“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A Razão de Viver dos Germanos

domingo, 27 de agosto de 2017

Guerreiro germânico.

"Os Germanos não conhecem nem Estado nem cidade. Fazem parte do quadro da sua vida a povoação, a tribo, o clã, que agrupam as famílias. O indivíduo não tem existência senão no meio destas comunidades. Se, por graves razões, deixa de fazer parte dela, pode ser caçado como um lobo. A família germânica representa a célula de base. O pai tem o mund (em latim, mundium), quer dizer, o poder absoluto sobre a mulher e os filhos. (...) 

A maior parte das leis bárbaras mostram-nos que o germano é, primeiro que tudo, soldado e camponês. A frância é não só uma arma de arremesso, como, ao mesmo tempo, um utensílio para o arroteamento. A guerra é a razão de viver do germano: guerras entre as povoações que se invejam, guerras contra os Romanos. Tentemos reconstituir estes soldados que, desde o século III, aterrorizam os povos civilizados. (...) Os Germanos eram considerados mestres na metalurgia das armas. (...) Os guerreiros gostavam de recordar as façanhas lendárias dos ferreiros Mimir e Wieland, que sabiam forjar espadas capazes de atravessar as armaduras. Esta superioridade técnica proporcionava uma vantagem garantida aos Germanos nas guerras que empreendiam. Estas guerras tinham frequentemente como objectivo a conquista de novas terras e a aquisição de mão-de-obra servil."

RICHÉ, Pierre. Grandes Invasões e Impérios - Séculos V a X. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1980, p. 23 e 26.

Massacre da Noite de São Bartolomeu

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Noite de 23 para 24 de agosto de 1572. Os sinos da catedral de Saint Germain-l'Auxerrois tocaram, prenunciando o Dia de São Bartolomeu e um dos piores massacres religiosos da história. Os católicos massacraram cerca de três mil huguenotes (protestantes) em Paris, e dezenas de milhares pelo país. 

«D. João Carioca»

domingo, 20 de agosto de 2017

A partir da parceria entre a historiadora Lilia Moritz Schwarcz e o ilustrador Spacca surgiu essa obra sobre o período em que a corte portuguesa esteve no Rio de Janeiro (1808-1822). Baixe-o em sua versão em PDF

Graças ao Daire, bibliotecário do CAV, também temos acesso à versão online do livro. Leia-o aqui

Lembro que os finalistas do 8º ano do Prêmio Clio deverão ler o D. João Carioca para a fase final da competição.

O Martírio de Policarpo de Esmirna - III

sábado, 19 de agosto de 2017

O martírio do bispo Policarpo de Esmirna.

[Em História Eclesiástica, Livro Quarto, 15.21-29, são documentadas as últimas palavras entre Policarpo e o procônsul. Este, impaciente, proferiu diversas ameaças, e finalmente declarou que por três vezes Policarpo havia se declarado cristão. Os habitantes de Esmirna - sobretudo os judeus - mobilizaram-se juntando lenha e gravetos para a fogueira.] 

"Pronta a fogueira, Policarpo por si mesmo despiu-se, e desamarrou o cinto; tentou tirar os calçados, o que antes não fazia, porque sempre os fiéis se apressavam para lhe tocar o corpo; em tudo, por causa da sua vida eminente, fora honrado mesmo antes de lhe aparecerem as cãs. 

Logo em volta dele foram dispostos os materiais adequados para a fogueira. Como se preparavam para fixá-lo, pregando-o, disse: 'Deixai-me assim, pois aquele que me concedeu aguardar com firmeza o fogo, conceder-me-á ainda, sem a garantia de vossos pregos, ficar imóvel na fogueira. Por isso, não foi pregado, e sim amarrado.

[Em História Eclesiástica, Livro Quarto, 15.32-37, é descrita a tranquilidade e a oração final de Policarpo. De forma surpreendente, o fogo envolveu em círculo o corpo do mártir.] 

"Finalmente, os malvados, vendo que o corpo não podia ser consumido pelo fogo, ordenaram ao carrasco que se aproximasse e o atravessasse com o punhal. Ele o fez e jorrou tal quantidade de sangue que o fogo se apagou. A multidão ficou admirada da grande quantidade diferença entre os incrédulos e os eleitos, aos quais pertencia também este admirável varão, em nosso tempo mestre apostólico e profético, o bispo da Igreja católica de Esmirna. Toda palavra proferida por sua boca, efetivamente, cumpriu-se e haverá de se cumprir."  

EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. Tradução das Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 2000, Livro Quarto, 15.30-39.

O Martírio de Policarpo de Esmirna - II

"Conta-se que, informado da presença deles [seus perseguidores], desceu e falou-lhes com uma fisionomia radiante e muito suave, de sorte que aqueles homens que não o conheciam acreditaram ter uma visão, ao contemplá-lo, carregado de anos, de porte venerável e tranquilo, e admiravam-se de que se tivesse tanto empenho em se apossar de tal ancião. 

Ele, contudo, mandou imediatamente pôr a mesa, e convidou-os a farta refeição. Pediu apenas uma hora para rezar livremente. Eles consentiram. Tendo-se levantado, Policarpo rezou, repleto da graça do Senhor. Os presentes, ao ouvi-lo rezar, ficaram emocionados e vários deles logo se arrependeram de estarem a ponto de tirar a vida a um ancião tão venerando e piedoso." 

"Ora, enquanto o conduziam, houve grande tumulto da parte dos que ouviram dizer ter sido preso Policarpo. Ele adiantou-se e então o procônsul perguntou se ele era, de fato, Policarpo. Ao obter resposta afirmativa, exortou-o a renegar, dizendo: 'Tem pena da tua idade!', e frases semelhantes, conforme se costuma dizer. Acrescentou: 'Jura pela fortuna de César! Muda de opinião e dize: 'Abaixo os ateus!' 

Então, Policarpo fitando severamente a multidão presente no estádio, estendeu a mão contra eles, suspirou, olhou para o céu e disse: 'Abaixo os ateus!' 

Insistiu o procônsul, dizendo: 'Jura e eu te liberto. Amaldiçoa a Cristo.' Policarpo disse: 'Há oitenta e seis anos que o sirvo e ele jamais me fez mal. Como posso blasfemar a meu rei, meu salvador?' 

EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. Tradução das Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 2000, Livro Quarto, 15.13-14, 18-20.

O Martírio de Policarpo de Esmirna - I

"Policarpo, não somente foi discípulo dos apóstolos e conviveu com muitos dos que haviam visto o Senhor, mas ainda foi estabelecido pelos apóstolos bispo da Igreja de Esmirna, na Ásia. Nós o vimos na infância. 

Ele viveu longamente e atingiu idade avançada, morrendo num glorioso e brilhante martírio. Sempre ensinou o que aprendera dos apóstolos, o que a Igreja transmite, somente a verdade. 

Tendo Antonino, o Pio, completado o vigésimo segundo ano de reinado, Marco Aurélio Vero, também denominado Antonino, seu filho, sucedeu-lhe com Lúcio, seu irmão. Foi então, quando grandes perseguições agitavam a Ásia, que Policarpo morreu mártir. Julgo absolutamente necessário inserir aqui, nessa história, para memória dos pósteros, a descrição de seu fim, ainda conservada por escrito. 

Conta-se ter se destacado sobretudo Germânico [na perseguição em Esmirna] (...). O procônsul tentou persuadi-lo, aludindo à sua idade, e implorando, visto ser ainda muito jovem e na flor da idade; portanto, tivesse piedade de si mesmo. Ele não hesitou. Corajosamente atiçou o animal feroz, de certa forma o atacou e excitou, a fim de que mais depressa o tirasse desta vida injusta e iníqua. A multidão inteira, admirada diante desta morte notável, e vendo a atitude valente do piedoso mártir e a virtude de todo o gênero dos cristãos, pôs-se a gritar com voz unânime: 'Abaixo os ateus! Traga-se Policarpo.' 

Policarpo, porém, tão admirável, ao ter as primeiras notícias desses acontecimentos, permaneceu calmo, conservou-se tranquilo e imperturbável e até queria permanecer na cidade. Atendeu, no entanto, às súplicas e exortações dos companheiros para que fugisse; então retirou-se com alguns a uma propriedade rural não muito distante da cidade. Noite e dia não fazia outra coisa senão perseverar em preces ao Senhor. Não cessava de pedir, de suplicar a paz para as Igrejas de todo o mundo. Com efeito, tal foi sempre seu costume."

EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. Tradução das Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 2000, Livro Quarto, 14.1,2 e 10; 15.1, 5, 6, 9.

A Itália Acuada

sexta-feira, 18 de agosto de 2017


Os Astecas e os Sacrifícios Humanos

domingo, 13 de agosto de 2017

Principal sacrifício asteca em homenagem ao deus Sol. 
Imagem: ©Bettmann/Corbis, ID SF4794G.

"A missão do homem em geral, e mais particularmente da tribo asteca, povo do Sol, consistia em conjurar infatigavelmente o assalto do nada. Para isso, era preciso garantir ao Sol, à Terra e a todas as divindades a 'água preciosa', sem a qual a engrenagem do mundo deixaria de funcionar: o sangue humano. Dessa noção fundamental decorrem as guerras sagradas e a prática de sacrifícios humanos. Ambas, segundo os mitos, iniciaram-se com a criação do mundo. O Sol exigia sangue: os próprios deuses lhes haviam dado o seu; e depois os homens, sob suas ordens, haviam exterminado as serpentes de nuvens do Norte. Uitzilopochtli, como vimos, nasceu guerreando. A única exceção foi Quetzacoatl, símbolo das teocracias pacíficas da alta época clássica, que nada desejara sacrificar senão borboletas, pássaros e serpentes. Tezcatlipoca, porém, o vencera, e os deuses exigiam o seu 'alimento'. 

A guerra, como a entendiam os Astecas, tinha sem dúvida finalidades positivas para o seu Estado, como a conquista de territórios, a imposição de tributos e o direito de livre-passagem para seus comerciantes. Mas devia também - ou sobretudo - garantir-lhes prisioneiros para os sacrifícios. Inclusive as batalhas era realizadas menos com a finalidade de ferir os inimigos do que para capturá-los em maior número possível. Quando, em consequência mesmo das conquistas, a paz prevaleceu em vastos territórios do México, os soberanos inventaram a 'guerra florida', ou seja, torneios destinados a fornecer vítimas para os deuses." 

SOUSTELLE, Jacques. A Civilização Asteca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1987, p. 75-76.

Herodes, o Grande

sábado, 12 de agosto de 2017

Vista parcial do Heródio, monumental fortaleza e palácio de Herodes, encontrado em 2007.

Herodes, o Grande, nasceu por volta de 73 a.C. Foi o segundo filho do idumeu Antípater, procurador da Judeia graças a César, em 47 a.C. Portanto, Herodes era descendente dos antigos edomitas, mas era judeu por cidadania e por profissão religiosa. Foi educado na corte do sumo sacerdote e governante Hircano II (63-40 a.C.), de quem seu pai era conselheiro político. 

Quando Antípater se tornou procurador, induziu César a nomear seu filho Herodes como estratego da Galileia; Fasael, seu outro filho, tornou-se estratego da Judeia. Pouco depois, o embaixador da Síria, Sexto César, nomeou Herodes também como estratego da Coele-Síria. 

Após a morte de César (44 a.C.), Herodes apoiou o partido dos assassinos do então dictator romano. Isso o confirmou em seus postos, uma vez que Cássio Longino, do grupo dos tiranicidas, era o procônsul da Síria. Após a derrota de Cássio, Herodes conseguiu ganhar o favor de Marco Antônio. Ele e seu irmão, Fasael, foram então indicados como tetrarcas de seus territórios na Palestina, poder que asseguraram até 40 a.C., quando os partos conquistaram toda a Síria e a Palestina. 

Com a vitória dos partos, Hircano II e Fasael buscaram negociar a paz, mas foram traídos e aprisionados. Fasael cometeu suicídio, ao passo que Herodes fugiu para Roma, onde conseguiu ser indicado como rei da Judeia, em oposição a Antígono, um macabeu apoiado pelos partos. Com apoio de forças romanas, Herodes derrotou Antígono e conquistou Jerusalém no ano seguinte (37 a.C.). Muitos nobres, dentre os quais 45 líderes que haviam apoiado Antígono, foram massacrados. Além disso, quase todos os membros do Sinédrio foram condenados à morte. Assim, essa instituição foi relegada à insignificância, e alguns eruditos até questionam a sua existência durante o reinado de Herodes. 

Inicialmente, seus domínios abrangiam a Judeia, além da Idumeia e de Samaria. Antônio conquistou Jericó e o seu território e o deu a Cleópatra, rainha do Egito com a qual se casara. Após a batalha de Áccio, em 31 a.C., Herodes foi para Rodes, onde fez outra troca de afiliação, aliando-se ao vitorioso Otaviano. Este concedeu-lhe Jericó, Gadara, Gaza e, em 23 a.C., também os territórios nordestinos de Betânia, Traconites e Auranites. O governo de Herodes foi próspero, e sem sofrer qualquer grave ameaça estrangeira. 

A vida pessoal de Herodes foi trágica e marcada por assassinatos, inclusive três de seus filhos e uma de suas dez esposas. Ao se casar com Mariamne, neta do governante e sacerdote Hircano II, Herodes uniu sua casa à dos hasmoneanos (macabeus). Assim, ele tentou legitimar seu reinado perante os judeus. Contudo, não confiava em seus parentes hasmoneanos, e acabou matando muitos deles. Dentre as vítimas, conta-se o sumo sacerdote Aristóbulo III, irmão de Mariamne, e o idoso Hircano II. Após muitas suspeitas e intrigas palacianas, pontuadas com outras execuções, antes de morrer Herodes legou seu reino aos herdeiros Arquelau, Antipas e Filipe. 

O imperador Augusto designou ao etnarca Arquelau a Judeia, a Samaria e a Idumeia. Ao tetrarca Antipas coube a Galileia e a Pereia. O tetrarca Filipe, por sua vez, recebeu os territórios do nordeste. Herodes Filipe, filho de Mariamne II, continuou como cidadão comum. 

Herodes foi um grande construtor. Fundou várias cidades magníficas, edificadas em estilo e esplendor helenístico. Entre elas, destacam-se Samaria, que ele chamou Sebaste; a antiga Torre do Estrato, que ele chamou de Cesareia (mais tarde, sua capital); Fasaelis, no vale do Jordão; duas cidades que levaram o seu nome - Herodium - uma na Transjordânia e outra no sudeste de Belém, além de fortalezas como Macaeros, Massada, Gaba e Hesbom. 

A cidade de Jerusalém também foi contemplada em seu reinado. O templo de Zorobabel foi reconstruído a partir de 20 a.C. Edifícios grandiosos, nas proximidades do templo, também começaram a ser erigidos. Além disso, um palácio real, um teatro e um anfiteatro foram construídos em Jerusalém. 

Embora fosse um entusiasta helenista, Herodes foi bastante prudente ao lidar com a religião judaica. Ainda assim, os judeus o odiavam porque ele era idumeu, amigo dos romanos e sua vida privada era escandalosa. Eles se ressentiam de sua extrema crueldade e da imposição de uma pesada carga tributária para financiar seu vasto programa de construções. Sua inabalável lealdade a Roma e a paz externa em seus dias, bem como sua falta de escrúpulos ao esmagar eventuais oposições, livraram seu longo reinado de uma rebelião aberta. 

Herodes, o Grande, é mencionado em Lucas 1:5 e na narrativa dos magos do Oriente (Mates 2:1 a 18). Sua ordem para exterminar todos os bebês do sexo masculino de Belém não foi registrado pelas fontes seculares, mas está em plena harmonia com seus demais atos de atrocidade. 

Herodes morreu provavelmente na primavera de 4 a.C., aos 69 anos, e no 34º ano de seu reinado. 

Bibliografia consultada: Dicionário Bíblico Adventista do Sétimo Dia. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016, p. 612-614.

A Esperança da Imortalidade

sexta-feira, 11 de agosto de 2017


"Numa época em que a morte era a única certeza, a esperança da imortalidade significou muito mais que qualquer privilégio político, e a irmandade de uma grande comunidade, que oferecia auxílio nos sofrimentos temporais e esperança de glória eterna, era infinitamente mais valiosa que a cidadania secular que submetia o cidadão a obrigações de serviço público e ao peso esmagador da responsabilidade fiscal corporativa. 

O cristianismo, durante os primeiros dois séculos do Império Romano, tinha principalmente se alastrado entre as classes de menor influência econômica - artesão independentes, lojistas, escravos libertos, escravos domésticos e assim por diante. Não atingiu nem as classes governantes nem as categorias mais baixas de escravos, que eram pouco encontrados nas grandes cidades do Levante, o berço do cristianismo, mas estavam nas minas e nas grandes propriedades rurais das províncias ocidentais. Quando o cristianismo finalmente se estabeleceu entre os bem-educados e ricos, a grande transformação do mundo antigo já havia começado, e a civilização estava, dali por diante, envolvida em uma batalha contínua e desesperada com os invasores bárbaros do lado exterior e, internamente, experimentava o declínio econômico. O grande problema nesse momento era como salvar o que fosse possível da herança do passado, e não havia espaço para nenhum progresso econômico, senão o imposto pela dura lei da necessidade." 

DAWSON, Christopher. A Formação da Cristandade - Das Origens na Tradição Judaico-Cristã à Ascensão e Queda da Unidade Medieval. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 216-217.

Lotou ou Ainda Cabe Mais?

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Dois destinos: judeus chegam à Inglaterra pouco antes da Segunda Guerra Mundial e africanos em balsa improvisada, na atualidade.

A quem pertence um país e quem tem o direito de morar nele? Com um passado incomparável e camadas históricas extraordinariamente variadas, inclusive em seus momentos de fluxo e refluxo populacional, a Itália já declarou que a lotação está esgotada. No ano passado, acolheu mais de 180 mil pessoas, a maioria absoluta provenientes da África. Neste ano, podem chegar a 250 mil. Até organizações humanitárias dizem que não dá mais para acomodar os refugiados em cidadezinhas minúsculas, vilarejos medievais ou bairros distantes de uma metrópole como Roma. 

O governo italiano, de centro-esquerda, já ameaçou se estranhar com vizinhos da União Europeia e liberar documentos para os africanos - designação genérica, já que não se trata de imigrantes clássicos nem de refugiados de guerra. A Áustria chegou a encenar uma mobilização de tropas caso fossem abertas as fronteiras, ressurgidas depois dos tempos de tranquilidade da Europa com movimentação sem controle. 

Ao contrário dos imigrantes que vieram para o Novo Mundo, entre os quais tantos de nossos antepassados, com uma malinha, muitos carimbos nos documentos e esperança de emprego, as ondas humanas atuais chegam aos países ricos com abrigo, saúde e educação providos pelo Estado de bem-estar social. Organizações supranacionais, como a própria União Europeia, também têm verbas para dar garantias inimagináveis pelos imigrantes do passado. O problema, como sabemos, é que o dinheiro não aparece magicamente nos cofres dos Estados ou seus avatares. Não existem empregos de baixa qualificação para atender os refugiados atuais, e os qualificados, com formação profissional, são mais fruto do desejo que realidade. 

A arca da civilização é complexa. Socorrer os desvalidos é um impulso nobre e solidário que ganha outras feições quando vira incentivo ao deslocamento populacional em massa e colaboração com os exploradores de um comércio vil. Proteger o próprio país, com sua identidade nacional, de definições tão fugidias, também é um direito inalienável. A solução, irrealizável no momento, seria fixar as massas em movimento em seus países, dificultando o tráfico de refugiados e dando incentivo a uma vida melhor. Entre outras coisas, isso implicaria algum tipo de intervenção na Líbia, país acéfalo onde o caos descontrolado predomina desde da queda do ditador Muamar Kadafi. 

Vilma Gryzinski, Veja, 22 de julho de 2017. Texto Adaptado.

O Melancólico Século XV

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Joana D'Arc queimando na estaca. Jules Eugène Lenepveu pintou essa obra entre 1886 e 1890. A famosa heroína francesa foi condenada pela Inquisição e executada na fogueira em 1431. 

"No fins da Idade Média pesava na alma do povo uma tenebrosa melancolia. Quer se leia uma crônica, um poema, um sermão ou até um documento legal, a mesma impressão de tristeza nos é transmitida por todos eles. Dir-se-ia que todo este período foi particularmente infeliz, como se tivesse deixado apenas memória de violências, de cobiça, de ódio mortal e não tivesse conhecido outras satisfações que não fossem as da intemperança, do orgulho e da crueldade. 

A verdade é que nos documentos de todas as épocas o infortúnio deixa mais vestígios do que a felicidade. os grandes males constituem os fundamentos da História. Somos talvez inclinados a concluir sem grande evidência que, de maneira geral e apesar de todas as calamidades, o total de felicidade pouco terá mudado de época para época. Mas no século XV, assim como durante o romantismo era, por assim dizer, de mau gosto elogiar francamente o mundo e a vida. Estava em modo ver apenas o sofrimento e a miséria, descobrir em tudo sinais de decadência e da aproximação do fim - em suma, condenar os tempos ou ter por eles desprezo." 

HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. 2ª edição. Tradução de Augusto Abelaira. Lousã, Coimbra: Ulisseia, s/d, p. 31. 

A Mulher de César

domingo, 6 de agosto de 2017

Pompeia Sula, a esposa infiel de César. Guillaume Rouillé, Promptuarii Iconum Insigniorum

Pouco sabemos do período de César como pretor. Durante essa fase, ele provavelmente se dedicou à sua principal tarefa, qual seja, a de agir como juiz. Em 62 a.C., sua residência foi escolhida para acolher o festival da Bona Dea, ou Boa Deusa, que todos os anos era celebrado na casa de um dos magistrados mais importantes. No ano em questão, a escolha recaiu sobre a residência de César provavelmente porque ele era o pontífice mais importante e pretor.

As cerimônias desse desse festival eram conduzidas exclusivamente por mulheres, especialmente as aristocráticas matronas e suas escravas. Após realizarem sacrifícios e outros rituais, a música e o banquete prosseguiam pela noite adentro. As virgens vestais presidiam os rituais e a mulher do magistrado organizava grande parte do festival. 

Pompeia Sula, a esposa de César, tinha um amante. Era o questor eleito, Público Clódio Pulcher, de 30 anos, e o par decidiu que as celebrações seriam a cobertura perfeita para um encontro. Clódio disfarçou-se de tocadora de harpa, uma das muitas profissionais, a maioria delas escravas, que atuavam na comemoração. Contudo, acabou descoberto por uma das escravas, que saiu correndo, gritando que havia um homem na casa. Imediatamente, a cerimônia foi suspensa, os objetos sagrados foram cobertos e escravas foram ordenadas a trancar todas as portas, de modo a impedir que o intruso escapasse. Assim, Clódio foi encontrado escondido num dos quartos. Aurélia, a mãe de César, olhou-o atentamente, a fim de se certificar de quem era, antes de levá-lo para fora de casa. Em seguida, orientou às mulheres que voltassem para as suas casas e contassem a seus maridos sobre o sacrilégio de Clódio. 

No dia seguinte, César divorciou-se de Pompeia. O divórcio era consagrado pela tradição romana e, de forma simples, o marido podia dizer: "Pegue tuas coisas para ti mesma!" (tuas res tibi habeto). César pode ou não ter dito essa frase tradicional, mas o fato é que ele se divorciou, sem apresentar publicamente qualquer razão para tal ato. O Senado criou uma comissão para investigar o caso, e o festival foi realizado na noite seguinte. Ao que tudo indica, César desejou, desde o início, encobrir e a esquecer todo o caso. 

No julgamento que se seguiu, César recusou a fornecer provas contra Clódio, alegando ignorância sobre todo o caso. Quando foi desafiado a dizer publicamente por que se divorciara de Pompeia se achava que ela não fora flagrada em uma relação adúltera, replicou com sua famosa frase, de que o havia feito porque "a mulher de César tem de estar acima de suspeita". 

Adaptado de GOLDSWORTHY, Adrian. César - A Vida de um Soberano. Tradução de Ana Maria Mandim. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2011, p. 194-196.   

Cavalaria, Heroísmo e Amor

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Entre duas damas, Winli, o jovem alamano que disputará o torneio, porta uma bela cota de malha de tom prateado por baixo de uma túnica brasonada cor turquesa. Ele recebe um anel dourado da dama casada (à esquerda, de vestido roxo, cor da dubiedade), que segura com sua mão direita o escudo do jovem senhor. A indicação da condição marital da dama de roxo está em seus cabelos, ocultos em um lenço vermelho preso por um cordão amarelo. Ela está acompanhada por uma mulher mais jovem (sua aia?) de vestido vermelho, cor símbolo da impetuosidade. Essa jovem dama é solteira (pois mostra sua vasta cabeleira loura, adornada com uma bela tiara dourada) e, delicadamente, traz o elmo do cavaleiro (com um chapéu brasonado, um lenço vermelho por trás, e encimado por uma estrela de oito pontas). A dama casada que presenteia Winli é quem o iniciará na arte do amor, segundo a tradição cortês-cavaleiresca. Por sua vez, ele, extasiado, coloca sua mão esquerda no peito, indicando que está muito comovido com o inesperado presente que a partir de agora o coloca como fiel vassalo da dama, mas que deve partir para disputar o torneio – e ser merecedor daquela maravilhosa dádiva. Enquanto isso, o escudeiro do cavaleiro, abaixo, representando em dimensões reduzidas (que denotam sua condição inferior), segura seu cavalo, que parece bastante apressado para ser cavalgado. Codex Manesse, imagem 76. Ver também PASTOREAU, 1996: 245-263. In: www.ricardocosta.com

A aspiração a uma vida pura e bela deu origem, na Idade Média, à cavalaria. Durante séculos esse ideal continuou sendo uma fonte de energia e, ao mesmo tempo, uma capa para todo o mundo de violência e do interesse pessoal. 

O elemento estético nuca esteve ausente e acentuou-se, sobretudo, nos tempos em que a função da cavalaria foi mais vital, como nos tempos das primeiras cruzadas. O guerreiro nobre precisava ser pobre e livre dos apegos terrenos. Assim, ele se arriscaria sempre que a necessidade lhe obrigasse, e seria um homem absolutamente desembaraçado. Chama a atenção, portanto, que em sua origem, a cavalaria medieval estivesse destinada a misturar-se com o monaquismo. Desta união surgiram as Ordens Militares dos Templários, de S. João, dos Cavaleiros Teutônicos, e também as dos espanhóis. Logo no começo, porém, o ideal afastou-se cada vez mais para as regiões da fantasia, e foram preservados traços de ascetismo e sacrifício muito raramente visíveis na vida real.

Os elementos religiosos da cavalaria, tais como a compaixão, a fidelidade e a justiça eram-lhe essenciais. Contudo, o complexo das aspirações e da imaginação que informam a ideia da cavalaria, a despeito da sua forte ética e do combativo instinto do homem, nunca teriam feito uma estrutura tão sólida para a vida da beleza se o amor não tivesse sido a fonte do seu ardor constantemente reavivado. 

Além de religiosos, estes traços de compaixão, de sacrifício e de fidelidade que caracterizam a cavalaria eram também eróticos. O cavaleiro e a sua dama, ou, por outros termos, o herói que serve por amor - é este o motivo primário e invariável de onde a fantasia erótico sempre partiu. É a sensualidade transformada em ânsia de sacrifício, no desejo revelado pelo macho de mostrar a sua coragem, de se arriscar, de ser forte, de sofrer e de sangrar diante da amada. 

Adaptado de HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. 2ª edição. Tradução de Augusto Abelaira. Lousã, Coimbra: Ulisseia, s/d, p. 79-80. 

Congresso Eficiente

quinta-feira, 3 de agosto de 2017