“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Os Direitos Trabalhistas no Mundo

domingo, 30 de abril de 2023

 

Como podem ver nesse mapa (compartilhado no Twitter por @AddictMap), não há garantia dos direitos trabalhistas no Brasil, na Venezuela e outros países sul-americanos. O paradoxo é que esses mesmos países possuem uma inchada legislação trabalhista - no caso brasileiro, é a CLT.

Notem que nos Estados Unidos e na Austrália os direitos dos trabalhadores também estão seriamente ameaçados, embora nesses países o IDH seja bem elevado e praticamente não exista legislação trabalhista por lá.

Tirania, ramo podre da democracia

sexta-feira, 28 de abril de 2023

O Livro Nove de A República apresenta uma crítica da tirania e da vida tirânica que, sob muitos aspectos, continuou sendo padrão até o presente, com as variações de Salústio, Erasmo e muitos outros. A alma transtornada do tirano flui diretamente da licenciosidade da própria democracia. Ele começa como um demagogo populista que toma a dianteira ao se deixar levar pelos piores excessos do hedonismo democrático e agita o ressentimento da massa contra aqueles que são melhores. Tornando-se tirano, como diz Sócrates, sua paixão erótica inflada atua como um demagogo dentro de sua própria personalidade, concentrando todas as suas energias na busca egoísta de prazer e glória. Como governa através do medo e da força nunca pode confiar nos que estão à sua volta e está continuamente em guarda contra conspirações - melancólico, desconfiado e propenso a espasmos de crueldade. A única cura efetiva para tal apetite tirânico é refrear essas paixões desregradas, o que só pode ser feito se a mente governa as paixões e redireciona suas energias para a justiça e a virtude cívica. A própria filosofia deve mostrar o caminho. Se o mundo é caótico, nossas paixões e nosso comportamento também serão. Se o mundo é razoável, há uma chance de que nossas paixões também possam ser recrutadas para servir à razão.      

NEWELL, Waller R. Tiranos - Uma História de Poder, Injustiça e Terror. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Cultrix, 2019, p. 69-70.

«A Política da Prudência», de R. Kirk

segunda-feira, 24 de abril de 2023

 

Baixe essa obra gratuitamente aqui.

A Disputatio Medieval

domingo, 23 de abril de 2023

 

Após formar um vasto império, Carlos Magno (r. 800-814) decidiu valorizar a educação como forma de desenvolver e unificar os seus domínios. Para tanto, reuniu os grandes intelectuais da época e formou um programa de estudos fundamentado nas sete artes liberais: Trivium (Lógica, Gramática, Retórica) e Quadrivium (Aritmética, Música, Geometria e Astronomia). Após a aquisição do domínio das Artes Liberais, obtinha-se o título de bacharel. Com o tempo, este terá três funções: (i) Legere, lecionar; (ii) Disputatio, realizar disputas, e (iii) praedicare, pregar o evangelho. Em seguida, o bacharel estava preparado para aprender as artes liberais superiores: Teologia, Medicina e Direito. Concluído o estudo de uma dessas disciplinas, recebia o título de Magister, ou seja, apto a ensinar.

Foi essa estrutura pedagógica que deu origem às universidades. Elas surgiram em Bologna (1088), Paris (1150), Oxford (1167), e em muitos outros lugares. Nessas instituições, o progresso mais notável foi no campo da lógica. O método de estudo até então era a glossa do texto, consistindo em explicar o sentido de cada palavra, fosse ela das Escrituras, fosse dos escritos dos padres da Igreja. O resultado era a construção de sentenças, frases concisas de uma dada teoria teológica. Pedro Lombardo (1100-1160), um padre com formação em Teologia e Filosofia, recolheu essas sentenças e as expôs de forma sistemática na obra Quatro Livros das Sentenças. Assim, a teologia tornou-se um comentário das sentenças compiladas por Pedro Lombardo. Havia, contudo, um problema: como conciliar algumas sentenças aparentemente divergentes? Aí entra a colaboração de um dos autores mais conhecidos da Idade Média: São Tomás de Aquino (1225-1274).

Tomás de Aquino criou um novo método: a questão (quaestio). Depois de um texto ser lido e glosado, eram apontadas dúvidas e divergências entre as passagens. Criava-se então uma questão, a qual impelia o autor a desfazer as divergências. É assim que São Tomás subverte o modo vigente de se fazer teologia, aquele pautado pelos comentários das Sentenças, e incorpora a quaestio, o que permite a elaboração pessoal do autor. Foi nesse ambiente do século XIII que surgiu a ritualização institucional da disputatio. A disputatio marcou o início de uma mudança importante no ensino medieval, essencialmente livresco, regulado por um conjunto de textos pré-determinados a serem lidos (lectio) pelo mestre para a assimilação e sistematização coerente de um saber já constituído: as disputationes são um contraponto à atitude educacional estritamente passiva, despertando a atividade intelectual dos alunos.

A disputatio fez da universidade medieval o palco de um vivo debate de magistri (mestres) dispostos a encarar os desafios intelectuais que lhes eram propostos por seus alunos e colegas de cátedra. Divididas em quatro modalidades, as disputationes podiam ser ordinárias, nas quais o mestre formulava o tema da disputatio ou quaestio, assistia à respectiva discussão e terminava por formular a resolução; gerais ou de quodlibet, que versavam sobre temas livres, mais solenes; magistrais, entre dois mestres, sustentando cada um o seu modo de ver; e sophismata, que eram justas dialéticas para a demonstração ou refutação de paralogismos.

A partir da fórmula pro, contra e solutio, à questão (ou tese) inicial, expunham-se as razões afirmativas (pro), seguidas da posição contrária (contra) e, por fim, a elaboração de uma possível solução (solutio) ao problema apresentado. As quatro modalidades de disputationes nos apresentam aspectos relevantes destes eventos.

As "disputas ordinárias", por terem a participação do mestre e dos alunos, tinham uma função formativa: provocado pelo mestre, que apresentava uma questão (ou tese) e os argumentos favoráveis (pro), o aluno reagia construindo objeções (contra) e, ao final, o docente tomava a palavra e discorria sobre argumentos pro e contra a fim de desenhar uma resolução geral do embate (solutio). As outras três modalidades ultrapassavam o objetivo formativo, apesar de não prescindirem dele: (i) as disputas gerais ou quaestiones de quodlibet (questões sobre temas livres), (ii) as entre dois mestres e as (iii) sophismata, demonstração ou refutação de raciocínios falsos.

Quando ocorria uma disputatio, todos os cursos eram suspensos: os bacharéis eram obrigados a assistir ao debate, assim como os estudantes do mestre que disputava, atraindo indivíduos de todas as regiões. Ao final, depois de transcrito e organizado, o debate deveria ser depositado na faculdade em que acontecia, sob pena de multa. 

Adaptado de Offlattes.

«Dark Secrets Inside Bohemian Grove»

sábado, 22 de abril de 2023

 

Documentário disponível aqui.

Hatusa, símbolo de um poder tirânico

sexta-feira, 21 de abril de 2023

 

Visitantes das ruínas de Micenas, na Grécia, e os da capital imperial hitita de Hatusa, na atual Turquia, ficam muitas vezes intrigados pelo fato de as entradas de ambas as cidades terem maciços "portões de leões", leões em pares, gravados em relevo, guardiões simbólicos da cidade. A semelhança, contudo, termina aí. A sede dos reis micênicos - incluindo, prefiro acreditar, Agamenon - era um pequeno e compacto aglomerado de construções ligadas por uma única estrada, incluindo alguns túmulos em colmeias ou em poços para as pessoas proeminentes. Estava cercada por uma muralha baixa para a defesa e aninhada, para proteção, entre dois picos de montanha. É pouco visível até chegarmos ao Portão do Leão, que a distância parece uma mera crista de rocha (e isso não teria sido muito diferente em tempos antigos). Pode ter sido construída numa área baixa como medida extra de segurança contra ataques, mais ou menos como os agricultores na Sicília medieval, que para autodefesa construíam suas choupanas em aglomerados por trás da crista de uma colina. Podemos atravessar toda a extensão do complexo, incluindo o megaron, em menos de uma hora. Em contrapartida, as ruínas de Hatusa são absolutamente espantosas em seu tamanho monumental e complexidade, cobrindo quase 23,5 quilômetros quadrados. As enormes plataformas da fundação ainda dão uma ideia de como essas estruturas devem ter sido gigantescas. Havia enormes palácios, templos, mercados, escritórios para uma burocracia administrativa e numerosas casas espaçosas, protegidas por sólidas muralhas com torres de vigilância e entradas fortificadas. Longe de se manter próxima do solo, Hatusa deve ter se erguido impetuosamente numa orgulhosa e inconquistável imponência, visível de muitos quilômetros ao redor. Enquanto a fortaleza de Agamenon era típica de um pequeno reino local de agricultores, Hatusa era capital de um império que abrangia grande parte da Turquia, Síria e Irã dos dias atuais, com muitas cidades e portos importantes e centenas de milhares de súditos (Troia, tão impressionante para os gregos da Ilíada, com suas muralhas e cidadela, era com toda a probabilidade, como vimos, meramente um dos Estados-clientes dos hititas). É também o próprio símbolo da organização que os hititas proporcionavam e do poder que exerciam, um poder que oferecia segurança para suas multidões de súditos em troca de obediência absoluta. A cidade, com efeito, era o símbolo de um mundo ordeiro criado por poder tirânico.    

NEWELL, Waller R. Tiranos - Uma História de Poder, Injustiça e Terror. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Cultrix, 2019, p. 42-43.

Sobre a Tirania e os Tiranos

quinta-feira, 20 de abril de 2023

 

A tirania pode ser uma força construtiva ou benéfica? É um velho dilema. Alexandre, o Grande; César Augusto; Constantino, o Grande; Carlos Magno - poderia ser argumentado que todos trouxeram maior poderio e prosperidade para seus povos, ou pelo menos uma restauração da paz e da ordem após longos intervalos de guerra civil e discórdia, por meio de sua vontade imperial, inclusive através da ambição suprema, da usurpação, guerra e assassinato. Mas esse é um dilema especialmente agudo para uma época como a nossa, que encara a democracia como a única forma de governo justificável. Aprendemos que a tirania não pode combinar com o progresso do homem para maior liberdade e igualdade. Aprendemos que a Idade Moderna representa, desde o Renascimento, a Idade da Razão e das Luzes, a marcha firme da humanidade saindo da opressão feudal e da ignorância e rumando para sociedades abertas e livres.

A tirania tem um estranho percurso, ao mesmo tempo como opressora da liberdade como construtora de civilizações. Ela não diz respeito a instituições, apenas, mas também a personalidades - extravagantes, às vezes carismáticas, às vezes divertidas, sempre fascinantes e assustadoras. Mesmo hoje, não podemos ignorar sua importância, para o bem e para o mal, na construção de Estados; em lançar as bases para maior estabilidade, poder e prosperidade, e às vezes até para um eventual autogoverno democrático. E, sobretudo, não podemos nos furtar à questão desconfortável, mas inevitável de saber se há melhores e piores variedades de tirania disponíveis no mundo das relações internacionais. Podemos pensar, por exemplo, no seguinte: ditadura militar ou extremismo islâmico? Autoritarismo ou totalitarismo? Em certas situações, talvez não haja um terceiro caminho.

Existem três tipos de tirania que emergem da história do Ocidente (e não só do Ocidente). Não são absolutamente distintos um do outro, mas sem dúvida se destacam como espécies diferentes. O primeiro pode ser denominado de tiranos "variedade-jardim", ao mesmo tempo os mais antigos e, no entanto, os mais familiares, vindos de nosso próprio mundo. São basicamente homens que encaram todo um país e toda uma sociedade como sua propriedade pessoal, explorando-os para seu próprio prazer e em benefício próprio, bem como para favorecer seu próprio clã e amigos. Como diz Aristóteles, governam como "senhores" de um país, como se este fosse seu "agregado familiar" particular. É possível que tal governante possa beneficiar o país - ele pode ser um vigoroso líder na guerra e ajudar a expandir a economia. Contudo, no final das contas, tudo é feito para favorecer a ele e à sua família. Dentre esses tiranos, poderíamos citar de Híeron I de Siracusa ao imperador Nero, passando pelo general Franco, na Espanha, e os Somoza, na Nicarágua, chegando ao papa Doc Duvalier do Haiti e, até recentemente, a Mubarak do Egito.

O segundo tipo é o tirano reformador. São homens de fato impelidos para a posse de suprema glória e riqueza, além de um poder não contido pela lei ou pela democracia. Mas não são meros hedonistas nem buscam apenas vantagens. Querem de fato melhorar a sociedade e as pessoas por meio do exercício construtivo de uma autoridade sem limites. Os exemplos incluem Alexandre, o Grande, Júlio César, os Tudors, os déspotas esclarecidos como Luís XIV e Frederico, o Grande, Napoleão e Kemal Ataturk. Os tiranos reformistas apresentam um desafio mais complexo do que os de "variedade-jardim", pois com frequência atraem grande séquito de clientes que os admiram e súditos que acreditam sinceramente que eles estão fazendo o que é melhor para o bem comum. Muitas vezes nem são considerados tiranos, mas sim defensores do povo. Além de trazerem vitória e independência para seus povos por meio da guerra, os tiranos reformadores iniciam projetos em grande escala de melhoramento público nas áreas da renovação urbana, legislação, saneamento, educação e eliminação do fosso econômico entre ricos e pobres. Eles querem impor a ordem a um mondo caótico em benefício da humanidade. Em suas vidas pessoais, eles são muitas vezes ascéticos ou, pelo menos, contidos. Empregam a violência para alcançar objetivos concretos, não por uma crueldade extravagante.

O terceiro tipo de tirania é a milenarista. Esses governantes são guiados pelo impulso de impor um projeto milenarista que trará uma sociedade futura em que o indivíduo vai submergir no coletivo e todo privilégio e alienação serão para sempre erradicados. A lista inclui Robespierre, Stalin, Hitler, Mao Zedong, Pol Pot e os jihadistas de hoje. O terrível paradoxo de sua revolução é que o mundo de perfeita harmonia de amanhã vai requerer prodigiosos excessos de assassinato em massa, guerra e genocídio no presente. Enquanto os tiranos "variedade-jardim" e reformadores existiram ao longo da história, os tiranos milenaristas são estritamente modernos, não tendo rpecedentes antes do Terror jacobino de 1793. Certamente eles fazem coisas por seus países que os aproximam dos tiranos reformadores, além de serem capazes de perpetrar, nas sombras, alguns dos excessos de perversidade do tirano variedade-jardim. Porém, no fundo, o objetivo dos tiranos milenaristas está "além da política" - querem destruir o mundo do presente para realizar o nirvana do "comunismo", "o Reich de mil anos" ou o "califado universal".   

Adaptado de NEWELL, Waller R. Tiranos - Uma História de Poder, Injustiça e Terror. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Cultrix, 2019, p. 12-15.

Trabalho Infantil no Uzbequistão

segunda-feira, 17 de abril de 2023

 

Crianças eram amplamente forçadas a trabalhar Uzbequistão até 2015, quando a OIT passou a monitorar o problema no país.

O algodão é a cultura mais importante da ex-república soviética do Uzbequistão. Cerca de 45% das exportações do país são do "ouro branco". No período soviético, todas as terras agricultáveis uzbeques estavam sob controle de 2.048 fazendas estatais. Depois da independência, em 1991, essas fazendas foram loteadas, e a terra foi distribuída, mas isso não significava que os agricultores pudessem agir de forma independente. O algodão era valioso demais para Islam Karimov, que governou o país de 1990 até sua morte, em 2016.

Para se ter uma ideia, foram criadas regulações determinando o que os fazendeiros podiam plantar e os preços exatos que podiam praticar. O algodão era um produto de exportação valioso, e os fazendeiros recebiam uma pequena fração dos preços nos mercados internacionais pela sua produção, sendo que o restante ficava com o governo. Ninguém queria cultivar algodão por aqueles preços; então, o governo teve de forçar as pessoas a fazê-lo. Todo fazendeiro tinha a obrigação de destinar 35% de sua terra ao algodão. Isso causou muitos problemas, como dificuldades com o maquinário. À época da independência, 40% da safra era colhida por colheitadeiras. Depois de 1991, sem nenhuma surpresa, dados os incentivos que o regime de Islam Karimov criou, os produtores não estavam dispostos a comprar e manter esses equipamentos. Reconhecendo o problema, Karimov bolou uma solução, mais barata do que colheitadeiras: crianças em idade escolar.

O algodão atinge o ponto de ser colhido no início de setembro, mais ou menos na mesma altura em que as crianças voltam às aulas. Karimov estabeleceu aos governadores que determinassem cotas de algodão para as escolas colherem. No início de setembro, as escolas estavam vazias, sem seus 2,7 milhões de alunos (dados de 2006). Os professores, em vez de ensinar, recrutavam mão de obra. Ninguém pede o consentimento dos pais.

Os alunos/trabalhadores não têm fim de semana durante dois meses - o período da colheita. Crianças da área rural que têm a sorte de serem designadas para fazendas próximas de casa podem ir para o trabalho a pé ou de ônibus. As que moram longe ou são de áreas urbanas têm de dormir nos galpões ou depósitos junto com o maquinário e os animais. Não há banheiro ou cozinha. As crianças têm de levar o próprio almoço.

Os principais beneficiários de todo esse trabalho forçado são as elites políticas, lideradas pelo presidente, que na prática é o rei de todo o algodão do país. As crianças deveriam ser pagas pelo trabalho, mas o pagamento não sai da teoria. Provavelmente 75% do algodão em 2012 era colhido por crianças. Na primavera, a escola fica fechada para que os alunos trabalhem compulsoriamente capinando, tirando ervas daninhas e fazendo o transplante das mudas.

O caminho seguido pelo Uzbequistão é muito parecido com o de muitas outras repúblicas soviéticas. Karimov, que tornou-se primeiro-secretário para o Uzbequistão em 1989, venceu as primeiras eleições presidenciais com o apoio das forças de segurança, em dezembro de 1991. A partir de então, garroteou a oposição política independente. Seus adversários foram parar na cadeia ou no exílio. O ápice da repressão ocorreu em 2005, quando 750 manifestantes, quem sabe um número maior, foram mortos pela polícia e pelo exército em Andijon. Sob o regime de Karimov, o Uzbequistão se tornou um país pobre e com instituições políticas e econômicas muito extrativistas.  

Adaptado de ACEMOGLU, Daron & ROBINSON, James A. Por que as nações fracassam - as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Tradução de Rogerio W. Galindo e Rosiane C. de Freitas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022, p. 436-440.

Robert Mugabe, o sortudo

domingo, 16 de abril de 2023

 

Era janeiro de 2000 em Harare, no Zimbábue. O mestre de cerimônias Fallot Chawawa estava encarregado de sortear o bilhete vencedor da loteria nacional organizada por um banco parcialmente estatal, o Zimbank. A loteria estava aberta a todos os clientes que tivessem mantido 5 mil dólares de Zimbábue ou mais nas contas durante o mês de dezembro de 1999. Quando sorteou o bilhete, Chawawa ficou perplexo. Ele mal pôde acreditar no que via quando recebeu o bilhete sorteado com o prêmio de 100 mil dólares de Zimbábue e viu escrito o nome de Sua Excelência R G Mugabe.

O presidente Robert Mugabe, que governava o Zimbábue desde 1980 usando todos os métodos possíveis, geralmente com mãos de ferro, ganhara um prêmio mais ou menos cinco vezes a renda per capita anual do país. O Zimbank afirmou que o nome do ditador foi sorteado dentre milhares de apostadores aptos para concorrer ao prêmio. Que homem sortudo! E olha que ele nem precisava do dinheiro: algum tempo antes do sorteio, Mugabe concedera aumentos salariais de até 200% a si mesmo e a seu gabinete.

"Sabemos que nos mentem. Eles sabem que mentem. Eles sabem que sabemos que nos mentem. Sabemos que eles sabem que sabemos que nos mentem. E, ainda assim, seguem mentindo." Alexandr Soljenítsin (1918-2008)

O bilhete de loteria era apenas mais um indício das instituições extrativistas do Zimbábue. Isso poderia ser taxado simplesmente de corrupção, mas é apenas mais um sintoma da doença institucional do país. O fato de Mugabe poder ganhar na loteria, se quisesse, mostrava o tamanho de seu controle sobre a vida da nação africana e deu ao mundo uma noção da dimensão de suas instituições extrativistas.

Bibliografia consultada: ACEMOGLU, Daron & ROBINSON, James A. Por que as nações fracassam - as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Tradução de Rogerio W. Galindo e Rosiane C. de Freitas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022, p. 411-412.

Como Serra Leoa foi sabotada

terça-feira, 11 de abril de 2023

 

Freetown, a capital de Serra Leoa, foi fundada no fim do século XVIII como um lar para escravizados repatriados e libertos. Gradualmente, a partir da segunda metade do século XIX, os britânicos estenderam seu domínio para o interior de Serra Leoa por meio de uma longa série de tratados com governantes locais. Em 31 de agosto de 1896, o governo britânico declarou a colônia africana um protetorado com bases nesses tratados. Os britânicos identificaram governantes importantes e deram a eles um novo título: chefe supremo. Em Serra Leoa oriental, por exemplo, no atual distrito de mineração de diamantes de Kono, encontraram Suluku, um poderoso rei guerreiro. O rei Suluku foi transformado em chefe supremo Suluku, e a região de Sandor foi criada como unidade administrativa do protetorado.

Embora tivessem assinado tratados com a administração britânica, reis como Suluku não haviam compreendido que isso lhes daria carta branca para a implantação de uma colônia. Quando os britânicos tentaram cobrar um imposto domiciliar - um tributo de cinco xelins por casa -, em janeiro de 1898, os chefes deram início ao que se tornou conhecido como Rebelião do Imposto Domiciliar. Tal rebelião logo foi suprimida, mas os britânicos perceberam que dominar o interior de Serra Leoa seria desafiador. Eles já haviam começado a construir uma ferrovia de Freetown para o interior, mas o trajeto precisou ser alterado.

Quando Serra Leoa conquistou sua independência, em 1961, os britânicos passaram o poder para Sir Milton Margai e seu Partido do Povo de Serra Leoa (PPSL). O primeiro-ministro que lhe sucedeu foi Sir Albert Margai, em 1964. Em 1967, o PPSL perdeu por pouco para o Partido do Congresso de Todos os Povos (PCTP), da oposição. Seu líder era Siaka Stevens, um limba do norte.

Embora a ferrovia rumo ao sul tivesse sido planejada pela ex-metrópole para facilitar seu domínio sobre Serra Leoa, em 1967, seu papel era econômico, transportando a maior parte das exportações do país: café, cacau e diamantes. Os fazendeiros que plantavam café e cacau eram mendes, e a ferrovia era a janela Mendeland para o mundo. A Mendeland votou em massa em Albert Margai nas eleições de 1967, pois Stevens estava muito mais interessado em manter o poder do que em promover as exportações da região. O raciocínio de Stevens era de que tudo que fosse bom para os mendes beneficiaria o PPSL e ruim para seu projeto político. Portanto, bloqueou a linha ferroviária para a Mendeland. Depois disso, vendeu os trilhos e os trens. Ainda hoje, viajando de carro, é possível avistar as estações ferroviárias dilapidadas de Hastings e Waterloo. Não há mais trens para Bo.

O gesto drástico de Stevens prejudicou parte dos setores mais vibrantes da economia de Serra Leoa. Mas, como aconteceu com muitos outros líderes da África pós-independência quando tiveram que optar entre consolidar o poder e incentivar o crescimento econômico, Stevens ficou com a primeira opção e deu o assunto por encerrado.

Num primeiro momento, a decisão de Stevens parece contrastar com a estratégia dos britânicos. Na verdade, porém, existe um grande grau de continuidade entre o governo metropolitana e o regime de Stevens que serve de exemplo da lógica dos círculos viciosos. Stevens governou Serra Leoa extraindo recursos de seu povo por meio de métodos semelhantes. Ele ainda estava no poder em 1985, não por ter sido reeleito pela população. A partir de 1967, ele estabeleceu uma ditadura violenta, matando e assediando adversários políticos, em especial os membros do PPSL. A partir de 1978, Serra Leoa passou a ter apenas um partido político, o PCTP do ditador. Dessa forma, Stevens foi bem-sucedido na consolidação de seu poder, ainda que ao custo de empobrecer grande parte do interior do seu país.

ACEMOGLU, Daron & ROBINSON, James A. Por que as nações fracassam - as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Tradução de Rogerio W. Galindo e Rosiane C. de Freitas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022, p. 374-377. Adaptado. 

O Thalamegos de Ptolomeu IV

domingo, 9 de abril de 2023

 

Ilustração do Thalamegos, o palácio flutuante do rei Ptolomeu IV Filópator (r. 224-205 a.C.). A embarcação de luxo foi construída para os passeios curtos de cruzeiro do monarca no Lago Mareotis, perto de Alexandria, e nos canais do Nilo.

Medindo cerca de 90 metros, o Thalamegos tinha várias câmaras para o soberano e sua corte, além de salas e um templo dedicado a Dionísio.

Visita Virtual à Grande Pirâmide de Gizé

quinta-feira, 6 de abril de 2023

 

Graças a um projeto da Universidade de Havard, é possível explorar num passeio virtual o interior da Grande Pirâmide de Gizé. O cadastro é rápido e simples. Simplesmente incrível!

Acesse: giza.mused.org 

A Ética de Epicteto

quarta-feira, 5 de abril de 2023

 

Estabelece para ti desde já uma certa categoria e tipo de caráter que manterás quer esteja isolado, quer na relação com as pessoas com as quais topares. E fica calado a maior parte do tempo, falando apenas o necessário e mediante poucas palavras. Mas raramente, quando a ocasião exigir que fales, dispõe-te a falar, porém, não a respeito de coisas ordinárias e casuais; não abras a boca para discursar sobre combates de gladiadores, corridas de cavalos, atletas, comidas ou bebidas, assuntos que vêm à baila em todo lugar; sobretudo, não fales das pessoas, não importa se censurando, elogiando ou as comparando. Se estiver ao teu alcance, articule teu discurso no sentido de encaminhar aqueles com quem convives para temas apropriados. Se, todavia, acontecer de ficares isolado em meio a pessoas estranhas, cala-te.

Não te disponhas a rir muito, nem de muitas coisas, nem de maneira descontrolada e ruidosa.

Recusa-te a fazer juramentos se assim puderes agir, mas se não puderes, age dessa maneira dentro do possível.

Afasta-te dos banquetes dos estrangeiros e das pessoas vulgares; entretanto, se surgir uma ocasião na qual as circunstâncias exijam tua presença, fica atento no sentido de jamais incorrer na vulgaridade, pois saiba que se o companheiro de alguém se suja, será inevitável que aquele que se relaciona frequentemente com ele compartilhe de sua sujeira, mesmo que eventualmente ele próprio seja limpo.

No que diz respeito às coisas que se referem ao corpo, toma para o teu uso unicamente o estritamente necessário, por exemplo em matéria de alimento, bebida, vestimenta, moradia, serviçais; elimina tudo o que constitui ostentação ou luxo combinado com indolência e sensualidade.

Quanto aos prazeres do sexo, dentro de tua capacidade conserva-te puro antes do casamento; todavia, se vieres a ter relações sexuais, toma tua parte de acordo com o que é lícito. Contudo, não ofendas nem censures os que praticam essas relações sexuais; e tampouco manifesta com frequência e em todo lugar que tu próprio não as praticas.

Se chegar aos teus ouvidos que certo indivíduo fala mal de ti, não te disponhas a defender-te do que foi dito, mas sim responde: "Sim, isso porque ele ignora os meus outros defeitos, pois se os conhecesse não estaria se referindo apenas a esses."

MANUAL DE EPICTETO - A Arte de Viver Melhor. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2021, 33, p. 61-63.