocupação com a virtude levou os homens a uma desinteressada procura do interesse - acumulação sem gozo, daí reinvestimento, daí crescimento contínuo - mais do que a uma transformação da riqueza em poder, status, prazer ou salvação, como é mais comum entre os homens. Foi o interesse desinteressado que estava na base do capitalismo, segundo Max Weber; e foi uma vocação mais individualmente escolhida do que socialmente imposta que produziu uma sociedade móvel e inovadora.
GELLNER, Ernest. Condições da Liberdade - a sociedade civil e seus rivais. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 72.
O "ASSUNTO DEUS" é complicado. Em jantares inteligentes, é mais fácil você confessar que faz sexo com dobermans, prova de que seu gosto ultrapassou formas sexuais conservadoras. Mas, se falar sobre Deus, há risco grave de que não te convidem mais. E aí nunca mais aquela cozinha vietnamita. Melhor se dizer um budista light.
Mas a mania que muito religioso tem de achar que tudo na vida se deve a Deus (ou similares) é um saco! Isso fala mais de sua preguiça e medo do que de Deus.
Entendo o bode dos ateus com essa gente. Para mim, essa conversa é semelhante ao papo de que você tem câncer porque não resolveu adequadamente seus conteúdos emocionais. Ora bolas, isso quer dizer que, se todo mundo um dia for feliz, ninguém vai ter câncer? Ou que, pior, além de ter câncer, você é um babaca responsável pelo câncer porque não fez terapia? Conheço gente que se diz ateia (e com isso se acha mais inteligente, como de costume) e acredita nessa baboseira de que o amor cura câncer.
Mas, desculpe-me, ateísmo é coisa banal. Quando eu tinha oito anos era ateu. O ateísmo é óbvio (por isso comecei a desconfiar dele), diante do lamentável estado da vida: somos uma raça abandonada (Horkheimer). Ateísmo não choca mais ninguém (pelo menos quem já leu uns três livros sérios na vida), porque ateus já são vendidos às dúzias em liquidações. E mais: ser ou não ateu não diz nada acerca de como a pessoa se comporta com os outros (ao contrário do que muitos ateus e não ateus pensam). Existem canalhas de ambos os lados do muro. Deus, como se diz em filosofia, "é uma variável sem controle epistemológico", isto é, não se testa Deus em um laboratório.
Mas, antes, uma pequena heresia.
Mais chocante hoje é alguém se confessar que não crê no aquecimento global, pelo menos na versão que aconteceu nesse espetacular concílio bizantino em Copenhague, reunindo toda a gente legal do mundo.
Confesso minha fraqueza: sou um herege, não acredito que meu pequeno carro aqueça o planeta, mas já estou pagando mais imposto por isso e tenho certeza de que outros virão. Acho essa história uma mistura de ego inflado (disputamos com o Sol para ver quem aquece mais?) e tédio (que tal salvar o planeta? A vida está tão chata na Dinamarca!). Meu cachorro anda triste? Deve ser o aquecimento global.
Sei que dizem que é fato científico, mas, para mim, que sou um medieval, só acredito na ciência quando vem no formato de resultados de exames do Fleury ou do Delboni, e não quando tem a ONU no meio e gente ganhando milhares de euros salvando o planeta. Para mim, Copenhague foi aquele tipo de concílio onde se discutia se a roupa de Jesus era dele ou não. Temperamentos autoritários rejubilaram em Copenhague.
E o ateísmo? A constatação de que o mundo é péssimo e, por isso, Deus não deve existir é razoável. A primeira vez que isso me ocorreu foi quando descobri que existiam colegas mais felizes do que eu na escola, e aí eu julguei o mundo injusto. Se Deus, como todo mundo me dizia, era bom, por que eu não era o cara mais forte do mundo? Decidi que Deus não existia. Ou não era bom. O ateísmo é uma conclusão óbvia, não há nenhuma grande inteligência nisso. Qualquer golfinho consegue ser ateu.
Anos mais tarde, fosse eu uma dessas pessoas legais que creem no marketing do bem, concluiria que o mais justo seria que todos fossem igualmente felizes, e aí Deus teria sido democrático. Graças a Deus, nunca passei pelo ridículo de pensar assim. Quanto a Deus ser mau, concluí que melhor seria mesmo considerar o universo indiferente e cego e mecanicamente cruel. Naquele dia, tornei-me um trágico (antes de ler Nietzsche ou Darwin).
Poucos ateus não são descendentes de uma criança infeliz e revoltada (e, veja, 110% das crianças, esses pequenos lindos monstros malvados, são infelizes porque sempre existem crianças mais felizes do que você). A prova disso é que ateus gostam de falar mal da igreja (nunca superaram aquela freira azeda), de Deus (esse malvado que não me fez mais forte), ou do pai judeu (que me obrigou a só namorar judias). Ou acham que, se formos todos ateus, o mundo será melhor. Se você é assim e tem orgulho de ser ateu, você é um rancoroso.
Quando se deixa de acreditar em Deus, passa-se a acreditar em qualquer besteira (Chesterton): na Natureza, na História, na Ciência, na Dinamarca, em Si Mesmo. Essa última crença, eu acho, é a pior de todas. Coisa de gente cafona.
Publicado na Folha de S. Paulo, em 14/12/2009. Adaptado.
O homem moderno é livre de procurar individualmente, quando lhe apraz, as suas distrações favoritas; nos livros, na música, na arte ou na natureza. Por outro lado, nos tempos em que os prazeres de caráter elevado não eram acessíveis nem muitos, o povo sentia a necessidade destes divertimentos coletivos que são as festas. Quanto mais opressora é a miséria da vida cotidiana mais fortes têm de ser os estímulos necessários a produzir essa intoxicação feita de arte e alegria, e sem que a vida se tornaria insuportável. O século XV, profundamente pessimista, inclinado à depressão, não podia dispensar estas afirmações enfáticas da vida tal como lhe eram dadas nas esplêndidas e solenes festas coletivas. Os livros eram custosíssimos, o campo cheio de perigos, a arte rara; o indivíduo dispunha de escassos meios de distração. Todos os divertimentos literários, musicais e artísticos estavam mais ou menos ligados aos festivais.
HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. 2ª edição. Tradução de Augusto Abelaira. Lousã, Coimbra: Ulisseia, s/d, p. 259.
As sociedades modernas têm fazendeiros, e não camponeses: a agricultura é uma ocupação como qualquer outra, que pode ser assumida ou abandonada sem cruzar legal ou ritualmente os limites santificados de uma casta ou propriedade. Essas sociedades têm soldados, mas não uma casta de guerreiros. O mesmo é verdade para os políticos e a profissão das armas: os Negros e os Vermelhos não são legal ou sacramentalmente distintos do resto da sociedade. Quando não estão em serviço, geralmente se vestem à maneira civil. Dificilmente é possível distingui-los. O comandante da vitoriosa expedição britânica às Falklands se orgulhava do fato de que era o realizador de uma tarefa. Não era um aristocrata militar nem um membro da classe guerreira.
GELLNER, Ernest. Condições da Liberdade - a sociedade civil e seus rivais. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 71.
A Igreja na Idade Média tolerava muitas extravagâncias religiosas desde que não conduzissem a novidade de espécie revolucionária em pontos de moral ou de doutrina. Enquanto se confinasse dentro dos limites das fantasias hiperbólicas e dos êxtases a emoção superabundante não constituía perigo. Por isso muitos santos eram notórios pela sua reverência fanática pela virgindade, que tomava a formava de verdadeiro horror por tudo quanto se relacionasse com o sexo. Santa Colette é um exemplo. Ela apresenta todas as particularidades daquilo a que William James chamou "a condição teopática". A sua sensibilidade era imensa. Não podia suportar nem a luz nem o calor do fogo, apenas a luz das velas. Tinha uma aversão exagerada pelas moscas, lesmas e formigas, pelo lixo e maus cheiros. A sua repugnância pelas funções sexuais inspirava-lhe grande desgosto pelos santos que se haviam casado e levou-a a só admitir virgens na sua congregação. A Igreja louvou sempre estas tendências, tendo-as por edificantes e meritórias.
HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. 2ª edição. Tradução de Augusto Abelaira. Lousã, Coimbra: Ulisseia, s/d, p. 202.
Alguns dos príncipes do século XV são de um tipo inconcebível pela mistura de devoção e de deboche. Luís de Orleães, um amante insensato do luxo e do prazer, dado ainda por cima à necromancia, tem a sua cela no dormitório comum dos Celestinos, onde compartilha as privações e dos deveres da vida monástica, levantando-se à meia-noite e ouvindo às vezes cinco e seis missas por dia.
A coexistência da devoção e da mundanidade na mesma pessoa é uma das características e da mundanidade na mesma pessoa é uma das características de Filipe, o Bom. O duque, famoso pela sua moult belle compagnie de bastardos, as suas festas extravagantes, a sua política ambiciosa, e ainda pelo seu orgulho não menos violento do que o seu temperamento, é ao mesmo tempo profundamente devoto. Tem o costume de permanecer no oratório depois da missa durante muito tempo e de ficar a pão e água quatro dias por semana e durante as vigílias de Nossa Senhora e dos Apóstolos. Muitas vezes conservava-se em jejum até às quatro horas da tarde. Dá grandes esmolas em segredo. Depois da tomada de Luxemburgo demorou-se tanto rezando as suas horas e as suas orações em ação de graças que a sua escolta, que o esperava a cavalo, perdeu a paciência, pois o combate ainda não estava terminado. Ao ser avisado do perigo, o duque respondeu: "Se Deus me concedeu a vitória, há-de guardar-ma."
HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. 2ª edição. Tradução de Augusto Abelaira. Lousã, Coimbra: Ulisseia, s/d, p. 188.
De todas as contradições que a vida religiosa desse período apresenta a de mais difícil solução é a do confessado desprezo pelo clero, um desprezo que, como uma corrente não visível à superfície, se desenvolve paralelamente com o maior respeito pela santidade da vida sacerdotal. A alma das massas, ainda não inteiramente cristianizada, nunca esquecera a aversão que o selvagem sente contra o homem que não tem de lutar e que deve permanecer casto. O orgulho feudal do cavaleiro, campeão da coragem e do amor, fazia corpo, neste ponto, com o instinto primitivo do povo. A mundanidade dos mais categorizados membros do clero e a deterioração dos de mais baixo grau fizeram o resto. Daqui provinha que os nobres, os burgueses e os vilãos tivessem desde há muito alimentado esse ódio com sarcasmos dirigidos aos monges incontinentes e aos padres beberrões. Ódio é a palavra exata a usar neste contexto, pois de ódio se tratava, latente, geral e persistente. Nunca o povo se cansava de ouvir criticar os vícios do clero. Quando um pregador ataca o clero pode estar certo de ser aplaudido. "Mal um deles começa a falar deste assunto", diz Bernardino de Siena, "os ouvintes esquecem tudo o mais; não há maneira mais eficaz de reavivar a atenção quando os ouvintes começam a adormecer ou sofrem de calor ou de frio. Todos, instantaneamente, ficam atentos e bem dispostos."
HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. 2ª edição. Tradução de Augusto Abelaira. Lousã, Coimbra: Ulisseia, s/d, p. 186.