“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

O Espírito de Cruzada de Cortez

domingo, 31 de março de 2019

Estátua de Hernán Cortez pisando a cabeça de um ameríndio. Medellín, Espanha.

No alvorecer da Época Moderna, o frei Bartolomé de Olmedo, capelão da tropa de Hernán Cortez na conquista do México, encorajava os soldados a partir de apelos à difusão da “santa fé” e gritando-lhes que vencessem ou morressem em combate. O próprio estandarte de Cortez continha uma cruz no centro. Ao redor do símbolo, uma inscrição latina que, traduzida, era uma paráfrase do In hoc signo vinces (do sonho do imperador Constantino, no século IV): 

“Amigos, sigamos a cruz, e com fé neste símbolo devemos conquistar.”
  
Bibliografia consultada: TODOROV, T. A conquista da América - a questão do outro. Tradução de Beatriz P. Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 104.

#15Fatos A Escravidão na África

sexta-feira, 29 de março de 2019

1. A escravidão era disseminada e inata na sociedade africana, como era, naturalmente, o comércio de escravos. Os europeus simplesmente entraram nesse mercado já existente, e por séculos os africanos responderam ao aumento da demanda, fornecendo mais escravos. Não se deve aceitar a teoria de que os africanos foram compelidos a participar desse comércio infame.  

2. A escravidão era amplamente difundida na África (o que nada tem a ver com o subdesenvolvimento econômico da região), e seu crescimento foi muito independente do comércio atlântico. O comércio atlântico de escravos foi o resultado dessa escravidão interna. Seu impacto demográfico, no entanto, mesmo nos estágios iniciais foi significativo. 
  
3. A escravidão era difundida na África atlântica porque os escravos eram a única forma de propriedade privada que produzia rendimentos reconhecida nas leis africanas. Nesse sentido, foi a ausência de propriedade privada de terras que levou a escravidão a ser tão difundida na sociedade africana. Em contraste, nos sistemas legais europeus a terra era a principal forma de propriedade privada lucrativa, e a escravidão ocupava uma posição relativamente inferior.    

4. Observadores europeus nos séculos XVI e XVII estavam bem conscientes de que as sociedades africanas eram política e economicamente desiguais e que essas desigualdades refletiam-se nas estruturas sociais e legais. Mas, apesar de alguns reconhecerem a ausência da propriedade privada de terras, muitos transformaram os africanos em proprietários a despeito deles.    

5. Partindo desse cenário, a descrição das terras na África por europeus como pertencendo ao rei foi o modo mais comum para reconciliar a lei africana e o conceito de que a posse de terras era uma parte natural e essencial da civilização. Mas, na África, as pessoas é que eram taxadas em vez das terras, outra indicação da ausência de propriedade privada territorial.    

6. Sob certas premissas ideológicas, os reis podiam requerer o direito de taxar a partir do direito de conquista. As tradições do Congo, por exemplo, enfatizam que o fundador do Estado conquistou a população do país, e seus direitos para governá-los e taxá-los provêm desse fato, direitos partilhados com "capitães" designados por ele.     

7. Alguns viajantes mencionavam frequentemente os "nobres" ocasionalmente como "proprietários" de terras ou pelo menos exercendo controle sobre eles. Por exemplo, John Hawkins, ao descrever Serra Leoa em 1562-8, citou que os nobres "possuíam" terras, e todos os outros lhes pagavam um aluguel para poder utilizá-las. Mas, em Serra Leoa, como em outros lugares, o verdadeiro proprietário era o Estado, e os rendimentos auferidos eram na verdade encargos ou tributações estatais.   

8. Assim, a aparente propriedade privada, ou o que os historiadores especialistas no início da Europa moderna algumas vezes chamam de "grande propriedade", não tinham de modo algum essa característica. Em cada caso, os detentores de títulos e os que usufruíam dos rendimentos provenientes da propriedade dependiam dos grandes grupos corporativos, algumas vezes das linhagens, mas em geral do Estado, para suas remunerações.  

9. No Congo, um filho ou irmão do rei era frequentemente seu sucessor, mas a escolha final recaía em um grupo de eleitores depositários do Estado. Na África central, e também no Dongo, a eleição era definida por um grupo de funcionários. Em Benin, segundo testemunhas do século XVII, a sucessão era considerada hereditária, mas o acesso do governante ao trono precisava ser confirmado e ratificado por dois funcionários mais graduados. Um sistema semelhante era adotado em Warri.         

10. O pouco que se sabe sobre a ocupação de terras por camponeses nos séculos XVI e XVII na África sugere que aqueles que as cultivavam tinham direitos de explorá-la mas não de vendê-la, aliená-la ou arrendá-la. Assim, os africanos possuíam produtos advindos da terra, mas não a terra em si. Em Loango, por exemplo, os terrenos eram mantidos como uma propriedade comunitária e, para assegurar o direito de cultivá-los, só era preciso começar a cultivar terras desocupadas; se o cultivo fosse interrompido, o lavrador perdia os direitos.  

11. Se os africanos não eram proprietários de um fator de produção (a terra), eles poderiam possuir outro, o trabalho (o terceiro fator, o capital, era relativamente insignificante antes da Revolução Industrial). O casamento era outra instituição de dependência. Em meados do século XVII, o governante de Warri tinha um grande harém de esposas que produziam tecido para vender. Algo análogo ocorria em Ajudá. A riqueza na África, portanto, media-se pelas esposas, pois a poligamia indicava o prestígio e as esposas constituíam com frequência forças de trabalho. 

12. A escravidão era, possivelmente, o caminho mais importante para a riqueza privada geradora de recursos para os africanos. Portanto, não é surpreendente que fosse tão disseminada. Na prática, na África os escravos tinham mais utilidades do que os escravos europeus ou euro-americanos. Na Europa, as pessoas ricas que queriam investir em algo seguro e com retorno financeiro provavelmente comprariam terras. Na África, por outro lado, não existia propriedade privada da terra; assim, o último recurso era adquirir escravos. Como propriedade pessoal, eles poderiam ser herdados ou gerar riqueza. 

13. Os escravos africanos, em geral não recebiam um tratamento diferente dos camponeses agrícolas. Na África central, segundo um testemunho, eles possuíam liberdade relativa e eram postos em ampla variedade de empregos. No entanto, isso não significa que os escravos nunca recebessem o mesmo tipo de trabalho difícil, perigoso ou degradante dos escravos na Europa, embora na África frequentemente esse trabalho pudesse ser realizado com facilidade por pessoas livres a serviço do Estado.    

14. Os escravos como geradores de riqueza destacaram-se principalmente entre os julas e outros grupos comerciais islâmicos do oeste do Sudão e Senegâmbia. Outra utilização dos escravos, quase da mesma importância que essa (aumento e manutenção da fortuna particular), foi seu uso pela elite política para ampliar seu poder. Os poderosos impérios sudaneses confiavam muito nos exércitos e administrações de escravos para manter sob controle uma nobreza local ascendente e refratária. O desenvolvimento de um exército ou administração compostos de escravos ajudou na centralização do Império Songai e no Dongo. O recolhimento dos escravos em um lugar central conferiu grande poder aos reis do Congo, no final do século XV.  
  
15. Os escravos estavam em todas as partes da África atlântica, desempenhando todo tipo de tarefas. A importância da escravidão na África no desenvolvimento do comércio de escravos pode ser observada claramente na incrível velocidade com que o continente começou a exportá-los. De 1450 em diante, antes mesmo que os seus navios alcançassem o rio Senegal, os portugueses compravam escravos de caravanas na fronteira ao norte do posto de Arguim, estabelecendo relações duradouras com o comércio transaariano. Em suma, podemos concluir que o comércio atlântico de escravos e a participação da África tinham sólidas origens nas sociedades e sistemas legais africanos. A organização social preexistente foi, assim, muito mais responsável do que qualquer força externa para o florescimento do comércio atlântico de escravos.    
  
Bibliografia consultada: THORTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo atlântico - 1400-1800. Coordenação editorial de Mary Del Priore e tradução de Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 122-152.

#15Fatos Profetas Sociais dos Hebreus

quinta-feira, 28 de março de 2019

Profeta Isaías, monumento em Roma.

1. A grande contribuição dos hebreus foi a ideia de um Deus que exigia um comportamento ético por parte de Seus seguidores. Esse deus mostrava-se comprometido mais com problemas vinculados à exclusão social, à pobreza e à solidariedade do que com sacrifícios. 

2. O monoteísmo ético encontrou sua expressão não no período tribal (período esse que se estendeu até o final do século XI a.C.), nem no período da monarquia unificada, mas já no período da decadência da monarquia, após o Cisma (931 a.C.).  
  
3. A doutrinação dos profetas sociais estabeleceu os fundamentos do monoteísmo ético. Este, por sua vez, é a base das grandes religiões monoteístas e se constitui, provavelmente, na primeira expressão documentada e politicamente relevante da chamada pré-história da cidadania.    

4. A comemoração de datas, rezas, costumes e tradições, emboras adaptadas a diferentes locais e épocas, têm mantido o elo que conecta as diferentes comunidades judaicas espalhadas pelo mundo. Para os mais nacionalistas, o elo é Eretz Israel (a Terra de Israel).  

5. Autores judeus de diferentes épocas e locais deixam transparecer o orgulho que a comunidade tinha pelo fato de apresentar baixa incidência de bêbados, ladrões ou assassinos. O temor a perseguições e a ansiedade em conseguir o beneplácito dos governantes levou, frequentemente, as comunidades judaicas a pressionar os seus membros a fim de não chamarem a atenção de forma negativa. O embasamento teórico-religioso da cobrança do grupo é a pretensa superioridade ética do judaísmo com relação a outras religiões ou filosofias.     

6. Para Simon Dubnow, uma nação pode passar por três estágios: o tribal, o político-territorial e o histórico-cultural. Só os judeus teriam chegado a essa última etapa. Em nome dos grandes profetas (Isaías, Ezequiel, etc.), a ética dos judeus manteve-se por quase trinta séculos.      

7. Os grandes profetas judeus não se preocupavam com questões teológicas ou rituais e sim com o comportamento do povo judeu. Como o monoteísmo ético desenvolveu-se entre os hebreus, no século VIII a.C., e com os profetas?   

8. Os grandes profetas utilizaram-se de uma exterioridade, de uma forma de ser já existente e praticada pelo vidente, para dar um novo conteúdo a ela.  

9. Isaías, o "príncipe dos profetas", atuou entre 740 e 701 a.C. Seu deus tem caráter universal, mas discute a realidade do reino de Judá e faz pesadas críticas às práticas sociais e rituais vigentes. Isaías se apresentava como porta-voz de Yahweh. Isaías foi um feroz crítico das formas exteriores da religião, desprovidas de genuína espiritualidade.        

10. Numa dessas críticas, Isaías declarou (cap. 1, v. 10-14): 

"Ouvi a palavra do Senhor, vós poderosos de Sodoma; dai ouvidos à lei do nosso Deus, ó povo de Gomorra. 
De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios, diz o Senhor? Já estou farto dos holocaustos de carneiros, e da gordura de animais cevados; nem me agrado de sangue de bezerros, nem de cordeiros, nem de bodes. 
Quando vindes para comparecer perante mim, quem requereu isto de vossas mãos, que viésseis a pisar os meus átrios? 
Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação, e as luas novas, e os sábados, e a convocação das assembleias; não posso suportar iniquidade, nem mesmo a reunião solene. As vossas luas novas, e as vossas solenidades, a minha alma as odeia; já me são pesadas; já estou cansado de as sofrer."

11. Amós, um "profeta menor" (devido à extensão de seu livro), nasceu na Judeia, mas profetizou em Samaria, capital de Israel, durante o reinado de Jeroboão II (783-743 a.C.). Acredita-se que ele atuou apenas em 745 a.C. Sua origem é humilde (não era filho de profeta), sua linguagem é agressiva e desabusada e seu sentimento de justiça é agudo e intransigente.

12. O deus de Amós insiste na preservação dos direitos sociais e individuais de todos. Note: 

"Portanto, visto que pisais o pobre e dele exigis um tributo de trigo, edificastes casas de pedras lavradas, mas nelas não habitareis; vinhas desejáveis plantastes, mas não bebereis do seu vinho. 
Porque sei que são muitas as vossas transgressões e graves os vossos pecados; afligis o justo, tomais resgate, e rejeitais os necessitados na porta." (Amós 5:11-12).

13. Outro importante texto que denuncia a hipocrisia dos religiosos de Israel é esse: 

"Odeio, desprezo as vossas festas, e as vossas assembleias solenes não me exalarão bom cheiro. 
E ainda que me ofereçais holocaustos, ofertas de alimentos, não me agradarei delas; nem atentarei para as ofertas pacíficas de vossos animais gordos. 
Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos; porque não ouvirei as melodias das tuas violas. 
Corra, porém, o juízo como as águas, e a justiça como o ribeiro impetuoso." (Amós 5:21-24).

14. Isaías e Amós viveram numa época em que os dois pequenos reinos hebreus estavam espremidos entre o gigantismo babilônico, a leste, e o poderio egípcio, ao sul. Havia uma nostalgia dos tempos em que as pessoas viviam mais unidas, sem desigualdades sociais tão profundas quanto no século VIII a.C.  
  
15. Os pobres foram atraídos pela pregação dos profetas contra essa religião do Templo, burocrática e sem esperança, praticada por israelitas ricos e orgulhosos. Como porta-vozes da incompreensão das pessoas com relação aos novos tempos, os profetas registraram, pela primeira vez com tamanha intensidade, o grito dos oprimidos e dos injustiçados.     
  
Bibliografia consultada: PINSKY, Jaime. Os profetas sociais e o Deus da cidadania. In: PINSKY, Carla B. & PINSKY, Jaime (orgs.). História da Cidadania. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 15-27.

«Acreditavam os Gregos em seus Mitos?», de Paul Veyne

domingo, 24 de março de 2019

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Como Imaginaram Nosso Mundo...

sexta-feira, 22 de março de 2019

Em 1900, imaginaram que no século XXI as casas seriam construídas por máquinas, os bombeiros voariam para resgatar vítimas de incêndio e nós flutuaríamos sobre as águas num passeio de domingo. 

Confira isso e muito mais na reportagem da National Geographic.  

Ramsés II e Hórus

quinta-feira, 21 de março de 2019

A escultura acima foi feita em um único bloco de granito, entre 1293 e 1185 a.C., e atualmente encontra-se no Museu Egípcio. Mede 2,30 metros e foi escavada na antiga cidade de Tanis, capital do Egito durante as XXI e XXII dinastias. 

Quando essa obra foi encontrada, faltava-lhe o rosto do falcão, que foi feito em outra pedra. Felizmente, esse rosto também foi encontrado, separado do conjunto. A personagem agachada é Ramsés II, da XIX dinastia, faraó entre 1279 e 1213 a.C. Seu reinado foi um dos mais prestigiosos e longos da história do antigo Egito, destacando-se por diversas campanhas militares vitoriosas. 

A cor dessa escultura é escura, próxima do ocre; é lisa, mas com linhas cavadas na pedra. Há um pássaro em pé, de grande estatura, e à sua frente está Ramsés. Ele tem uma das mãos no queixo e a outra segura um pequeno cajado. 

O falcão representava Hórus, "deus dos Céus", uma das mais importantes divindades egípcias: era um deus solar, filho de Osíris e Ísis, considerado a manifestação do poder do Sol. Hórus era representado pelo falcão, pois sua vista é tão poderosa que ele é o único animal que pode fixar o Sol. Na escultura em questão, o falcão tem um aspecto sereno e adota uma postura segura, sólida e equilibrada. Ao representar um deus, encarnas seus poderes e qualidades. 

Ramsés, por sua vez, é representado agachado e com um dedo encostado na boca, como se fosse uma criança, o que denota certa fragilidade. Ele leva à cabeça uma coroa ornada com um disco solar e leva um caniço na mão, símbolo do poder real. 

A associação entre o faraó e o falcão, representação do deus Hórus, expressa a proteção para o faraó e confere um caráter divino à monarquia. A relação estreita de Ramsés com Hórus parece evidenciar a natureza divina e solar do faraó, dando a entender que a divindade governava por meio do rei. A coroa de disco solar afirma ainda mais a identidade entre o jovem rei e o falcão. 

A intenção do escultor pode ter sido registrar que o faraó governou protegido pelo deus Hórus. Isso legitimava seu governo e transmitia a ideia de que o faraó era representante de Hórus na Terra, sua imagem, reflexo e encarnação.

VICENTINO, Cláudio & VICENTINO, José Bruno. Olhares da História: Brasil e Mundo. Colaboração de Severio Lavorato Júnior. 1. ed. São Paulo: Scipione, 2016,  p. 327.   

Um Estudioso em Seus Estudos

segunda-feira, 18 de março de 2019

A scholar in his study, óleo sobre tela de Thomas Wyck (1616-1677).

«A Epopeia de Gilgamesh»

sábado, 16 de março de 2019

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Cidadania, uma Introdução

sexta-feira, 15 de março de 2019

1. Ser cidadão é ter direitos civis (liberdades individuais), direitos políticos (direito ao voto, direito de se candidatar a cargos eletivos) e direitos sociais (assistência social, etc.). 

2. A cidadania é um conceito histórico - seu sentido varia no tempo e no espaço. Mesmo dentro de cada Estado-nacional o conceito e a prática da cidadania se alteraram ao longo dos últimos dois ou três séculos. 
  
3. Ainda há países em que os candidatos a presidente devem pertencer a determinada religião (Carlos Menem, na Argentina, só se candidatou após se converter ao catolicismo). Em outros países, nem o filho de imigrantes tem direito a voto.    

4. A partir disso, nota-se que não há uma sequência única, determinista e necessária para a evolução da cidadania em todos os países. Foi no século XX que a Alemanha nazista impôs o trabalho escravo a minorias do III Reich.   

5. A cidadania propriamente dita é fruto das revoluções burguesas - especialmente a americana e a francesa do século XVIII. Estas revoluções representaram o ponto alto de processos de lutas que instauraram a cidadania.

6. A partir das revoluções americana e francesa, todos os tipos de luta foram travados para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania. Na sua acepção mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da cidadania.      

7. Os avanços da cidadania, se têm a ver com a riqueza do país e a própria divisão de riquezas, dependem também da luta e das reivindicações, da ação concreta dos indivíduos.       
  
Bibliografia consultada: PINSKY, Carla B. & PINSKY, Jaime (orgs.). História da Cidadania. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 9-13.

Aspectos da Civilização Mesopotâmica

quinta-feira, 14 de março de 2019

Leoa cravada de flechas (cena de caçada), alto relevo do Império Neoassírio (c. 650 a.C.). Localização: British Museum, Londres.

A ciência. A invenção da escrita no IV milênio a.C. permitiu aos habitantes do antigo Oriente Médio expor seus conhecimentos à posteridade. Os sistemas de cálculo empregues nos textos mais antigos contêm elementos do sistema sexagesimal. Como 60 tem muitos divisores, o sistema simplificava muito os cálculos. Apesar de se expressar em termos práticos, a matemática babilônica era essencialmente teórica. Em relação à astrologia, alcançou grande importância no I milênio a.C. Por volta de 500 a.C., os babilônios podiam predizer os movimentos da lua e os eclipses com grande precisão. Os mesopotâmicos também se destacaram na medicina, e chegaram a diagnosticar centenas de doenças.  

A vida cotidiana. Nas escavações arqueológicas, a maior parte dos achados consiste em objetos despejados pelos habitantes de um lugar, peças partidas de cerâmica, ossos de animais, etc. A maior parte destes desperdícios provinham das atividades domésticas, mas desconhecem-se ainda muitos aspectos da vida diária. Ainda assim, os achados arqueológicos por vezes nos trazem importantes informações sobre a vida de mulheres e crianças.    
  
Bibliografia consultada: ROAF, Michael. Grandes impérios e civilizações - Mesopotâmia. Tradução: Videlec, S.L. Madri: Del Prado, 1997.

#15Fatos A Mesopotâmia

segunda-feira, 11 de março de 2019

Mosaico encontrado nos túmulos reais de Ur, feito de lápis-lazúli.

1. Nos últimos 10 mil anos, o clima e a vegetação do Oriente Médio foram bastante parecidos com os atuais. É verdade que, a partir de então, a intervenção humana, a abusiva exploração dos pastos, a desflorestação e a modificação dos cursos naturais de água modificaram crescentemente o meio. A disponibilidade permanente de água (principalmente através dos rios Tigre e Eufrates) criou habitats especialmente favoráveis para os seres humanos dos primeiros tempos.  

2. O mais antigo povoado da Mesopotâmia (atual Iraque) data da primeira metade do VII milênio a.C. e é contemporâneo de Çatal Hüyük. Os povos dessa época cultivavam trigo, cevada, lentilhas e ervilhas; criavam vacas, ovelhas, cabras, porcos e cães. Nas extensas planícies do norte da Mesopotâmia provavelmente já se empregava o gado vacum para puxar o arado. Entre 4 mil e 3 mil a.C., houve uma explosão urbana na Mesopotâmia, destacando-se a região sul nesse processo. No IV milênio a.C., Uruk (Erech na Bíblia) era a cidade mesopotâmica mais importante, sendo que os primeiros vestígios de escrita foram descobertos em Eanna, um dos dois centros mais importantes da cidade. 
  
3. A Mesopotâmia do sul, no Dinástico inicial (2900-2334 a.C.), estava dividida em pequenas cidades-estado, cada qual como o seu próprio deus de guarda. Ao final desse período, as autoridades seculares e religiosas em diferentes em cada cidade, mas até ao final da civilização mesopotâmica, os soberanos seculares exerciam o poder como representantes dos deuses. Foi Sharrum-kin (Sargão) de Acad, que destronou Lugalzagesi, o rei de Uruk, por volta de 2334 a.C., que assinalou o final do Dinástico inicial na Mesopotâmia. O declínio do império comercial de Uruk final deixou um vazio cultural que foi preenchido pela cultura proto-elamita, a leste; pela cultura de Jemdet Nasr, a sul. Contudo, o centro da civilização permaneceu no sul da Mesopotâmia.      

4. Na tradição mesopotâmica posterior, as conquistas dos reis acádios marcam uma ruptura total com o período Dinástico prematuro sumério anterior. Pela primeira vez na história, toda a Mesopotâmia se uniu sob um único soberano e o império acádio foi o modelo que inspirou os reis subsequentes. Com o fim do império acádio, Gudea tornou-se o mais famoso guti integrante da dinastia que reinou em Lagash. Utuhegal (2019-2013 a.C.), rei de Uruk, pôs fim ao domínio dos guti e nomeou Ur-Nammu, seu filho, governador militar da cidade. Ur-Nammu sucedeu ao seu pai e fundou a Terceira Dinastia de Ur. O monumento mais impressionante do seu reinado foi o zigurate de Ur.     

5. Ur-Nammu foi sucedido por seu filho, Shulgi, que governou por 47 anos e criou uma administração unificada da Suméria e da Acádia, expandindo seus domínios até Asur e Susa. Com seus sucessores, o império foi encolhendo, até que em 2004 a.C. os elamitas invadiram Ur. Nessa época, amorreus e hurritas já estavam no Oriente Médio,e estenderam seus domínios nas décadas seguintes. A figura de maior destaque do início do II milênio a.C. foi o amorreu Hamurabi, rei da Babilônia entre 1792 e 1750 a.C. Na segunda metade de seu reinado, ele chegou a dominar a maior parte da Mesopotâmia e acabou com a independência de muitas cidades. Seu maior legado foi o primeiro código de leis escritas da história. Saiba mais aqui.     

6. O filho e sucessor de Hamurabi foi Samsu-iluna. Em 1742, Rim-Sim II de Larsa, um rival do Sul, ocupou Nippur. Samsu-iluna desviou as águas do Eufrates ao sul da Babilônia para forçar o rival a se render, o que produziu uma crise econômica na região a partir de 1739 a.C. Ur acabou arrasada e Rim-Sin rendeu-se em 1737 a.C. Vinte anos depois, Nippur também foi abandonada. Assim como as demais cidades mais meridionais, esteve desabitada durante vários séculos.      

7. No último século do Primeiro Império Babilônico não aparecem menções de campanhas militares nos nomes dos anos. No entanto, durante o reinado de Ammisaduqa (1646-1626 a.C.) foram produzidos dois importantes documentos, o édito de Ammisaduqa e as tabuinhas de Vênus. Estas últimas são uma coleção de observações sobre o nascimento e o ocaso do planeta Vênus. No nono ano do reinado de Samsu-iluna os cassitas foram mencionados pela primeira vez. No início do século XVI a.C., mais especificamente em 1595 a.C., o rei hitita Mursilis desceu pelo Eufrates e saqueou a Babilônia, pondo fim à primeira dinastia babilônica. Após esse episódio, a cidade caldeia entrou num período obscuro de 150 anos, do qual pouco se sabe.   

8. Após Mursilis destruir Alepo e pôr fim à dinastia de Hamurabi na Babilônia, um cunhado o assassinou e se apoderou do trono. Pouco tempo depois, divergências internas e as incursões dos hurritas reduziram o reino hitita aos territórios que rodeavam a sua capital. O Oriente Médio entrou em decadência. A zona dividiu-se em seis potências principais: o Egito, situado no sudoeste; o reino hurrita de Mittani, que controlava o Levante e o norte da Mesopotâmia (incluindo a Assíria e as terras do leste do Tigre); hititas e arzawa governavam o centro e o oeste da Anatólia, respectivamente; os cassitas governavam o sul da Mesopotâmia; os elamitas governavam o Irã.   

9. Com o colapso do reino de Mittani, os hititas passaram a controlar a zona ocidental deste império. Libertados do domínio de Mittani, os assírios estabeleceram-se em termos de igualdade com o Egito, o Hatti e a Babilônia. Em relação aos cassitas, governaram a Babilônia de finais do século XV a.C. até ao século XII a.C. Ao que parece, os reis cassitas adotaram o modo de vida babilônico e, nesse sentido, o período cassita representou uma continuação da antiga civilização da Babilônia.        

10. Nas primeiras décadas do século XII a.C., ocorreram amplos movimentos de povos na região mediterrânica. Os egípcios foram ameaçados por terra e por mar por uma coligação de tribos, a que chamaram de "povos do mar". Merneptah (1244-1214 a.C.) e Ramsés III (1194-1163 a.C.) expulsaram-nos. O Egito, portanto, resistiu, mas Hatti, Ugarit e muitas cidades do Levante e da Grécia caíram. O reino hitita provavelmente foi destruído pelos mushki ou frígios, ainda que no Levante as cidades hititas de Carchemish e de Malatya tenham sobrevivido como centros independentes. No final do século XII a.C., o domínio egípcio sobre a Palestina terminou, e os Peleset estabeleceram ali, dando o seu nome ao país (Filisteia ou Palestina).  

11. Quase nessa mesma época, os hebreus surgiram nessa região, e é possível que suas tribos tenham se estabelecido pacificamente entre os cananeus antes de expulsá-los. Outros povos semitas foram chegando das estepes desérticas. O rei assírio Shalmaneser I lutou contra os ahlamu, que, em 1100 a.C., os seus coetâneos associavam com os arameus. Em diversas ocasiões, a sua língua, de escrita alfabética, substituiu a escrita cuneiforme babilônica e assíria.

12. Os assírios revelaram-se uma força militar irresistível nos sucessivos reinados de Adad-nirari I, Shalmaneser I e Tukulti-Ninurta I (1243-1207 a.C.). Shalmaneser atacou e derrotou o reino de Uruadri (Urartu). Por volta de 1165 a.C., Shutruk-Nahhunte tornou-se rei de Elão e inaugurou um período de grandeza para o seu povo. Ele teria atravessado o rio Ulai e capturado 700 cidades. Seu filho e sucessor, Kutir-Nahhunte, invadiu a Babilônia e pôs fim à dinastia cassita. Mais tarde, Nabucodonosor I (1125-1104 a.C.) levou seu exército aos arredores de Susa e derrotou os elamitas, que ficaram nas sombras pelos próximos três séculos. Os êxitos de Nabucodonosor não se repetiram no norte, onde se bateu com os assírios, primeiro sob Assur-resh-ishi (1132-1115 a.C.) e depois com Tihlath-pileser I (1114-1076 a.C.).   

13. O Oriente Médio, o Egito e a Grécia estiveram mergulhados num período obscuro entre 1200 a.C. e 900 a.C. A Assíria, embora debilitada, sobreviveu aos turbulentos acontecimentos do final do II milênio a.C. e a linha de sucessão de reis assírios não foi interrompida. O núcleo do reino assírio sobreviveu mais ou menos intacto às repetidas incursões aramaicas. Foi a partir de Adad-nirari II (911-891 a.C.), rei que restabeleceu um sólido poder no seu território, que a sorte assíria começou a mudar. Seu filho, Tukulti-Ninurta II (890-884 a.C.), consolidou os êxitos do seu pai e empreendeu campanhas no leste e no nordeste. Seu filho, Assurnasirpal II (883-859 a.C.), empreendeu diversas campanhas, com destaque na zona ocidental, na Síria e no Levante, que foram englobadas ao império assírio.    

14. A rápida expansão assíria no século IX a.C. foi seguida de uma fase de estagnação na primeira metade do século VIII a.C. Este período de debilidade terminou com a ascensão de Tiglath-pileser III (744-727 a.C.). Ao final de seu reinado, a lista das regiões tributárias incluía os estados neo-hititas e aramaicos da Síria e do Tauro, as cidades fenícias do litoral, Israel, Judeia, Gaza, Amon, Moab, Edom e as tribos árabes do interior. Seu filho, Shalmaneser V (726-722 a.C.) foi coroado rei da Babilônia e da Assíria; destruiu o reino de Israel e deportou os israelitas. Foi sucedido por Sargão II, que derrotou Urartu. Seu sucessor foi Senaqueribe, coroado em 704 a.C. Na sequência, Esarhaddon (680-669 a.C.), que derrotou o faraó Taharqa (690-664 a.C.), em 672 a.C. No final de 669 a.C., Assurbaníbal assumiu o trono assírio e concluiu a reconquista do Egito, que passou a ser governado por Necho I, e tornou-se tributário da Assíria. No século VII a.C., os assírios ainda conquistaram Sídon e Tiro.  
  
15. Após a morte do rei assírio Assurbanípal, e de Kandalanu, rei da Babilônia, em 627 a.C. a.C., surgiu um dirigente babilônico de origem incerta que adotou o nome de Nabopolassar. A 23 de novembro de 626 a.C. ele transformou-se no fundador da dinastia neobabilônica ou caldeia. Durante dez anos, a Babilônia foi cenário de combates entre babilônios e assírios. Em 614 a.C., Assur foi tomada. Nabopolassar fez então um tratado com os medos, e ambos sitiaram Nínive, que caiu após um cerco de três meses. Em 610 a.C., os egípcios foram em socorro aos assírios, derrotando e assassinando o rei Josias, de Judá (609 a.C.); a seguir, estabeleceram-se em Carquemis. Em 605 a.C., os babilônios, liderados por Nabucodonosor, derrotaram os egípcios em Hama, expulsando-os da região. No mesmo ano, Nabopolassar morreu e Nabucodonosor assumiu o trono. Em 597 a.C., conquistou Jerusalém, levando os judeus para o cativeiro. Nabucodonosor morreu em 562 a.C., sendo sucedido por Amel-Marduque (561-560 a.C.), Nergal-sar-usur (559-556 a.C.), Labasi-Marduque (556 a.C.) e, finalmente, Nabonido (555-539 a.C.), o governante nominal da Babilônia por ocasião da conquista medo-persa, em 539 a.C.       
  
Bibliografia consultada: ROAF, Michael. Grandes impérios e civilizações - Mesopotâmia. Tradução: Videlec, S.L. Madri: Del Prado, 1997. 

Uma Final Olímpica na Guerra Fria

domingo, 10 de março de 2019

Imagine uma final olímpica de basquetebol eletrizante. A seleção norte-americana de basquete mostrava-se invicta em todas as partidas desde Berlim, em 1936, quando essa modalidade desportiva foi introduzidas nos Jogos Olímpicos de Verão. Mas, na final das Olimpíadas de Munique, em 1972, entre Estados Unidos e União Soviética, tudo mudou. 

Desde o início da partida, disputada no a 10 de setembro, a invencibilidade estadunidense parecia estar indo por água abaixo: no primeiro tempo, os soviéticos venceram por 26 a 21. No segundo tempo, a diferença de cinco pontos foi ampliada para dez. Foi apenas nos últimos 6 minutos de jogo que a partida tornou-se dramática, com a seleção americana reduzindo a diferença de pontos. Faltando apenas 10 segundos para o fim, os soviéticos estavam apenas com um ponto à frente - 49 a 48 - mas com a posse de bola. 

Após uma disputa pela bola, o jogador americano Doug Collins sofreu uma falta. Faltavam apenas três segundos para o fim e ele precisava converter um lance livre para o empate e o outro para colocar os Estados Unidos à frente. Ele encestou os dois. 

Os soviéticos colocaram a bola em jogo rapidamente, buscando um atacante. Dois segundos mais se passaram, e então o árbitro brasileiro Renato Righetto interrompeu a partida por um pedido do banco soviético. A comissão técnica do país socialista exigia a devolução do tempo extra de 3 segundos. O juiz brasileiro deu apenas um. 

O jogo foi novamente interrompido. William Jones, o secretário britânico da Fiba, interveio e ordenou que o relógio fosse recuado para restar 3 segundos. Até hoje os norte-americanos sustentam que Jones não tinha autoridade para tomar essa decisão. 

O jogo foi retomado, e os soviéticos falharam ao tentar um longo passe. Novamente, os atletas norte-americanos comemoravam o ouro, acreditando que tinham vencido o sétimo título olímpico seguido. No entanto, o relógio do ginásio ainda estava sendo ajustado quando o relógio foi retomado. Após intensas reclamações dos soviéticos, os 3 segundos foram restabelecidos novamente. 

O desconforto era geral, após tanta confusão. Os norte-americanos, nervosos e com receio de conceder uma falta técnica, não fizeram uma marcação cerrada sobre Ivan Edeshko, no fundo da quadra soviética. O passe longo desse atleta encontrou no garrafão do outro lado da quadra o jogador Alexander Belov, que evitou Jim Forbes e Kevin Joyce e subiu para encestar. A seguir, correu loucamente em direção aos seus companheiros. 51 a 50 em favor da União Soviética. 

O protesto norte-americano foi imediato. Os dirigentes entraram com uma apelação contra o resultado que, depois de horas de análise dos juízes, foi negada. A União Soviética era a campeã olímpica, uma catástrofe nacional para os americanos. 

A indignação dos norte-americanos foi tamanha que eles se recusaram a aceitar a medalha de prata. Pela primeira vez na história olímpica, o segundo lugar no pódio ficou vazio e o conjunto de medalhas de prata não pôde ser entregue. "O time americano ficou irritado, mas sem razão. Era a Guerra Fria. Os americanos, à parte seu natural orgulho e amor pela pátria, não queriam perder, sequer admitiam perder. Não queriam perder em qualquer esporte, muito menos no basquetebol", declarou Ivan Edeshko, autor do passe para a vitória dos soviéticos. 

Alexander Belov, o autor da cesta da vitória soviética, morreu seis anos após a Olimpíada, aos 26 anos. Sergei Belov, reconhecido mais tarde como o melhor jogador europeu de basquete de todos os tempos, foi o primeiro jogador internacional a ser eleito para o Hall da fama desse esporte. Ele faleceu em 2013. 

Com informações de Opera Mundi.

Submissão (2004)

sexta-feira, 8 de março de 2019

Esse curta-metragem foi produzido e dirigido em 2004 por Theo van Gogh. Trata de vários abusos cometidos contra as mulheres em países islâmicos. Por tamanha ousadia, Theo foi assassinado em público por um muçulmano holandês-marroquino. 

Neste Dia Internacional da Mulher, eu compartilho esse vídeo, a título de solidariedade em relação a todas as mulheres que foram e são vítimas de violência pelo mundo.

#15Reflexões O Fracasso Marxista

quarta-feira, 6 de março de 2019

Cidadãos de Berlim Ocidental em frente ao Portão de Brandemburgo, no dia 10 de novembro de 1989. O colapso do Socialismo Real foi comemorado como uma nova Primavera dos Povos no Leste Europeu. 

1. O marxismo, em certo período, assemelhou-se ao calvinismo da industrialização competitiva e coletiva: a fé austera mas persistente que guiaria as populações através do deserto, por meio de árduos esforços e sacrifícios que só seriam recompensados muito mais tarde. Também se assemelhava a um modelo alternativo que oferecia mais justiça em troca de menos liberdade.  

2. O marxismo foi o primeiro sistema de fé formalmente secular a tornar-se uma religião mundial e uma ideologia de Estado para certos governos, alguns de grande importância e um deles um superpoder. Por longo tempo, o marxismo constituiu uma alternativa para o liberalismo. 
  
3. De modo geral, as sociedades humanas mantêm a ordem através da coerção e da superstição. Antes do milagre da Sociedade Civil, as sociedades humanas viviam habitualmente sob sistemas coercivos e supersticiosos. Então, surpreendentemente, nações de comerciantes, como os holandeses e os ingleses, organizados em formas de governo relativamente liberais, derrotaram repetidamente nações dominadas por aristocracias marciais e suntuárias.    

4. Graças ao Iluminismo, o medo e a falsidade foram substituídos pelo consentimento e pela verdade. Mas, a tentativa, em 1789, de implementar as ideias iluministas não conduziu a uma ordem racional e consensual sobre a Terra. Levou primeiramente ao Terror e depois à ditadura de Napoleão. A explicação de tal fracasso é que a sociedade humana não se presta à simples aplicação de modelos pré-fabricados pelo pensamento puro. Isso é utopia. A estrutura social tem suas razões, sobre as quais a mente nada sabe.   

5. O marxismo foi, talvez, a mais elaborada, sistemática e bem orquestrada de todas as tentativas de interpretar a Revolução Francesa e tirar lições dela. Certamente, mostrou-se como a mais influente. A nova visão atraía a todos os que detestavam a crueldade, a desigualdade e a desumanidade da nova ordem (a capitalista). Essa doutrina tinha um apelo muito especial nas regiões mais atrasadas do mundo, incluindo partes da Europa.     

6. Assim, olhando retrospectivamente, é tentador dizer que o marxismo era feito sob medida para o espírito russo. Capacitava-o a superar sua tensão obsessiva entre tendências ocidentalizantes e seus anseios místicos, messiânicos e populistas. Por outro lado, o marxismo pretendia ser científico, sendo aplicável ao homem e à sociedade. Dentro dos limites de uma única visão, podia-se satisfazer a aspiração messiânica por um mundo inteiramente incorruptível, uma sociedade harmônica, um homem contente consigo mesmo, e um desejo de alcançar o nível científico do Ocidente.      

7. O sistema terminou em uma falência melancólica, principalmente porque, afinal, simplesmente não pôde competir técnica e economicamente com o Ocidente liberal, e perdeu as corridas armamentista e consumista. Diante da inquestionável derrota no grande desafio que foi a Guerra Fria, os líderes da primeira ideocracia secular do mundo decidiram-se pela abertura, e logo descobriram que, quisessem ou não (alguns queriam, outros não tinham certeza), não havia como deter ou limitar o processo sem usar métodos mais drásticos do que os que estavam dispostos a usar.     

8. Em 1991, nos estertores do Império Bolchevique, praticamente ninguém teve suficiente zelo ou lealdade para lutar pela ordem e pela própria fé. Com uma impressionante e terrível velocidade, a velha nomenklatura se transformou em capitalistas chauvinistas ou oportunistas. Nunca um navio naufragante foi abandonado com mais regozijo e unanimidade, nunca uma experiência foi condenada mais conclusivamente. Quando a liberalização chegou, e a adesão de fachada à fé deixou de ser obrigatória, houve um surpreendente e quase universal abandono da ideologia e uma desdenhosa indiferença em relação a ela.   

9. O marxismo foi abandonado sem nenhuma clara alternativa à vista. As pessoas preferiam o vácuo ao velho credo. Voltaram-se pra o zastoi do liberalismo. Por que, na primeira religião secular estabelecida do mundo, faltariam tão evidentemente a tenacidade, a capacidade de prosperar na adversidade, dos seus predecessores transcendentais? O que deu errado?        

10. Uma parte da explicação reside no coletivismo total e intransigente da versão marxista da salvação. O marxismo realmente promete a salvação total, mas não para os indivíduos, só para a totalidade da humanidade. Não tem praticamente nada a dizer a um indivíduo que sofra de angústia pessoal ou de alguma crise existencial, exceto, talvez, no máximo, estimulá-lo a abraçar a luta revolucionária em prol da humanidade.   

11. A grande fraqueza do marxismo provavelmente não é tanto a sua eliminação formal do transcendente da religião, mas a supersacralização do imanente. Spinosa ensinara que o mundo era uma unidade indivisível imprimida pelo divino, que o permeava simetricamente. Hegel acrescentara movimento histórico a essa visão, e o marxismo nasceu dessa fusão de ideias.  

12. O homem comum não suporta uma perpétua intoxicação com o sagrado, e prefere a comodidade do profano. Talvez tenha sido a ausência do profano que tornou tão fraco o contato do marxismo com o coração humano, que afinal o aniquilou. Dizem que a sociedade não pode viver sem o sagrado: talvez ela precise pelo menos igualmente do profano. 

13. Sacralizando tudo na vida social, principalmente o trabalho e a esfera econômica, o marxismo privou o homem de um refúgio para onde escapar durante os períodos de tédio ou de zelo decrescente. Esses períodos são inevitáveis, uma vez que poucos indivíduos e talvez nenhuma comunidade possam manter-se indefinidamente em uma condição de extrema exaltação.    

14. Não é assim no marxismo. Os ícones dessa fé representam a sacralidade do trabalho e do trabalhador. O realismo socialista era inteiramente corpo, mas absolutamente não-erótico. O trabalho, não o amor, era glorificado. Tudo isso pode explicar o impressionante fato de que o terror generalizado da Era Stalin não abalou a crença; pelo contrário, confirmou-a. O assassinato em massa não solapou a convicção na religião secular do marxismo, mas a penúria dos anos Brezhnev teve esse efeito.   
  
15. Em suma, a unificação das hierarquias política, econômica e ideológica em uma única pirâmide burocrática não é desastrosa apenas para a atuação prática, aparentemente também é catastrófica para o espírito social. O marxismo privou o homem do contraste necessário entre o celeste e o terrestre, e da possibilidade de uma fuga para o terrestre, quando o celeste estivesse temporariamente em baixa. O mundo do "Socialismo Real" não suportou o fardo de tanta sacralidade.    
  
Bibliografia consultada: GELLNER, Ernest. Condições da Liberdade - a sociedade civil e seus rivais. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 33-43. 

#15Fatos A China entre 506-221 a.C.

segunda-feira, 4 de março de 2019

Qin Shihuang, rei do estado de Qin entre 247-221 a.C. e imperador da China unificada entre 221-210 a.C. Ilustração de c. 1850.

1. Lutas fratricidas transformaram a configuração política da China entre 771 e 506 a.C. Em 506 a.C., um anel extremo formado por sete grandes estados circundava um grupo central de estados pequenos.  Um desses estados, Ch'in, era culturalmente atrasado, assim como os Chou, antes do século XI a.C.  

2. Todas as sete grandes potências periféricas estavam sob ameaça umas das outras. Isso deu aos governos de cada uma delas um forte incentivo para serem militarmente eficientes e, portanto, também eficientes administrativa e economicamente. A chave da eficiência era a autocracia, mas os governantes dos estados de Ch'i e Chin se deparavam com uma estrutura aristocrática tradicional que havia se fortalecido ao longo do tempo. 
  
3. Em 506 a.C., o estado ex-bárbaro de Ch'u foi atacado e devastado por Wu. Em seguida, Wu impôs sua suserania a Yüeh, mas falhou a atacar Ch'i. Assim, Ch'u se restabeleceu em 488-481 a.C. Em 473 a.C., Wu foi conquistado e anexado por Yüeh.   

4. Além de repelir o ataque de Wu, Ch'i também sobreviveu a uma luta interna entre a nobreza aristocrática e a Coroa. A Coroa saiu vitoriosa. Por outro lado, entre 497-490 a.C., uma guerra civil entre facções rivais da nobreza local enfraqueceu a Coroa em Chin.    

5. Numa segunda guerra civil (455-453 a.C.), uma das quatro casas nobres em competição foi aniquilada. As outras três dividiram de facto o estado Chin entre si. Wei, Han e Chao, os três estados-sucessores de Chin, foram reconhecidos de jure em 403 a.C. A fraqueza desses estados somou-se à complexidade da divisão dos territórios, de modo que o beneficiário final da divisão de Chin foi o vizinho a leste desses estados-sucessores, Ch'in.    

6. Após a divisão de Chin, o Príncipe Wen de Wei (446-397 a.C.) atraiu para sua administração homens capazes, de origem social humilde. Essa foi sua forma de compensar as pequenas dimensões do território de seu estado, sua escassa população e seus parcos recursos. O consequente aumento da eficiência militar de Wei levou o Príncipe Wen, em 419 a.C., a tentar a hegemonia. No entanto, Wei foi detido, de forma inconclusiva, em 419-370 a.C., e, de forma decisiva, em 354-340 a.C. Quem se beneficiou com o fracasso de Wei foi seu vizinho ocidental, Ch'in.     

7. No estado Ch'in, durante os reinados do Príncipe Hien (384-361 a.C.) e de seu filho e sucessor, o Príncipe Hiao (361-338 a.C.), houve a mais completa das reorganizações do período. O Príncipe Hiao foi auxiliado por Shang Yang de 356 a.C. até a morte do monarca, em 338 a.C. Em Ch'in, Shang Yang exterminou a estrutura de sociedade baseada em status hereditário; abriu as carreiras civil e militar ao talento; incrementou a agricultura, tornando a terra um bem negociável (propriedade privada).   

8. O reinado do Príncipe Hiao e o trabalho de Shang Yang foram contemporâneos do reinado de Filipe II na Macedônia (359-336 a.C.). Ambos os estados buscaram se fortalecer através da militarização dos camponeses. As relações de Ch'in e da Macedônia com o resto da sociedade a que pertenciam respectivamente eram semelhantes, tanto em termos geográficos quanto sociais. 

9. Ch'in só unificou o Mundo Chinês entre 230 e 221 a.C. Ao contrário da unificação da Grécia pela Macedônia, obra temporária até que Roma consumou o projeto de unidade no século II a.C., a unificação da China pelo estado Ch'in foi conclusiva.       

10. No Mundo Chinês dos séculos V-IV a.C., as radicais modificações administrativas foram acompanhadas de modificações econômicas, sociais e tecnológicas, militares e civis. O efeito cumulativo de todas essas modificações simultâneas foi a dissolução da estrutura tradicional chinesa. Esta foi destruída pela série de guerras que começou em 333 a.C. e terminou em 221 a.C.  

11. A principal modificação econômica foi que a terra tornou-se comerciável. Consequentemente, a produção agrícola aumentou, embora o abismo entre ricos e pobres também. Além disso, surgiu um proletariado não possuidor de terras. Abriu-se carreiras administrativas e militares a profissionais, com base única no talento. 

12. Nessa época também surgiu uma nova classe de educadores, os quais ofereciam um treinamento vocacional a aspirantes a empregos públicos. Confúcio tornou-se um bem-sucedido educador, depois de fracassar como administrador. Outra classe que surgiu foi a dos mercadores, profissionais que sobreviveram e prosperaram apesar da desaprovação do governo. 

13. Entre as principais inovações tecnológicas civis contavam-se a abertura de canais e a emissão de cunhagem metálica. No século IV a.C., fora introduzido na China o arado puxado por bois e o bronze foi substituído pelo ferro como material para implementos agrícolas, ferramentas e armas.   

14. A unificação política da China em 221 a.C. foi imposta pela força militar, mas provou ser durável. Anteriormente, a obra do primeiro unificador dessa nação havia sido desfeita várias vezes, ao longo de 22 séculos.  
  
15. A unificação política da China em 221 a.C. foi viável porque porque sua unificação cultural voluntária já era de fato consumado antes de o próprio estado Ch'in iniciar sua carreira de conquista militar. É por isso que a façanha de Ch'in sobreviveu à rápida extinção do próprio estado de Ch'in.   
  
Bibliografia consultada: TOYNBEE, Arnold. A Humanidade e a Mãe-Terra - Uma História Narrativa do Mundo. Tradução de Helena Maria C. M. Pereira e Alzira S. da Rocha. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p. 269-282.

Doc. 'Um Fio de Esperança'

sábado, 2 de março de 2019