HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. > Disponível aqui
Em meados do século XX, as pessoas aprendiam a refletir e a se interessar pelo Brasil em função de três livros: Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior. Infelizmente, esses livros não são tão conhecidos como o eram décadas atrás. Uma pena, uma vez que, por exemplo, Raízes do Brasil, publicado originalmente em 1936, foi considerado um "clássico de nascença" por Antonio Candido.
Preparei, abaixo, um fichamento dos dois primeiros capítulos do livro.
No cap. 1, "Fronteiras da Europa", Buarque explica como a cultura europeia foi implantada na América portuguesa. O resultado foi que "somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra" (p. 31). A falta de coesão em nossa vida social é um fenômeno antigo, diretamente ligada às origens da nação lusitana. "No fundo, o próprio princípio da hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal entre nós" (p. 35). Contudo, tanto a burguesia urbana quanto os próprios labregos contagiavam-se pelo resplendor da existência palaciana (p. 36). A seguir, uma análise bem interessante destaca que espanhóis e portugueses sempre desconfiaram de teorias negadoras do livre-arbítrio, e essa mentalidade foi o maior obstáculo ao "espírito de organização espontânea", característico dos povos protestantes (p. 37). Nas nações ibéricas, "o princípio unificador foi sempre representado pelos governos" (p. 38). Assim, elas rechaçaram toda moral fundada no "culto ao trabalho". "Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia" (idem). Neste ponto, as nações ibéricas alinhavam-se à Antiguidade Clássica, mais do que os demais países europeus. Ainda que rara e difícil, a obediência pontuava, por vezes, a cultura ibérica, "como virtude suprema entre todas" (p. 39).
O cap. 2, "Trabalho & Aventura", começa com a constatação de que a maior missão histórica dos portugueses foi o seu pioneirismo na conquista do trópico para a civilização. Mas essa exploração dos trópicos não seguiu um plano metódico e racional. Fez-se, antes com desleixo e certo abandono.
O aventureiro enalteceu a recompensa imediata, considerando "estúpido e mesquinho" o ideal do trabalhador. Este, por outro lado, considera "imorais e detestáveis as qualidade próprias do aventureiro" (p. 44). "Na obra da conquista e colonização dos nossos mundos coube ao 'trabalhador', no sentido aqui compreendido, papel muito limitado, quase nulo" (p. 45).
O gosto da aventura teve influência decisiva em nossa vida nacional. Os portugueses, aventureiros por natureza, adaptaram-se mais do que qualquer outro povo, às condições de vida e cultura dos nativos. No processo de ocupação e colonização do território, foram beneficiados com a abundância de terras férteis e ainda mal desbravadas. Com isso a grande propriedade rural tornou-se, aqui, "a verdadeira unidade de produção". Com relação à mão de obra, "a presença do negro representou sempre fator obrigatório no desenvolvimento dos latifúndios coloniais" (p. 48). O português procurava riqueza, "mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho" (p. 49). Assim, não foi "uma civilização tipicamente agrícola o que instauraram os portugueses no Brasil com a lavoura açucareira" (idem).
A lavoura no Brasil permaneceu largamente aferrada a concepções rotineiras, sem progressos técnicos que elevassem o nível da produção. Em parte isso ocorreu por conta dos obstáculos do meio tropical, o que explica, por exemplo, o escasso emprego do arado. Ao invés de procurar revigorar os solos gastos pela lavoura, transferiam-se para novas terras, seguindo o modelo da coivara indígena. "Todos queriam extrair do solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios." Ao contrário dos espanhóis, que raramente se identificavam muito com a terra e sua gente, "nossos colonizadores aclimaram-se facilmente", repetindo "o que estava feito ou o que lhes ensinaram a rotina" (p. 52).
Apesar do atraso nas técnicas agrícolas, os portugueses tiveram ao seu favor o fato de não nutrirem qualquer orgulho de raça - já eram um povo mestiço desde a época dos Descobrimentos (p. 53). Portanto, era exíguo o sentimento de distância entre os dominadores lusitanos e a massa trabalhadora negra (p. 54). Aparentemente, o exclusivismo racista nunca chegou a ser "o fator determinante das medidas que visavam reservar a brancos puros o exercício de determinados empregos" (p. 55). A identificação dos indígenas aos tradicionais padrões de vida das classes nobres era forte: tinham em comum a "ociosidade", a aversão a todo esforço disciplinado, a "imprevidência" e "intemperança" e o gosto por atividades predatórias ao invés de produtivas. Assim, o governo português estimulava casamentos mistos de indígenas e brancos (cf. o alvará de 1755). Mas os pretos e seus descendentes continuavam relegados a trabalhos de baixa reputação, degradantes para si e para a sua posteridade (p. 56).
A escravidão e a hipertrofia da lavoura latifundiária de nossa economia colonial provocou a ausência de qualquer esforço sério de cooperação nas demais atividades produtoras (p. 57). "Nos ofícios urbanos reinavam o mesmo amor ao ganho fácil e a infixidez que tanto caracterizavam, no Brasil, os trabalhos rurais" (p. 58). Poucos dedicavam-se por toda a vida a um mesmo ofício. Outro empecilho ao trabalho urbano livre eram os "negros de ganho", cujo uso era muito difundido (p. 59). Outros costumes, como o do mutirão, além da expectativa de auxílio recíproco, baseavam-se na excitação das ceias, danças e consumo da cachaça.
A seguir, entre as p. 62-66, Sérgio Buarque se dedica a analisar a experiência holandesa no nordeste.
Em primeiro lugar, "o que faltava em plasticidade aos holandeses sobrava-lhes, sem dúvida, em espírito de empreendimento metódico e coordenado, em capacidade de trabalho e coesão social" (p. 62). O progresso urbano durante o seu domínio era algo inédito na vida brasileira, e em 1640 o primeiro Parlamento do hemisfério ocidental se reunia em Recife (p. 63).
No entanto, a ausência de descontentamentos na Holanda, um país próspero, tornou impossível a migração em larga escala para o "Brasil Holandês". Portanto, uma população cosmopolita, instável, de caráter urbano, se apinhou no Recife ou na nascente Mauritstad. O Diretório da Companhia das Índias Ocidentais até que apelou a Amsterdã, em 1638, para enviar de mil a 3 mil camponeses para o empreendimento colonial. Foi em vão.
Além da língua neerlandesa, que era incompreensível aos luso-brasileiros, os calvinistas holandeses não possuíam a mesma capacidade de assimilação dos puritanos da América do Norte. Além disso, o catolicismo era muito mais popular do que o rígido e austero protestantismo calvinista. "A essas inestimáveis vantagens acrescente-se ainda, em favor dos portugueses, a já aludida ausência, neles, de qualquer orgulho de raça" (p. 66).
* Nota ao cap. 2 - "Persistência da lavoura de tipo predatório" (p. 66-70)
Cap. 3 - "Herança rural" (p. 71-92)
Cap. 4 - "O semeador e o ladrilhador" (p. 93-138)
Cap. 5 - "O homem cordial" (p. 139-152)
Cap. 6 - "Novos tempos" (p. 153-168)
Cap. 7 - "Nossa revolução" (p. 169-188)
O "Posfácio" (pp. 189-193) é assinado por Evaldo Cabral de Mello. Este menciona que é a História, e não a Sociologia, assegura o interesse perene das obras clássicas de Gilberto Freyre, Sergio Buarque e Caio Prado. Sempre que leio um livro de Sociologia, com as suas constantes generalizações e comparações esdrúxulas, fico a pensar como os cientistas sociais perdem em não se concentrar na História. Felizmente, os intelectuais supracitados identificaram qual deveria ser o foco das suas análises, e não é à toa que seus estudos permanecem como obras basilares da nossa História e identidade.