“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Pós-Guerra no Vietnã

domingo, 27 de junho de 2021

Milhares de refugiados vietnamitas se lançaram ao mar para fugir do regime comunista, imposto a todo o país em 1975. Eles ficaram conhecidos como "boat people". Dpa/Koichi Sawada.

Com a retirada das tropas terrestres e do suporte aéreo americano no Vietnã em 1973-74, a derrota final do Vietnã do Sul foi inevitável. O apoio soviético e chinês aumentou sem precisar se preocupar com os bombardeios americanos. Imediatamente após os acordo de paz de 1973, os norte-vietnamitas enviaram quatro vezes mais suprimentos militares para o sul do que o ano de guerra de 1972 - tamanha era sua convicção de que estariam imunes aos ataques aéreos americanos. Ao contrário da Coreia, onde os Estados Unidos deixaram milhares de soldados para garantir o armistício, em março de 1973 praticamente todos os soldados americanos haviam sido repatriados. Saigon caiu diante de uma ofensiva comunista maciça no dia 30 de abril de 1975. No entanto, os norte-vietnamitas haviam pagando um preço terrível pela vitória - pelo menos um milhão de mortos em combate, e talvez o mesmo número de mortos e desaparecidos. No final, os comunistas tinham quatro vezes mais mortos de guerra do que o exército sul-vietnamita sozinho.

Os americanos foram reiteradas vezes acusados de terem matado 50 mil civis em mais de uma década de bombardeios. Se isso for verdade, essa foi uma consequência terrível da guerra. No entanto, como porcentagem da população norte-vietnamita total, esse número desafortunado ainda representava um total de mortes civis bem inferior ao ocorrido na Alemanha e no Japão durante a Segunda Guerra Mundial. Além disso, tal número é apenas uma fração dos cerca de 400 mil civis que se acredita que foram mortos em ataques terroristas e por bombardeios e lançamentos indiscriminados de foguetes pelos comunistas nas cidades. Na derrota, 58 mil americanos foram mortos e o gasto total foi de 150 bilhões de dólares.

Uma vitória comunista causou mais mortes e ainda mais êxodo aos vietnamitas do que décadas de guerra. E tais mortes frequentemente eram mortes lentas por inanição, encarceramento e fuga, e não assassinatos em massa diretos. No passado, a ocupação pelos japoneses e franceses levara a êxodos moderados do Vietnã, mas nada na história do país era comparável às partidas em massa do Vietnã do Sul depois da tomada de poder comunista em 1975. Os números exatos são contraditórios, mas a maioria dos estudiosos concorda que bem mais de um milhão de pessoas deixaram o país de barco; e centenas de milhares cruzaram a fronteira por terra para a vizinha Tailândia e mesmo para a China. O número total de vietnamitas que deixaram o país ultrapassava o da migração original para o sul durante a partição do país em 1954, que somara mais de um milhão de pessoas. Só os Estados Unidos acabaram acolhendo 750 mil vietnamitas e asiáticos do sul, e outros países ocidentais, mais de um milhão. Os que morreram em navios naufragados ou em tempestades somaram entre 50 e 100 mil.

Nos dois primeiros anos depois da queda de Saigon (1975-77), havia quase o dobro de vítimas civis no Sudeste Asiático em comparação a todas aquelas mortas durante dez anos de envolvimento americano mais intenso (1965-74). Ao ser interrogado sobre os milhares de médicos, engenheiros e profissionais enviados para os campos de concentração, um oficial norte-vietnamita declarou: "Devemos nos livrar do lixo burguês." Não há estimativas sobre os mortos nos campos de reeducação - quarenta foram criados só no Vietnã do Sul -, mas acredita-se que tenham sido milhares.

A elite do Partido Comunista escolheu as residências americanas e sul-vietnamitas mais luxuosas para morar. Se o governo sul-vietnamita era corrupto, como a imprensa americana tanto divulgava, esses roubos empalideceram quando comparados ao governo comunista que tomou o poder em 1975. A escala da rapina era tão colossal que até mesmo navios chineses e soviéticos precisavam pagar propinas para descarregar suas mercadorias em Haifong.        

Adaptado de HANSON, Victor Davis. Por que o Ocidente Venceu - Massacre e cultura, da Grécia antiga ao Vietnã. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 599-602.

Mitos e Verdades da Guerra do Vietnã

segunda-feira, 14 de junho de 2021

 

O general Nguyen Ngoc Loan executa um vietcongue infiltrado. Fotografia de Eddie Adams. Sobre isso, ver o fato 3. 

1. Início da manhã de 31 de janeiro de 1968. Mais de cem cidades, povoados e até mesmo aldeias rurais do Vietnã do Sul foram invadidos pelos vietcongues e pelos norte-vietnamitas, que então quebravam uma trégua de 36 horas. Os comandantes americanos foram pegos de surpresa - eles não esperavam um ataque em massa, especialmente após os bombardeios de 1967, que haviam gradualmente virado a maré contra o Vietnã do Norte. Até então, para as Forças Armadas estadunidenses, o problema no Sudeste Asiático resumia-se a encontrar o inimigo, incitá-lo a se expor e lutar e, a seguir, destruí-lo.

2. A Ofensiva Tet, apontada acima, começou por volta das 3h do dia 31 de janeiro, e mobilizou cerca de 4 mil guerrilheiros, auxiliados por unidades infiltradas do exército regular do Vietnã do Norte. Os alvos foram praticamente todas as principais instalações sul-vietnamitas e do governo americano em Saigon. Dentre os vietnamitas locais, quase ninguém se juntou ao "levante" comunista. A investida foi rechaçada após quase três semanas, e o problema americano no país, bem como o problema dos ocidentais no estrangeiro em geral, sempre fora a relutância do inimigo em travar batalhas definidas, transformando em vez disso a guerra em um conflito de infiltração, combate na selva, bombardeios terroristas e ataques a casas isoladas. 

3. Durante a semana seguinte do combate, 60 milhões de americanos nos Estados Unidos viram um retrato diferente da primeira noite do ataque. As manchetes diziam: A guerra chega a Saigon. Fotos mostravam americanos mortos (um detalhe é que 86% deles, segundo os registros do final da guerra, foram contabilizados como caucasianos. Isso refuta a tese de que existiria um plano maquiavélico de Washington para eliminar negros e hispanos no Vietnã). A grande fotografia da Ofensiva Tet passou a ser a imagem que mostrava um general sul-vietnamita explodindo os miolos de um prisioneiro vietcongue (ver acima). No frenesi jornalístico, nada foi dito que o homem executado havia participado, pouco antes, de unidades infiltradas que haviam abatido muitas das forças de segurança de Loan, incluindo um oficial em casa com sua mulher e filhos.    

4. Perto da Zona Desmilitarizada, mais ao norte, na capital provinciana de Hué, ocorreram graves combates urbanos. Mais ou menos no instante em que a embaixada americana foi atacada, forças norte-vietnamitas que chegariam a 12 mil homens invadiram a cidade. Após assumirem o controle, reuniram entre 4 e 6 mil soldados sul-vietnamitas, oficiais do governo, simpatizantes americanos e estrangeiros. A maioria morreu espancada ou fuzilada. Embora repórteres ocidentais logo estivessem em Hué, poucos comentaram as execuções. Os que fizeram, com frequência negaram que o massacre tivesse ocorrido. 

5. O contra-ataque americano em Hué, liderado pelos fuzileiros navais, foi feroz. Após menos de um mês, o inimigo foi expulso de Hué, numa impressionante vitória militar. Os americanos e seus aliados sul-vietnamitas mataram 5.113 inimigos. Apenas 147 foram perdidos no combate. Apesar disso, os repórteres que percorriam a cidade ignoraram os sacrifícios respectivos e não se interessaram pela situação tática global. Pela primeira vez, soldados podiam ser vistos no calor da batalha; imagens de mortos e de feridos foram enviadas para os Estados Unidos com detalhes escabrosos. Por outro lado, quase nenhuma reportagem foi publicada sobre os massacres de inocentes perpetrados pelos norte-vietnamitas.

6. Relativamente um número pequeno de soldados se infiltraram em instalações-chave no centro das principais cidades como Saigon e Hué. Apesar disso, os norte-vietnamitas aprenderam rapidamente que não precisavam vencer a ofensiva, e sim dominar por alguns dias as áreas supostamente seguras de modo a causar uma tempestade de recriminação e tumulto nos Estados Unidos. Esse era um dividendo psicológico muito além dos verdadeiros danos infligidos aos americanos e seus aliados. 

7. Dez dias antes da Ofensiva do Tet, no dia 21 de janeiro, milhares de soldados norte-vietnamitas iniciaram um cerco à base americana em Khesanh. Ali, não apenas os seis mil soldados sitiados foram mantidos em condições relativamente boas, como o contra-ataque americano foi assustador. Durante os quase três meses de cerco, 110.022 toneladas de bombas foram lançadas. Milhares de vietnamitas foram incinerados na selva em torno do acampamento, ao passo que menos de duzentos americanos foram mortos. Khesanh tornou-se um tremendo massacre de comunistas mas, ao invés de exaltar a força americana no contra-ataque, a mídia ianque previu uma terrível derrota. 

8. A corajosa defesa da base, os terríveis danos causados aos norte-vietnamitas e o abandono repentino de Khesanh são todos emblemas do que o Vietnã se tornara no final da primavera de 1968, um atoleiro no qual as operações militares não estavam necessariamente relacionadas às opiniões sobre o valor ou o desenrolar da guerra. Contudo, é importante destacar, mesmo com a cobertura sensacionalista do Tet pela mídia americana, as pesquisas de opinião pública continuavam a mostrar que a maioria dos cidadãos dos Estados Unidos apoiava a participação das Forças Armadas de seu país durante toda a ofensiva. 

9. A calamidade, após a vitória do Tet, foi que os americanos não capitalizaram o desbaratamento dos comunistas, cessaram os bombardeios e deram ao inimigo uma impressão de fraqueza e não de exultação em seu sucesso. De fato, a vitória decisiva do Tet em 1968 marcou o início de um radical recuo americano. O pico da mobilização americana se deu em 4 de abril de 1968, com 543 mil soldados, mas depois declinou abruptamente. Em 1º de dezembro de 1972, restavam menos de 30 mil soldados no Vietnã, e praticamente nenhum depois do cessar-fogo de 1973. 

10. Os soviéticos e chineses continuavam a fornecer armas de última geração aos comunistas do Vietnã. Os vietcongues, por sua vez, posavam para jornalistas, acadêmicos e pacifistas americanos influentes como liberacionistas patriotas, e não como quebradores de tréguas e assassinos terroristas. Segundo um oficial do serviço secreto americano, o exército de Von Nguyen Giap não mandava caixões para o norte; seu sucesso era medido pelo número de caixões americanos voltando para os Estados Unidos. Assim, o general norte-vietnamita seguiria mobilizando inúmeros novos recrutas com a promessa de uma futura nação livre, ao passo que os americanos contavam os corpos, e não o território tomado e dominado. 

11. À medida que o tempo passava, o povo americanos duvidava cada vez mais da necessidade de enviar dinheiro público e seus filhos para tão longe, quando era pouco provável que os chineses e russos chegassem aos Estados Unidos pelo Vietnã. Depois da vitória do Tet, as forças armadas estadunidenses pediram mais 206 mil soldados e 250 mil reservas adicionais - o que não era exatamente uma demonstração para a opinião pública de que a guerra estava sendo vencida. Tais pedidos foram ignorados. A lição que os generais americanos nunca entenderam plenamente, ou ou nunca transmitiram com sucesso a Washington, foi a simples lição de que o número de inimigos mortos pouco importava, na verdade, se o território sul-vietnamita não fosse invadido, humilhado ou tornado impotente. 

12. Desde o início, o objetivo dos americanos era a segurança de um estado vietnamita não-comunista independente no sul e com ele o fim de uma agressão comunista generalizada no Sudeste da Ásia. Apesar da clareza do objetivo, a fórmula para a vitória nunca foi realmente pensada. Em 1964, os comunistas se mostraram mais duros, os sul-vietnamitas mais fracos, e o povo americano mais cético do que o previsto. Ainda assim, persistiu uma proibição absoluta e inquestionável de invadir o Vietnã do Norte. Durante a maior parte da guerra, os militares não tiveram a permissão para entrar pela força no Camboja, na Tailândia ou no Laos, locais de grandes depósitos de suprimento e santuários inimigos.

13. Assim que a guerra acabou, pessoas que visitaram Hanói se surpreendiam com o fato de a cidade ter sido pouco danificada pelos bombardeios - apesar das afirmações dos ativistas antiguerra de que as forças armadas americanas haviam matado milhares de pessoas nas ruas e quase destruído a capital. Ainda durante o conflito, muitos americanos sentiam que a China e a União Soviética eram praticamente inimigas, que o Vietnã era um inimigo chinês tradicional, e que os comunistas do Camboja, do Laos e da Tailândia nunca haviam se unificado completamente, e eles próprios eram, de longa data, antagonistas entre si e contra os vietnamitas. A ideia de tal fragmentação entre os comunistas asiáticos levou muitos americanos a acharem que Washington exagerava a sua ameaça.

14. A era eletrônica garantiu que a matança no Vietnã fosse transmitida pela televisão de forma instantânea. O bombardeio de Hué foi transmitido ao mundo, criando uma onda crescente de antiamericanismo. Além disso, a Guerra do Vietnã ocorreu durante o período de maior convulsão cultural e política da história americana - direitos civis, liberação feminina, rock, drogas e revolução sexual. Isso fez da guerra um catalisador genérico para todos os tipos de atividade contra o poder estabelecido e como ponto de convergência para um amplo leque de dissidentes. Por fim, no início dos anos 1960, os Estados Unidos estavam no auge da prosperidade econômica. Consequentemente, milhões de americanos discordantes passaram a ter acesso a viagens, lazer e dinheiro. A televisão tinha orçamentos maiores para correspondentes mundo afora, e das universidades transbordavam doações, bolsas de estudo e anos sabáticos. Isso levou a crítica à guerra ao extremo, ajudando ao inimigo diretamente.

15. As táticas americanas - especialmente o bombardeio intenso de matas e florestas - eram ineficazes, quando não ocasionalmente desumanas e contraproducentes. A mídia estava certa sobre o quão inepto era o alto comando americano naquela guerra estranha - apenas 15% dos cerca de 536 mil homens no Vietnã eram soldados de combate. Só depois de 1968 as forças armadas americanas lutaram com mais inteligência, ficaram mais enxutas e eliminaram muitos dos abusos apontados pelos jornalistas.     

Bibliografia consultada: HANSON, Victor Davis. Por que o Ocidente Venceu - Massacre e cultura, da Grécia antiga ao Vietnã. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 551-598.

Notas sobre José Martí (1853-1895)

segunda-feira, 7 de junho de 2021

 

Busto de José Martí em frente ao prédio Bernadete Lyra, CCHN/UFES. 


José Julián Martí Pérez foi considerado herói e mártir da independência cubana, antes e depois da Revolução castrista de 1959. Pouco antes de morrer, escreveu uma carta a Manuel Mercado, onde registrou uma frase célebre: "Vivo no monstro [EUA] e lhe conheço as entranhas: - e minha funda é a de Davi". Foi ele quem cunhou a expressão Nuestra América, para se opor à "outra" América Anglo-Saxônica.

Em seus textos, o cubano apresentava a América Latina como uma unidade com passado e destino comuns, dos quais todos deviam se orgulhar: "E em que Pátria pode o homem ter mais orgulho do que em nossas repúblicas da América? [...] De fatores tão desordenados, jamais, em menos tempo histórico, criaram-se nações tão adiantadas e compactas." A perspectiva de que tínhamos uma história tão rica, mas desvalorizada, era uma de suas constantes reiterações: "A história da América, desde a dos incas, deve ser ensinada minuciosamente, mesmo que não se ensine a dos arcontes da Grécia."

Diferentemente da maioria dos escritores elitistas seus contemporâneos, olhava para as sociedades latino-americanas e as aceitava em sua mistura étnica. Criticava as teorias raciais e não via qualquer traço de inferioridade na composição étnica da América hispânica. Além disso, se compadecia dos "pobres da terra" e com eles se solidarizava. 

Adaptado de PELLEGRINO, Gabriela & PRADO, Maria Ligia. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2016, p. 99-100.