“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

«Pensamentos», de Marco Aurélio

sábado, 31 de dezembro de 2011



O imperador Marco Aurélio (161-180) legou à filosofia ocidental uma grande joia do estoicismo: a obra Pensamentos (ou Meditações). É nela que podemos ler as belas citações abaixo:

Qual é a duração da vida do homem? Um ponto no espaço. A substância? Variável. As sensações? Obscuras. O que é o seu corpo? Putrefação. Sua alma? Um torvelinho. Seu destino? Um enigma. Sua reputação? Duvidosa. Tudo o que provém de seu corpo é como água da torrente, e o que dimana de sua alma é como um sonho, como o humo. Sua vida é um combate perpétuo, um descanso em terra estrangeira, e sua fama depois da morte um esquecimento absoluto. Qual é a única coisa que pode facilitar sua viagem nesse mundo? A Filosofia. Ela consiste em velar pelo gênio que reside em seu interior, de modo que não receba nem as afrontas, nem as feridas, e que não se deixe arrastar pelos prazeres nem pelas dores, que não faça nada fortuitamente, que não empregue os embustes nem a hipocrisia, que nunca conte com que o outro faça ou deixe de fazer, que aceite tudo o que aconteça ou o que corresponda como procedente da mesma origem e, por fim, que aguarde a morte com paciência, como uma dissolução dos elementos que constituem o organismo de todo ser animado. Se estes elementos não sofrem dano algum ao transformar-se perpetuamente de um estado ao outro, porque te inspiram desconfiança ou temor? Tudo se encontra regido pela Natureza, logo não há nenhum perigo.
MARCO AURÉLIO, Pensamentos, Livro II.17.

Se alguém me consegue mostrar e provar que estou errado no pensamento ou na ação, eu mudo de bom grado. Eu procuro a verdade, o que ainda nunca magoou ninguém. Só a persistência na auto-ilusão e na ignorância é que magoa. - IDEM, VI.21.


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- Leia AQUI a obra completa de Marco Aurélio.
- Ver a biografia McLYNN, Frank. Marco Aurélio: guerreiro, soldado e imperador. Lisboa: Civilização, 2010.

A reabertura do mausoléu da família Scipioni

sábado, 24 de dezembro de 2011


Era a notícia que faltava para terminarmos o ano "com chave de ouro": o mausoléu de uma das famílias mais tradicionais da Roma Antiga será reaberto à visitação pública no próximo dia 27. Ele já estava fechado há 20 anos.

O maior representante desta família foi Cipião, o Africano, (em latim, Publius Cornelius Scipio Africanus), célebre pela atuação durante as guerras púnicas, nas quais derrotou o invasor Aníbal de Cartago, no século III a. C. O heroi romano, contudo, não foi enterrado ali. Acusado de ter recebido suborno, deixou Roma e nunca mais voltou. Diz-se que passou seus últimos em sua propriedade em Litermum (perto de Nápoles), e que antes de morrer pediu que seu corpo ficasse aí, não na Roma ingrata. Seu pedido foi atendido e seu túmulo ainda existia em Litermum, segundo o historiador romano Tito Livio. "Pátria ingrata, não te deixarei nem meus ossos", dizia seu epitáfio.

O monumento funerário, composto por uma série de galerias subterrâneas de dois metros de altura, com elegantes sarcófagos, está localizado junto à Porta di San Sebastiano, a algumas centenas de metros das Termas de Caracalla, um dos locais mais fascinantes da parte histórica de Roma.

O túmulo foi descoberto por acaso, em 1780, por dois religiosos, proprietários de um vinhedo. Os trabalhos recentes de restauração, no valor de 1,3 milhão de euros, foram financiados pela prefeitura de Roma e começaram em 2008.


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Veja o vídeo: http://veja.abril.com.br/multimidia/video/mausoleu-da-familia-scipioni-reabre-em-roma

A queda do Império Romano

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011


A sua voz era fraca,
O seu andar era lento,
os seus olhos escavados.
A sua face estava caída
e a fome tinha gasto os seus membros.
Os seus ombros fracos mal conseguem
apoiar o seu escudo não polido.
O seu capacete torto mostra os seus
cabelos grisalhos e a lança que ela
carrega não passa de ferrugem.
Claudiano, De bello Gildonico, Livro XV.





Não estará seguro aquele que te esquecer.
Que possa eu louvar-te ainda que o sol se torne escuro.
Pois contar as glórias de Roma é como contar
as estrelas do céu.
Rutílio Namaciano (séc. V)

O tema sempre será apaixonante. Os antigos já debatiam-se com a questão. Além de Rutílio, Boécio (c. 480-524 ou 525) não concebia o fim da civilização romana, embora servisse na corte do rei bárbaro Teodorico, o grande. Desde Gibbon e sua colossal obra no século XVIII, até hoje, a historiografia se debruça sobre as causas da queda do maior império de todos os tempos. Aliás, são de Gibbon as palavras abaixo:

Enquanto esse grande organismo [o Império Romano] era invadido pela violência sem freios ou minado pela lenta decadência, uma religião pura e humilde foi brandamente se insinuando na mente dos homens, crescendo no silêncio e na obscuridade; da oposição tirou ela novo vigor para finalmente erguer a bandeira triunfante da Cruz por sobre as ruínas do Capitólio.
GIBBON, E. Os cristãos e a queda de Roma. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012, p. 7.

Enfim, são múltiplas as visões sobre o fenômeno, e a posição de Gibbon é devidamente refutada na minha dissertação de mestrado. Seguindo na linha de Gibbon, Arther Ferrill e Bryan Ward-Perkins (autores, respectivamente, de A queda do Império Romano - a explicação militar e de A queda de Roma e o fim da civilizaçãodefendem que o desaparecimento político do Estado romano representou o fim de sua civilização. Por outro lado, historiadores que seguem a tendência inaugurada por Peter Brown (criador do termo Antiguidade Tardiadestacam as permanências e transformações da cultura clássica a partir do contato com o cristianismo. Finalmente, destaco uma discussão histórico-filosófica que talvez esteja no meio termo - O fim do mundo antigo, do historiador italiano Santo Mazzarino.

Como prova de que séculos de investigações não esgotaram o tema, recentemente foi lançado um livro muito interessante sobre o assunto:

GOLDSWORTHY, A. O fim do Império Romano - o lento declínio da superpotência. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010.

Adrian Goldsworthy já escreveu vários livros sobre a civilização romana - com destaque para a História Militar - e nesta obra defende as guerras civis e a instabilidade política como a principal causa da extinção política do Império. Um quadro panorâmico sobre o Baixo Império, e um texto tremendamente bem escrito! Ele busca aproximar a História do grande público, sem perder o rigor científico.


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- Imagem: detalhe do quadro O saque de Roma pelos visigodos em 24 de agosto de 410, de Joseph-Noel Sylvestre (1847-1926).
-Leia o artigo O fim do mundo antigo: uma discussão historiográfica, de Gilvan V. da Silva, na Mirabilia.
- Leia o artigo El fim del Imperio Romano de Occidente, de Manuel Muñoz García, na Tempora Magazine.
- Assista: The fall of the Roman Empire (1964), do diretor: Anthony Mann. Vale a pena também ver o documentário Império Romano - o último imperador.

Uma História do Cristianismo (BBC)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011


"A história do cristianismo tem sido um incessante renascimento de um encontro com Jesus Cristo, o Filho de Deus ressuscitado. Para alguns, como as Igrejas Ortodoxa e oriental, os encontros têm sido feitos através de um ritual, tradicional ou intimamente místico. Já para os católicos ocidentais, por meio da obediência à Igreja. Para as igrejas protestantes, através da Bíblia. E é a variedade que é tão marcante na jornada do cristianismo." 
Diarmaid MacCulloch

O documentário A history of christianity está dividido em seis partes:

01 – O cristianismo primitivo

02 - Catolicismo - a imprevisível ascensão de Roma

03 - Ortodoxia - do Império ao Império

04 - Reforma - o indivíduo diante de Deus

05 - Protestantismo - a explosão evangélica

06 - Deus no banco dos réus

A série foi transmitida originalmente pela BBC Four. O Professor Diarmaid MacCulloch – um dos maiores historiadores vivos do mundo – revela as origens do cristianismo e explora o que significa ser cristão. O objetivo da BBC era produzir uma série ‘divisora de águas’ que examinasse as origens do Cristianismo e a relevância da fé no mundo atual. O professor de História da Igreja na St. Cross College Oxford, Diarmaid MacCulloch, considera a evolução da fé cristã e suas quatro formas principais: ortodoxa, cristianismo oriental, catolicismo ocidental e o protestantismo.

O historiador que apresenta a série declara-se apenas "um amigo sincero do cristianismo", e em certas partes deixa transparecer o seu ceticismo. Mas, no geral, a visão é bem equilibrada. Portanto, trata-se de um documentário a ser visto.

«Fabíola», do Cardeal Wiseman

quarta-feira, 16 de novembro de 2011


Baixe essa obra gratuitamente aqui.

Tenho a sorte de ser orientado por um professor versátil. Para me ajudar na árdua tarefa de desenvolver a minha dissertação sobre a cristianização do exército e a política imperial, ele sugeriu-me um romance escrito no século XIX:

CARDEAL WISEMAN. Fabíola ou A Igreja das Catacumbas. Tradução de Leyguarda Ferreira. Lisboa: João Romano Torres, 1969.

Após empreender uma verdadeira peregrinação por Lisboa e, especialmente, pelo Bairro Alto, encontrei-o num sebo que em 2014 completará 100 anos, a Livraria Barateira, Lda. 

[NOTA: Caso queira adquirir uma edição impressa, acesse a Estante Virtual]

Logo de início, Gentil Marques, o autor do prefácio, diz que o que impulsionou o Cardeal Nicholas Wiseman (1802-1865) foi o amor pelo tema. Isso condiz com o espírito desse sevilhano que, desde criança, "amava as flores, o céu e a verdade". Permanece um mistério como o autor, homem extremamente sobrecarregado pelas atividades do seu ministério, conseguiu levar a cabo a missão de escrever esse excelente romance. Tudo isso deve contagiar o leitor: é animador saber que A Igreja das catacumbas (como Fabíola também é conhecida) não foi escrita por interesses financeiros ou quaisquer outros, mas tão-somente pelo amor!

Posto isso, vamos ao enredo. A estória se passa em Roma, no início do século IV d.C., durante a última grande onda de perseguição aos cristãos. Essa perseguição foi a promovida por Diocleciano e seus colegas tetrarcas entre 303 e 311 (só para constar, a 1ª dessas "ondas" ocorreu sob Décio, entre 249 e 251, e a 2ª, sob Valeriano, entre 257 e 260). Logo no 1º capítulo já ficamos extasiados com o enorme exemplo de fé do jovem Pancratius, que recebera o exercício de desenvolver a frase "o verdadeiro filósofo deve estar sempre disposto a morrer pela verdade." Seguindo suas convicções, mudou a palavra "filósofo" por "cristão", e "verdade" por "fé". Um colega pagão incomodou-se e procurou-o para uma luta, após a aula. Ao ver que Pancratius não cederia, insultou-o e agrediu-o. A seguir, o professor chegou e estava pronto para punir o agressor. Contudo, demonstrando um genuíno espírito cristão, Pancratius insistiu para que o colega petulante não fosse castigado. Ao relatar o episódio em casa, afirmou ter sido aquele um dia feliz porque havia vencido a luta do autocontrole!

Finalizo com uma citação, muito bem fundamentada historicamente (como todo o pano de fundo da obra, diga-se de passagem). A explicação sobre as causas das perseguições anticristãs no Império Romano não poderia ser melhor:

[...] O ódio ao cristianismo tinha origens políticas tanto como religiosas, pois era considerado contrário à prosperidade e à extensão do Império Romano, obedecendo a um poder invisível e espiritual. Os cristãos eram acusados de 'irreligiosi en Caesares', isto é, desleais para com o imperador, e isto bastava. A sua segurança dependia do espírito popular e qualquer demagogo ou fanático podia facilmente incitar contra eles os sentimentos de ódio e de vingança, sem que o seu procedimento, a sua atitude pacífica, conseguissem defendê-los das perseguições. (p. 76)

A sexualidade na Antiguidade

quinta-feira, 27 de outubro de 2011



Apesar do título, não pretendo aqui dissertar sobre um tema tão amplo. Em primeiro lugar, gostaria de abordar o tema da pederastia grega. Depois, farei uma sugestão de leitura.

Trataremos, portanto, do chamado "amor dório" (o amor homossexual masculino; o termo "pederastia" é mais adequado que "homossexualidade", conforme explicarei adiante). Esse relacionamento homoerótico teria partido de Esparta, cidade-Estado famosa por seus valentes guerreiros. Não se tratava, via de regra, de uma opção para a vida, no sentido de um modo de vida gay, efeminado. De outro modo, a tradição antiga é unânime em relacionar a prática da pederastia à bravura e à coragem - o mais velho se inclinava a "brilhar" diante de seu amado, e em ambos se reforçava este "amor da glória".

O soldado veterano - erastes - relacionava-se com o recruta, vários anos mais jovem e denominado eromenos. Na imagem do utensílio de cerâmica acima, o erastes é o homem de barba. Esse tema é recorrente nos vasos gregos e aparece também na literatura. A diferença etária entre os dois amantes estabelecia uma relação de desigualdade: o eraste era o heroi, ao qual o eromenos procuraria modelar-se. 

O relacionamento era bem mais amplo que o simples contato sexual e tinha a ver com a transmissão de experiência militar e social. De qualquer forma, a forma mais comum de prática sexual era o coito intercrural (entre as pernas), no qual o erastes normalmente desempenha o papel ativo. A prática seria simplesmente um "rito de passagem" (há, contudo, quem conteste duramente um suposto caráter religioso da prática, que para os outros seria uma marca solene do ingresso do efebo na  confraternidade masculina). Uma vez concluído o seu aprendizado, o eromenos seguia a vida normal de um soldado-cidadão. Acabava por se casar e constituía uma família. Mais tarde, ele próprio se tornaria um erastes. Em todo caso, eram homens viris, valentes guerreiros e sem traços efeminados. Travestis e transexuais não eram conhecidos. Por tudo isso, faz mais sentido falarmos em pederastia (paiderastía-as, "prática sexual de um homem maduro com um efebo ou rapazinho entre a puberdade e a adolescência") que em homossexualidade na Grécia Antiga.

A pederastia alcançou grande parte da Hélade (sobretudo em Esparta). Mas nem toda, e nem todos os indivíduos aderiram a ela. Ao contrário da crença do senso comum, a pederastia parece ausente da obra de Homero (Ganimedes é apenas um serviçal de Zeus e entre Aquiles e Pátroclo houve apenas uma amizade de infância e uma fraternidade de combate). Na Jônia, era rejeitada; Platão (c. 428 - c. 348 a.C.), nas Leis, refere-se a ela como antinatural ou contra naturam; Xenofonte (c. 430 - 355 a.C.), em seu Banquete, elogia veementemente o amor conjugal heterossexual; Aristóteles (384 - 322 a.C.) foi ainda mais longe: na Política disse que a melhor pólis deveria estar livre da pederastia. Sócrates (469 - 399 a.C.), a despeito do que se propala por aí, provavelmente não se rendeu ao "amor dório", como atesta ninguém menos que Alcibíades (450 - 404 a.C.). Este, que para muitos teria sido o amante de Sócrates, lamentou, no Banquete platônico, seu insucesso em conquistar o grande filósofo.

A "onda" pederasta também não permaneceu na mesma envergadura por todo o tempo; declinou ainda durante a vida de Platão. Mas é fato que arraigou-se profundamente em Atenas, como atestam os discursos de Fedro, Pausânias, Aristófanes, etc. presentes no Banquete de Platão. Essas personalidades da aristocracia ateniense não só defenderam com afinco o amor dório, como atacaram ferozmente o amor heterossexual, cujos praticantes seriam ou covardes, ou adúlteros, etc.

Tudo isso nos mostra, mais uma vez, o quão complexos são os fenômenos históricos. Devemos desconfiar fortemente de explicações generalizantes com relação ao tempo, ao espaço e aos indivíduos, sobretudo se tivermos em mente a multifacetada Grécia Antiga.


***

Dito isso, passo à sugestão do livro. Como estamos a tratar de um aspecto da sexualidade da Grécia Antiga, nada mais justo que uma sugestão de leitura que contemple também a Roma Antiga:

VEYNE, Paul. Sexo e poder em Roma. Rio de Janeiro: Record, 2008 (R$ 30).

Trata-se de mais um belo livro desse grande historiador de Roma. Ele uniu um texto leve e a uma descrição erudita sobre a moral, as práticas e as perversões da sexualidade e do erotismo em Roma. Fundamental para entendermos essa faceta da vida romana e, até hoje, tão marcante em nossa sociedade.

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-     Cf. MARROU, H.-I. História da Educação na Antiguidade. Tradução de Mário Leônidas Casanova. São Paulo: Herder, 1966, pp. 51-65 (cap. III - "Da pederastia como Educação"); e
Amor y sexo en la Grecia Antigua, de Juan Eslava Galan.
- As informações do Prof. Nougué foram extraídas a partir de Contra Impugnantes.
- Conheça mais sobre o tema da pederastia em Roma a partir do artigo Lex Scantina, a lei do sexo.

Sobre o Humanismo

sexta-feira, 16 de setembro de 2011


O Humanismo é um conceito interessante. Como se sabe, o conceito tem a ver com a centralidade do ser humano em uma escala de prioridades de estudos. Na Grécia antiga, Aristóteles (384-322 a.C.) apontava a razão para essa valorização do homem: "numerosas são as maravilhas do mundo, mas de todas a mais surpreendente é o homem" (Eth. Nic., 1141a, 20). Embora a Constituição da República Federativa do Brasil (art. 214, V) determine claramente que um dos objetivos do plano nacional de educação é a promoção humanística do país, pouco realmente se sabe sobre o humanismo. Como afirmou Eric J. Hobsbawm, a função do historiador é lembrar o que os demais esquecem; assim, volto-me às fontes para lembrar o sentido original de um conceito tão caro à civilização.

Dois nomes se destacam: Cipião (184 – 129 a.C.), o general que derrotou Aníbal, e Cícero (106 – 43 a.C.), o orador imortal. Para eles o Humanismo era um valor, qualidades que distinguiam os homens dos animais e de outros homens. Eram estas: piedade, respeito por valores morais, erudição e urbanidade. Estudos recentes acrescentam ainda à humanitas virtudes como bondade, perdão e clemência, por um lado e, por outro, cortesia, um vivo interesse nas literatura, arte e cultura, bem como um fino senso de humor e estilo (1). Decerto cada uma dessas qualidades mereceriam uma postagem em separado. Além disso, nunca é demais recordar que a moralidade e a ética cristã eram desconhecidas, não obstante os paralelos que podemos encontrar entre o estoicismo e a religião que professamos.

Entre muitos dos intelectuais da atualidade faltam os valores humanísticos. A pedagogia reinante na escola e na universidade tem grande parcela de culpa (2). Todos os quatro pilares estão em xeque. A erudição, por exemplo, é cada vez menos exigida. A servidão imposta pela nossa sociedade pitagórica, pela pedagogia hodierna, pela televisão (3), entre outros, atualiza a reflexão de Cássio Longino (c. 220 – 273 d.C.):

Da mesma maneira como certas crianças permanecem sempre anãs em virtude de seus membros tenros haverem permanecido em confinamento por demais estreito, assim também nossas frágeis mentes, restringidas pelos prejuízos e hábitos de uma justa servidão, se tornam incapazes de expandir-se ou atingir aquela grandeza bem proporcionada que admiramos nos antigos, os quais, vivendo sob um governo popular, escreviam com a mesma liberdade com que agiam.

Sem olvidar que não um, ou dois, mas que o conjunto dos valores são absolutamente essenciais a um intelectual, passo à urbanidade. Urbanidade deriva de urbano; logo, é relativo à ciuitas (essa noção se afirmava por oposição aos rustici, os camponeses, vistos então rudes e incivilizados). Urbanidade é uma qualidade daquele que é cortês, civilizado. Estritamente necessária, mas frequentemente negligenciada. Qual será a razão?

Embora as humanidades sejam disciplinas não-práticas que tratam do passado e que têm por meta a sabedoria, o Humanismo perpassa todas as áreas do conhecimento. Ou pelo menos deveria. Que a nossa meta seja a de alcançá-lo. E que comecemos por cultivar a urbanidade. Sempre. Sem ela será difícil convencer temos os outros valores, ou seja, que somos seres humanos no sentido mais elevado da palavra.



MARROU, H. - I. História da Educação na Antiguidade. São Paulo: Herder, 1969, p. 350.


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(1) JANSSEN, L. F. ´Superstitio´ and the persecution of the Christians. BRILL, p. 146.

(2) Sobre isso, leia uma entrevista.

(3) Cf. SARTORI, G. Homo videns - televisão e pós-pensamento. Lisboa: Terramar, 2000.

Imagem: Francesco Petrarca (1304-1374), humanista italiano.

Minha homenagem a um grande democrata

quarta-feira, 13 de julho de 2011


Hoje, 13 de julho de 2011, eu completo 24 anos. Quando tinha 15 e (quase) seis meses, um grande estadista despedia-se do Palácio do Planalto após governar o Brasil por um período que então correspondia a mais da metade do que tinha vivido (1994-2002). Este ex-presidente é o Doutor Fernando Henrique Cardoso, que recentemente completou 80 anos.

Muito já se falou sobre este importante político da História recente brasileira. Possui muitos detratores, alguns admiradores e mesmo alguns que procuram "apagá-lo" por vergonha de sua "herança maldita" (lamentavelmente, a maior parte destes pertencem ao seu próprio partido, o PSDB). Não pretendo aqui fazer um balanço histórico do seu governo. Quero apenas registar o que ele representou - e representa - para mim, como líder de uma nação.

Em um país onde a referência intelectual é tão escassa - não temos, por exemplo, nenhum vencedor do Prémio Nobel - o Doutor Fernando Henrique era um exemplo de filósofo na governação (embora seja sociólogo). A sua obra A arte da política - a história que vivi, é o exemplo mais concreto disso. Quando governou o país, sofreu uma das oposições mais implacáveis que algum líder de nossa nação alguma vez recebeu (provavelmente a única excepção seja Getúlio Vargas). Mesmo assim, manteve-se como um democrata exemplar. Admiro a fleuma dele. Afinal, teve que lidar com imbecis que eram contra tudo o que partia do governo, mesmo que fosse de extremo interesse dos brasileiros (um exemplo é a Lei de Responsabilidade Fiscal, que o ex-ministro petista Antônio Palocci admitiu que o seu partido errou ao tentar derrubá-la no Congresso).

Quando se avizinhava o término do seu mandato e as eleições de 2002, manteve-se como chefe de Estado e de governo; não tornou-se um cabo eleitoral para fazer o seu sucessor. Foi por medo de que acontecesse o contrário que os seus detratores tentaram derrubar o projeto da reeleição no congresso. O que a História viria a mostrar foi que estes mesmos infelizes acabaram por usar a máquina do governo para irem se perpetuando no poder...

Como todos sabem, seu partido saiu derrotado nas eleições. Com uma grandeza republicana poucas vezes vista em nos trópicos, o presidente não só reconheceu prontamente a derrota como preparou a transição e apoiou a constituição do novo governo. Poucos sabem mas pelo menos parte de sua equipa econômica continuou a colaborar com o novo governo no ano de 2003 (ver a entrevista de FHC para a Veja disponível no youtube). Lembro-me também que a pedido do gabinete de transição, aceitou enviar um carregamento de petróleo para a Venezuela do "Poderoso chefão" Hugo Chávez, um inimigo declarado da democracia e sempre cortejado pelo PT. Enfim, para Fernando Henrique os interesses da nação sempre estiveram à frente dos seus objetivos ideológicos ou partidários.

Ao se retirar do governo, não abandonou a vida pública. Contudo, é o único dos ex-presidentes vivos que não voltaram a disputar eleições. Como ele mesmo disse, fez isso para forjar a figura do ex-presidente. Em 2008 foi com uma dramática compunção que apareceu em público para lamentar a perda da sua grande companheira, a dona Ruth Cardoso, antropóloga que conhecera ainda nos tempos de estudante da USP. Mesmo assim continua firme à frente do Instituto que leva o seu nome e está sempre a promover debates e atividades de interesses públicos.

A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, escreveu por ocasião do seu 80º aniversário:

“Em seus 80 anos há muitas características do senhor Fernando Henrique Cardoso a homenagear.
O acadêmico inovador, o político habilidoso, o ministro-arquiteto de um plano duradouro de saída da hiperinflação e o presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica.
Mas quero aqui destacar também o democrata. O espírito do jovem que lutou pelos seus ideais, que perduram até os dias de hoje.
Esse espírito, no homem público, traduziu-se na crença do diálogo como força motriz da política e foi essencial para a consolidaçãoo da democracia brasileira em seus oito anos de mandato.
Fernando Henrique foi o primeiro presidente eleito desde Juscelino Kubitschek a dar posse a um sucessor oposicionista igualmente eleito.
Não escondo que nos últimos anos tivemos e mantemos opiniões diferentes, mas, justamente por isso, maior é minha admiraçãoo por sua abertura ao confronto franco e respeitoso de ideias.
Querido presidente, meus parabéns e um afetuoso abraço!”

Poderia elencar uma série de outras virtudes deste nobre intelectual. Mas a minha admiração por ele pode ser sintetizada nessas poucas palavras. Muito obrigado, Fernando Henrique, pelo referencial de líder intelectual que forneceu-me ainda na adolescência. O mundo e o Brasil, sobretudo, precisam de líderes como o senhor.

«Os erros da liberdade»

quarta-feira, 1 de junho de 2011

No dia em que completo um ano que colei grau como bacharel em História, deixo esssa preciosa sugestão de leitura:


GRIMAL, Pierre. Os erros da liberdade. São Paulo: Papirus, 1990.

Deveria ser uma leitura obrigatória a todo amante da cultura clássica.

Eis a sinopse:


A liberdade ou a morte? Dilema enganoso, responde Grimal. A verdadeira liberdade só se realiza plenamente na morte. De onde vem então o mito da liberdade, portador de esperanças que acarretam massacres? Aqui são narrados seu nascimento e a emergência de sua definição até sua acepção metafísica, passando por seu ambíguo avatar político.

«A amizade no mundo clássico», de D. Konstan

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Na licenciatura, o então Prof. Me. André Pirola (hoje doutor pela afamada PUC-SP) lançou uma campanha para nos incentivar a adquirir bons livros. Ele primeiro nos ofertava uma fotocópia da capa de algum livro importante para a nossa formação. Em seguida nos apresentava a obra e o autor para nos motivar a trocar a fotocópia pelo livro. Dou prosseguimento à ideia com um livro que conheci ontem: A amizade no mundo clássico, de David Konstan. O facto de ter conhecido a obra ontem mostra que sou simultaneamente divulgador e adepto da campanha.


Publicado pela editora Odysseus (São Paulo, 2005), contém 292 páginas e seu preço varia entre R$ 25 e 35 (em Portugal custa pouco mais de 20 euros). Pelo exame prévio que fiz, constatei que o autor baseia-se em farta documentação primária produzida desde os filósofos da Grécia Antiga até os autores cristãos da Antiguidade Tardia.

Por fim, cito a sinopse do livro:

A exaustiva investigação que o professor da Brown University, David Konstan, empreendeu sobre as obras literárias da Antiguidade revelou vários aspectos da amizade cultivada pelo homem do mundo clássico. Imprescindível para historiadores e antropólogos, a obra proporciona deleite ao leitor interessado em investigar a história e o desenvolvimento de uma instituição preciosa ainda nos dias de hoje: a amizade.

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Leia o tratado Da amizade, de Cícero. Clique AQUI.

«Não sou rei, sou César!»

quarta-feira, 4 de maio de 2011


Enquanto prossigo sem tempo para redigir uma postagem mais elaborada, deixo a indicação de uma excelente série cujo título inspirou-me quando fui "batizar" este blog.

Sou César, documentário apresentado na fantástica TV Escola, apresenta a vida de Júlio César e dos imperadores Otávio Augusto, Nero, Adriano, Constantino e Justiniano. Podemos enquadrá-lo no gênero biográfico, ainda que no fundo os realizadores tenham tencionado dar uma visão panorâmica da formação, do auge e do fim do Império Romano.

Embora sem grande dinamicidade e representações, a série conta com várias análises de historiadores contemporâneos e citações de fontes primárias. Para aqueles que andam sem ânimo para ler legendas ou queiram apresentar os vídeos para alunos do Ensino Básico, ressalto que o documentário é dublado.


Júlio César: "Não sou rei, sou César!"


Augusto, o primeiro dos imperadores


Nero, o poder e a loucura


Adriano, por dentro da muralha


Constantino, carregando a cruz


Justiniano, o último dos romanos

Adoráveis Cleópatras

quarta-feira, 23 de março de 2011


Dentre as mulheres que marcaram a História, talvez uma das mais lembradas seja Cleópatra VII (à direita), a última representante da dinastia dos Ptolomeus, no Egito. Esta dinastia surgiu com Ptolomeu, general macedônio que após a morte de Alexandre assenhorou-se do país dos faraós.

Longe de ser extraordinariamente bonita, era contudo espirituosa, inteligente, simpática, uma linguista. A fórmula infalível para conquistar grandes generais e

líderes políticos de sua época, como Júlio César (100 - 44 a.C.) e Marco António (83 - 30 a.C.). Recomendo a biografia e os documentários indicados ao final deste post.

Outra "Cleópatra" - Elizabeth Taylor - atriz que interpretou a famosa rainha no filme de 1963, morreu hoje, aos 79 anos. Segundo o crítico Pedro Butcher, a "Liz" Taylor "se enquadra entre as maiores estrelas da época de ouro do cinema, ao lado de Audrey Hepburn e Marilyn Monroe, por exemplo." Taylor era lindíssima e Cleópatra, "apenas normal" (no máximo); aquela aventurou-se em oito casamentos enquanto esta envolveu-se amorosamente com dois homens, apenas. Por isso e muito mais, o filme é muito criticado pelos "puristas". Mas, como sabemos, todo filme é uma representação artística e a sua principal contribuição à História é a de instigar a curiosidade. Quanto a isto o filme protagonizado pela citada britânica merece ser reconhecido com louvor.

Este blog foi inaugurado com uma homenagem a dois homens. Já era tempo de duas mulheres receberem minha singela deferência. A História foi laureada com suas "adoráveis Cleópatras."


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- Confira uma das última biografias de Cleópatra AQUI.
- Doc. Cleópatra, rainha do Egito:

A Casa das virgens vestais foi reaberta

segunda-feira, 21 de março de 2011


Roma tem mais uma atração para os turistas em busca de tesouros da Antiguidade. A capital italiana abriu para visitação a Casa das Virgens Vestais, construção anexa ao Forum Romano, que esteve fechada por 20 anos, após longas obras de recuperação. Agora, os visitantes podem caminhar pelo amplo jardim da construção e apreciar de perto as estátuas de bronze, dedicadas a divindades romanas.
O sítio arqueológico faz parte do mais novo itinerário turístico, pelo Monte Palatino, que inclui também o Templo de Vesta. Este conjunto arquitetônico, conhecido também como Atrium Vestae, é um dos mais antigos da capital italiana, com a construção iniciada por volta do século V a.C. Nele se venerava Vesta, a deusa romana do fogo e do lar. A função das seis virgens que viviam no templo era cuidar para que o fogo sagrado de Vesta nunca se apagasse. As vestais eram filhas de famílias nobres da cidade, escolhidas ainda crianças para o ofício. A casa foi reconstruída após o incêndio de Nero, no ano 64 d.C, e restaurada durante o período do imperador Septimus Severus, entre 193 d.C. e 211 d.C.
Detalhe: a restauração custou 19 milhões de euros!
Outro símbolo da Antiguidade romana que em breve passará por obras é o Coliseu. A restauração, orçada inicialmente em 25 milhões de euros (cerca de R$ 57 milhões), será custeada por uma fabricante italiana de sapatos de luxo Tod's. A obra deve começar no final de 2011 e avançar por dois anos e meio. A arena, do ano 80 d.C., atrai 6 milhões de turistas anualmente, mas sua estrutura está afetada pela poluição do pesado trânsito romano e pelas vibrações de uma linha do metrô que passa nas proximidades. O monumento deve permanecer aberto à visitação durante o período de reformas.
In: O Globo

Cícero, o gozador

quarta-feira, 16 de março de 2011


Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), foi um dos oradores mais brilhantes da Roma antiga. Além de gênio imbatível da arte da eloquência, foi escritor, filósofo, advogado e político. Enquanto me graduava, encantava-me ao ler suas Catilinárias e sua Carta do Bom Administrador Público, manual no qual defende que o governante deve ter por objetivo máximo tornar seus subordinados as pessoas mais felizes do mundo.

Sem dúvida, Cícero é um dos personagens mais famosos da Antiguidade. No entanto, há uma faceta desse célebre romano que é menos conhecida - Cícero era um gozador. Daqueles que perdem um amigo mas que não perdem a piada.

Até então, não concebia os políticos como bem-humorados. Do contrário, eles deixam-nos bem-humorados (pois devemos rir para não chorar... rsrs). Por isso, não esperava nunca que Cícero fosse para lá de engraçado. Ora, ele não só era hilário - chegava mesmo a ser um escarnecedor, um chato daqueles que fazem "ferver" o sangue de qualquer um. Por tudo isso, foi criticado pelo biógrafo Plutarco, para quem Cícero passava dos limites. Se usasse os motejos tão-somente como recurso retórico, tudo bem; mas seu humor corrosivo era usado para ofender as pessoas, indiscriminadamente. Ao fazer isso, atraiu muita antipatia para si.

Seguem abaixo alguns exemplos das chacotas de um homem que, para muitos, é a encarnação da seriedade romana.

I) UM SENIL NA MIRA

Lúcio Gélio, um dos senadores mais idosos, asseverou que, enquanto vivesse, César não repartiria o território da Campânia entre os seus soldados. "Esperemos", disparou Cícero, "o adiamento solicitado não será longo."

II) HOMENS DE BRINCO

Diziam que um certo Otávio descendia de africanos. Numa sessão do tribunal, ele disse que não conseguia ouvir a Cícero. "No entanto", replicou Cícero, "não lhe falta buraco na orelha."

Explicação:
Os romanos consideravam bárbaros os homens que usavam brincos. Dentre aqueles que possuíam tal prática estavam os africanos que não tinham adotado a cultura latina.

III) O TEU PASSADO TE CONDENA!

Especulava-se que Marcos Gélio descendia de escravos. Em certa ocasião, enquanto lia cartas com voz clara e forte no Senado, Cícero comentou: "Não é de admirar; ele também é um dos que gritavam por liberdade."

IV) EDITAIS

Quando exerceu a ditadura em Roma (a ditadura era então uma magistratura com previsão legal que nada tem a ver com a acepção moderna de ditadura), Sila promulgara muitos editais de proscrição e morte. Fausto, seu filho, vivera uma vida desregrada que o levou à dissipação da herança. Endividado, precisou lançar editais para leiloar o que lhe restava. Cícero afirmou então que preferia os editais do filho aos do pai.

V) UM ADVOGADO DESPREPARADO

Público Consta, que pretendia ser advogado sem, contudo, possuir instrução ou talento, foi chamado por Cícero para depor num processo. Como alegava nada saber, foi humilhado por Cícero: "Quiçá cuidas estar sendo inquirido sobre questões de Direito?"

VI) PERGUNTA O QUE QUER, OUVE O QUE NÃO QUER...

Segundo alguns, o pai de Cícero era um simples trabalhador braçal (Plutarco reconhece que incertezas envolvem as origens de Cícero). Ciente disso, Metelo Nepos o incomodava persistentemente numa disputa com a pergunta: "Quem é teu pai?" 

Ora, diziam que a mãe do tal Metelo era adúltera e que ele era inconstante. A resposta de Cícero foi então arrasadora: "Essa pergunta, no teu caso, tua mãe tornou um bocado difícil de responder."

VII) CENSOR BEBERRÃO

Lúcio Cota, um beberrão, exercia o cargo de censor quando Cícero, candidato ao consulado, teve sede. Enquanto ele se saciava, os amigos lhe cercaram. "Tendes razão", disse ele, "de temer que se zangue comigo o censor por beber água."

VIII) NEM CÉSAR FOI POUPADO


Após derrotar as forças de Pompeu em Farsalos (48 a.C.), algumas propriedades de líderes pompeianos, que já estavam mortos ou em luta contra César, foram leiloadas. Apenas um pequeno grupo de privilegiados teve direito a pechinchas nesses leilões. Dentre eles estava Servília, amante de César de longa data. Mais ou menos nessa época, César teve um caso com uma das filhas de Servília, Tércia ou "Terceira", e supostamente com o consentimento da mãe. 

Ora, Cícero não perdeu a oportunidade. Segundo ele, as pessoas não percebiam que Servília estava comprando terrenos valiosos por apenas uma fração de seu preço verdadeiro porque o preço havia sido reduzido em um "Tércio". (Suetônio, César, 50; Cf. GOLDSWORTHY, Adrian. César - A Vida de um Soberano. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2011, p. 591).

IX) PERDOEM-NOS AS FEIAS...

Ao cruzar com Vocônio, que andava ao lado de três filhas muito feias, Cícero exclamou:

Contra as ordens de Febo procriou.

Explicação:
O verso, de autor desconhecido, alude a Laio, rei de Tebas, a quem Apolo proibira a procriação. 

X) ESCÁRNIO VENENOSO

Um jovem, suspeito de ter colocado veneno em um bolo oferecido ao pai, cheio de ousadia, ameaçava ridicularizar a Cícero. Este disse-lhe: "Antes isso que um dos teus bolos."

XI) MAIS BEM-HUMORADO QUE TUDO

Metelo Nepos certa vez disse que nosso ácido orador condenara mais pessoas depondo como testemunha do que salvara atuando como advogado. Ao ouvir isso, Cícero replicou: "Concordo; sou mais fidedigno que eloquente."


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Fonte Primária:
Plutarco, Vidas
Cícero, 26 e 27.

Alexandre, o Grande (homossexual?)

terça-feira, 15 de março de 2011


Estimados,

Antes da habitual postagem de quarta-feira, indico-lhes uma entrevista com um especialista na vida de Alexandre, o Grande (356-323 a.C.). Chama-se Alex B. de Menezes e, na conversa com o Jô Soares, confirmou a suspeita que tinha desde que li Plutarco: não existe prova documental que sustente a ideia atual de que o conquistador macedônio era homossexual.

Naturalmente, há vários outros detalhes revelados pelo historiador Alex que tornam a sua entrevista muito interessante.

Disponível AQUI.

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O túmulo de Filipe II, pai de Alexandre, foi descoberto - Veja.

Imperadores vencidos pela sabedoria

quarta-feira, 9 de março de 2011

Há um relato famoso envolvendo Diógenes de Sínope (c. 412 - c. 323 a.C.) e Alexandre, o Grande (356 - 323 a.C.). Conta-se que o filósofo cínico - um tipo excêntrico que cobria-se de andrajos e morava em um barril - estava a bronzear-se quando o conquistador macedônio parou à sua frente. Este lhe disse:


- Sou Alexandre, aquele que conquistou todas as terras. Peça-me o que quiser, e eu lhe darei. Palácios, terras, honrarias, escravos ou tesouros jamais vistos. O que queres, ó sábio?

Diógenes levantou os olhos e respondeu:

- Apenas não tires de mim o que não podes dar-me.

Notando que interpunha-se entre o filósofo e o sol, Alexandre, claramente derrotado pela sabedoria daquele homem, retirou-se e disse aos seus:

- Se não fosse Alexandre, queria ser Diógenes.

No mundo romano, dois episódios que envolveram o imperador Adriano (117-138 d.C.) (ver imagem) são menos conhecidos. O primeiro deles teve a ver com uma mulher, simples cidadã romana que vivia em uma aldeia, algures no império. Não muito preocupada com a pressa do princeps, um autêntico monarca-viajante, ela lhe fez um pedido. "Não tenho tempo", foi o que ouviu. "Então deixe de ser imperador", ripostou a destemida mulher. Irritado, mas sem opção, Adriano parou e conferiu-lhe uma audiência. Um século e meio após a República romana sucumbir, a noção de res publica ainda sobrevivia, e o princeps ainda se portava como o primeiro cidadão.

Em outra ocasião, tomou uma caneta e furou o olho de um escravo em um rompante de cólera. Passado o furor, carregado de culpa, Adriano pediu ao desafortunado servo que escolhesse uma recompensa pela estrago. A vítima permaneceu calada. Como o soberano pressionava-o, ele retorquiu:

- Só quero recuperar minha vista.

A História possui muitos casos nos quais a sabedoria venceu a soberba e a inteligência suplantou a força. Em suma, ninguém está minimamente seguro se não buscar a sabedoria. É pena que nem sempre a História faça justiça a esses campeões da sapientia. Como o pobre homem de Eclesiastes (9, 14-16):

Houve uma pequena cidade em que havia poucos homens, e veio contra ela um grande rei, e a cercou e levantou contra ela grandes baluartes;
E encontrou-se nela um sábio pobre, que livrou aquela cidade pela sua sabedoria, e ninguém se lembrava daquele pobre homem.
Então disse eu: Melhor é a sabedoria do que a força, ainda que a sabedoria do pobre foi desprezada, e as suas palavras não foram ouvidas.

Busquemos a sabedoria. Está em nossas mãos escolher em quem se espelhar - Diógenes ou Alexandre, a mulher e o escravo anónimo ou Adriano, o "pobre homem" ou o "grande rei." Nunca nos esqueçamos de que "as palavras dos sábios devem em silêncio ser ouvidas, mais do que o clamor do que domina entre os tolos" (Ecles. 9, 17).

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Fontes Primárias:
Diôgenes Laêrtius
Vidas e doutrinas de filósofos ilustres, tradução de Mário da Gama Kury, Brasília, EdUnB, 1977, Livro VI.
Díon Cássio
História de Roma, 69.6.3
Galeno
K.5.17
Bíblia Sagrada, Eclesiastes, cap. 9.

Alea jacta est!

quarta-feira, 2 de março de 2011

César, 1875, óleo sobre tela de Adolphe Yvon (1817-1893). A pintura ilustra o momento em que César teria cruzado o Rubicão. Foi quando ele declarou: Alea jacta est!

"Desejava ter cadáveres de dácios, e os tenho tido.
Desejava sentar-me em um lugar de paz, e me tenho sentado.
Desejava obter triunfos brilhantes, e assim tem sido.
Desejava obter todas as vantagens financeiras do primipilato, e as tenho obtido. Desejava contemplar a nudez das Ninfas, e as tenho visto." 
Primípilo anônimo do exército romano

Começo com duas homenagens. A primeira, obviamente, vai para o soldado acima. O exército que integrou foi um dos mais eficazes de toda a História. O conhecemos razoavelmente bem. Mas, infelizmente, não dispomos de maiores informações sobre a vida aventurosa do primípilo supracitado. Sabemos, no entanto, que foi um vencedor. Morreu plenamente realizado.

A segunda homenagem vai para o autor da citação abaixo:

"A democracia é tanto um valor quanto um instrumento político. Como um valor, é universal. Mas, como instrumento político, trata-se de um conceito que deve ser ajustado por país, de acordo com sua história, suas tradições e a mentalidade de seu povo."

O autor de tal declaração pode dizer, como poucos o poderiam sinceramente, que está feliz "por ser capaz de contribuir para tentar fazer do mundo um lugar melhor." Esse foi um dos maiores líderes mundiais do século passado - Mikhail Sergeyevich Gorbachev. Hoje ele completa 80 anos. Como é de conhecimento geral, Gorbachev contribuiu para dar cabo à Guerra Fria e à ditadura soviética. Fundou a Cruz Verde Internacional, a Fundação Gorbachev, o Fórum Político Mundial e o Encontro Internacional de Laureados com o Nobel da Paz. Continua ativo politicamente e por tudo isso e muito mais tem o seu lugar de honra garantido na História. Provavelmente será um imortal - como disse Samuel Butler (1835-1902), não se está realmente morto enquanto se for amplamente recordado.

Esses dois personagens ilustram bem as minhas áreas de interesse. Como historiador, interesso-me pela Antiguidade Clássica, e especialmente pelo exército romano. Como homem de meu tempo, sou um democrata. Portanto, esperem nesse blog textos, sugestões e discussões acerca dessas temáticas.

Como li uma vez em certa obra de Eduardo Galeano, a probabilidade que alguém leia algo que escrevemos é quase a mesma que leiam uma mensagem colocada em uma garrafa jogada ao mar. De qualquer forma,

A sorte foi lançada!

Leia uma entrevista do antigo líder soviético.