Papa Francisco preside ao encerramento da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. Basílica de São Paulo fora dos Muros, Roma (25 de janeiro de 2014). (*)
I. As origens da supremacia papal
Os bispos católicos possuíam praticamente a mesma autoridade até o início do século IV. O bispo de Roma era apenas mais um ao lado dos influentes bispos de Jerusalém, Alexandria e Antioquia. Contudo, em 330, Constantino fundou Constantinopla, a futura capital do Império oriental. A partir dessa data, o bispo de Roma acabou por exercer a sua liderança naturalmente sozinho, e os romanos passaram a encará-lo naturalmente como o seu legítimo líder "temporal e espiritual" em situações de crise (Timm, 2005: p. 8). Sua liderança secular e religiosa foi reforçada a partir do ano 476, quando o último imperador do Ocidente, Rômulo Augusto, foi deposto pelos hérulos. Desde então, a lembrança e a reverência pelo Império Romano passaram a ser conservadas pela Igreja, ao qual, em certo sentido, deu continuidade.
É verdade que o império subsistiu no Oriente, onde a Igreja manteve-se sob a jurisdição do imperador, mas o bispo de Roma estava longe de ser submetido ao seu controle. "Os imperadores eram quase papas no Oriente, e no Ocidente os papas eram quase imperadores" (Cairns, 2008: p. 179).
Em 440, Leão I ascendeu ao trono episcopal, e passou a reivindicar mais explicitamente sua supremacia sobre os demais bispos. A tendência foi reforçada sobre o pontificado do papa Símaco (498-514). Alguns anos depois, o Império Romano do Oriente, a porção que sobreviveu do antigo Império Romano, reconheceu o papa como supremo líder da Cristandade.
II. Entre o reconhecimento e o rompimento: os imperadores bizantinos e os papas
Foi em 533, sob o pontificado de João II (533-535), que o líder do Império Romano do Oriente, Justiniano (527-565), reconheceu oficialmente a primazia eclesiástica do papa. Contudo, somente em 538 a "Cidade Eterna" foi libertada dos ostrogodos (cristãos heréticos), pavimentando o caminho para a supremacia papal. Portanto, para um grupo de estudiosos, a data inicial da supremacia papal é 538.
Seguindo os passos de seu predecessor, o imperador bizantino Flávio Focas (602-610) reconheceu o papa como "a cabeça de todas as Igrejas" (Pirenne, 2010: p. 199). Entretanto, nem todos os imperadores bizantinos estavam dispostos a se sujeitarem a todos os ditames do bispo de Roma. Assim, Heraclius (610-641) e Constante II (641-668) lançaram, respectivamente, o Ecthesis (638) e o Type (648), por meio dos quais procuravam reconciliar monofisistas e ortodoxos em uma única doutrina, o monotelismo. No Sínodo de Latrão, em 649, o papa Martinho I (649-655) condenou tanto o Ecthesis quanto o Type.
Ser rotulado de herege era demais para Constante II. Por suas ordens, o exarca de Ravena deteu o papa e o enviou a Constantinopla. Lá ele foi acusado de tentar provocar uma sublevação contra o imperador nas províncias ocidentais. Aprisionado após terríveis humilhações, foi finalmente enviado para o exílio na Crimeia, onde morreu em setembro de 655. A vitória da "Nova Roma" sobre a antiga, contudo, não durou muito. Em 680, o VI Concílio ecumênico em Constantinopla, convocado por Constantino IV (668-685), condenou o monotelismo e reconheceu o papa como "chefe da principal sede da Igreja universal" (Pirenne, 2010: p. 204).
Mais tarde, os imperadores bizantinos Leão III, o Isauriano (717-741) e seu filho reergueram a Roma do Oriente. Uma das grandes proezas de Leão III foi forçar os árabes a sustarem o cerco a Constantinopla em 718, após mais de um ano de assédio. Segundo o Henri Pirenne, esse foi "um fato histórico muito mais importante que a batalha de Poitiers" (2010: p. 207).
Leão III quis rematar a sua obra com uma reforma religiosa: a iconoclastia. Talvez ela pretendesse diminuir a oposição entre o cristianismo e o Islã, além de se reconciliar com as províncias orientais da Ásia Menor, onde os paulicianos eram numerosos. Após seu primeiro édito contra as imagens, em 725-726, Leão foi excomungado pelo papa Gregório II (715-731). A seguir, toda a Itália bizantina mergulhou em plena revolta.
O sucessor do papa Gregório II, Gregório III (731-741), foi o último a solicitar a confirmação do imperador (Pirenne, 2010: p. 208 e ss.). Doravante, os papas sentiam-se suficientemente seguros para se legitimarem sem o aval do poder imperial.
III. Dificuldades no século XI: momento crítico para o papado
Em meados do século XI, contudo, o caos pareceu se instalar na Santa Sé. O papa Bento IX terminou seu primeiro pontificado (1032-1044) ao ser expulso de Roma. Silvestre III o substituiu, mas seu pontificado durou apenas 21 dias, entre 20 de janeiro e 10 de fevereiro de 1045. De volta a Roma, Bento IX reassumiu a cadeira de São Pedro entre abril e maio de 1045, quando vendeu o cargo por uma quantia vultosa a um homem que se tornou Gregório VI (1045-1046). Entretanto, o resistente Bento IX ainda retornaria ao cargo (1047-1048).
Como três papas alegavam legitimidade, o imperador do Sacro Império, Henrique III (1046-1056) convocou o Sínodo de Sutri (1046). Bento e Silvestre foram depostos. Gregório foi forçado a renunciar em favor de Clemente II (1046-1047). Este e seu sucessor, no entanto, tiveram vida curta. Mais tarde, o imperador fez outra indicação ao bispado de Roma: Bruno, o papa Leão IX (1049-1054). De toda essa confusão, o que nos interessa é que o Sínodo de Sutri assinalou "o momento mais baixo do poder do papado na Idade Média" (Cairns, 2008: p. 178).
IV. Do Grande Cisma à Contrarreforma: o papado na Baixa Idade Média
No embate entre os papas e os imperadores bizantinos, os papas parecem ter se saído melhor. Contudo, as feridas abertas acabaram por provocar o Grande Cisma do Oriente, em 1054, quando os líderes da Igreja em Roma e em Constantinopla excomungaram-se mutuamente. A partir de então, a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa passaram a predominar, respectivamente, no Ocidente e no Oriente. A unidade da Cristandade estava definitivamente rompida.
É importante lembrar que, do ponto de vista da supremacia espiritual, a Igreja latina nunca teve rival. Nem de longe a Igreja Ortodoxa alcançou a influência e o poder da sua equivalente romana. Mais uma vez, citamos Earle E. Cairns, para quem "no Oriente, a Igreja foi praticamente um departamento do Estado; no Ocidente, entretanto, o papa conseguira se libertar do controle temporal e até mesmo, mais tarde, assumir o controle do poder temporal" (2008: p. 166).
Pouco após o Grande Cisma do Oriente, o papa Nicolau II (1058-1061) convocou o Concílio de Latrão (1059), no qual mudou o método de eleição de papas, de modo que fosse eliminada a influência aristocrática romana ou imperial germânica. Para resumirmos a questão, o processo de eleição do papa passou ao controle do Colégio dos Cardeais, o que contribuiu sobremaneira para o fortalecimento do poder papal.
O documento que melhor expressa as ambições do papado é o Dictatus Papae, escrito à época do papa Gregório VII (1073-1085). Segundo ele, a Igreja Romana deveria seus fundamentos somente a Deus; seu pontífice, o único a ser chamado de "universal", teria plena autoridade sobre todos os bispos; poderia "depor imperadores" e livrar pessoas de se sujeitarem a governantes temporais ruins. Segundo o 22º artigo do documento, jamais houve erro na Igreja Romana e, de acordo com as Escrituras, ela nunca erraria. Portanto, fica claro que o Dictatus Papae "fez as reivindicações mais radicais de supremacia papal de que se tem notícia" (Cairns, 2008: p. 187).
A pretensão de Gregório VII de sujeitar o poder temporal se deu na prática entre 1075 e 1122, na Querela das Investiduras. Essa acesa disputa entre o papado e o Sacro Império Romano Germânico num primeiro momento ameaçou a estabilidade de ambos os poderes. A Questão foi resolvida com a Concordata de Worms (1122), que estabeleceu que o papa faria a investidura espiritual dos bispos, enquanto que o imperador faria a investidura temporal. Embora essa pareça uma decisão de meio-termo, na verdade o poder papal saiu fortalecido, e a Igreja conseguiu reduzir a interferência da nobreza nas suas questões administrativas.
No século XIV, um outro embate entre a Igreja e o Estado marcaria o Ocidente. O papa Bonifácio VIII (1294-1303), seguindo na linha da Reforma Gregoriana, procurou reafirmar a supremacia papal sobre os reis e nobres. Suas pretensões foram enunciadas na bula Unam Sanctam, de 1302. Nesse documento, Bonifácio sustentou "que é absolutamente necessário para a salvação que toda criatura humana esteja sujeita ao pontífice romano." A retomada das disputas com o poder temporal atingiu o clímax no famoso Papado de Avinhão, ou Grande Cisma do Ocidente, que estendeu-se entre 1309 e 1337. Nesse período, destacou-se o rei francês Filipe IV, o Belo (1285-1314).
Mal havia se recuperado desse novo cisma, o papado foi novamente golpeado pelos movimentos de John Wycliffe (1320-1384), na Inglaterra, e Jan Huss (1369-1415), na Boêmia. Apesar disso, o papado assegurou sua supremacia espiritual. No alvorecer do mundo moderno, contudo, a difusão do individualismo e do espírito crítico pelo Renascimento e pelo Humanismo dificultaram sobremaneira a posição de um clero notoriamente corrupto. Assim, a Reforma Protestante encontrou as condições necessárias para se desenvolver a representar o mais duro golpe até então enfrentado pelo papado.
Ainda que destituído do seu monopólio espiritual sobre a Cristandade ocidental, mais uma vez o bispo de Roma recobrou o fôlego. A Contrarreforma, organizada no Concílio de Trento (1545-1563), reafirmou os dogmas católicos e a poderosa Companhia de Jesus, responsável por converter os nativos do Novo Mundo à fé católica, jurou fidelidade absoluta ao papa. Ainda se passariam mais de dois séculos para que o poder papal fosse ferido mortalmente.
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(*) Sobre a imagem, leia Apocalipse 20:11, Isaías 37:16 e II Tessalonicenses 2:4.
REFERÊNCIAS:
CAIRNS, E. E. O cristianismo através dos séculos. São Paulo: Vida Nova, 2008.
PIRENNE, H. Maomé e Carlos Magno. Rio de Janeiro: Contraponto / Ed. PUC-Rio, 2010.
TIMM, A. R. A importância das datas de 508 e 538 para a supremacia papal. Parousia, 2005, pp. 7-18. Originalmente publicado na Revista Teológica do Salt-Iaene 3 (jan.-jun. de 1999), pp. 40-54.