A Inglaterra vitoriana viu no martírio de Charles George Gordon (1883-1885) um gesto a mais de grandeza legitimando o fardo do império. O diretor Basil Dearden, de Khartoum (1966), viu no sacrifício de Gordon (interpretado por Charlton Heston) uma mensagem reconfortante para o mundo europeu do final dos anos 1960: a civilização, tal como a conhecemos, dependia profundamente dos valores europeus emblemáticos e correlatos. Mas, em última análise, a verdade histórica subjacente deste filme subverte a premissa eurocêntrica, pois a saga cinematográfica de Khartoum, assim como a saga histórica em que se baseou, recorreu, ao nível de mediação, às crenças dogmáticas e à força carismática de dois homens notáveis.
Gordon era segundo-tenente durante a Guerra da Crimeia (1853-1856) e distinguiu-se por sua coragem inexcedível, tornando-se herói nacional na Grã-Bretanha e ganhando o apelido de Gordon chinês por seu papel na repressão à rebeião de 1864 em Taiping. O Gordon da vida real, se aceitarmos como fiel o famoso retrato pintado por Lytton Strachey, era um pedófilo reprimido sujeito a crises de depressão profunda e paralisante, seguida de transes de inspiração misteriosa e realizações de rara concentração, durante as quais o conhaque com soda e a Bíblia eram consumidos em quantidades mais ou menos iguais.
O produtor de Khartoum, Julian Blaustein, era um fanático pela autenticidade, e muita coisa no filme, desde as armas até as roupas, é exata. Nas areias do deserto, a contrapartida de Gordon chamava-se Muhammad Ahmad (Laurence Olivier), um árabe Dunqulawi de 37 anos de idade. Ahmad conclamara uma guerra santa a fim de expulsar do Sudão os britânicos e seus aliados egípcios. Em novembro de 1881, os egípcios enviaram uma guarnição de infantaria para prender Ahmad na ilha em que se escondia no Nilo, mas as forças de Ahmad massacraram os atacantes, abatendo os egípcios e intrigando os paladinos do Império Britânico. Um asceta que se tornou cada vez mais exaltado pelo seu baraka (poder sobrenatural), Ahmad audaciosamente se proclamou o mádi, o Guia Aguardado, alegando ter sido enviado pelo Profeta, para devolver aos ansar (os fiéis) os verdadeiros mandamentos de Alá - e, acima de tudo, para livrar o Sudão da exploração voraz dos egípcios e, em última análise, dos britânicos. Nos dois anos seguintes, o mádi e suas hordas varreram todo o Sudão conquistando, uma após outra, vitórias impressionantes contra os infiéis, e obrigando os egípcios a cederem territórios aos sudaneses.
Em 1884, quando Cartum, a capital administrativa do Sudão dominado pelo Egito, é ameaçada pelas forças do mádi, o governo de Sua Majestade despacha Gordon para evacuar as populações europeias e egípcias da cidade. O general Gordon jamais pretendeu obedecer àquelas ordens. Ao contrário, Gordon apostou a sua vida e a vida de milhares de cidadãos de Cartum num jogo de lances altos para preservar a influência britânica no Sudão. Decidiu manter a cidade em vez de evacuá-la. A queda de Cartum em 26 de janeiro de 1885 levou a uma reversão sem precedentes do imperialismo britânico - dois dias depois chegaram dois canhoneiros enviados à frente do vasto exército que se aproximava sob o comando do general Garnet Wolseley.
No final de Khartoum, Gordon está sozinho no alto da escadaria do seu palácio. Com seu sabre desembainhado, o governador-geral do Sudão observa impassível os invasores fiéis ao mádi sudanês escalarem as muralhas do forte e passarem pelos defensores egípcios para atacá-lo pessoalmente. Eles hesitam por um instante. Este confronto de alta tensão entre o eminente vitoriano e os dervixes sudaneses torna-se então o clímax esplêndido de um clichê do cinema ocidental: o homem branco solitário que tenta apaziguar, com sua simples presença os perigosos tumultos provocados pelos povos de pele escura. Os dervixes atravessam o peito do comandante branco com uma lança. Arrancam-lhe a cabeça, fincam-na numa estaca de dois metros. Ouve-se uma voz sepulcral que adverte: "Um mundo sem Gordons seria um retorno às areias", enquanto o sol poente perpassa uma estátua equestre de bronze do general e os créditos se desenrolam na tela que escurece.
Bibliografia consultada: CARNES, Mark C. (org.). Passado Imperfeito - a história no cinema. Tradução de José Guilherme Correa. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 162-165.