quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Historia magistra vitae est. Cícero (106-43 a.C.)
Em 1956, os missionários Jim Elliot, Pete Fleming, Ed McCully, Nate Saint e Roger Youderian foram violentamente assassinados por membros da tribo Waodani, no Equador.
Jamais nos esqueceremos do seu martírio.
Faleceu hoje, aos 96 anos, a rainha Elizabeth II. Ela ocupou o trono britânico por 70 anos e 214 dias, sendo o segundo reinado mais longevo da história, perdendo apenas para o francês Luís XIV (r. 1643-1715).
A peça A Man for All Seasons, de Robert Bolt, estreou em Londres em 1960 e, por várias razões, repetiu o sucesso em Nova York, no ano seguinte. Na época, a combinação de tolerância, indiferença religiosa e a generosa personalidade do papa João XXIII colocaram o catolicismo no centro das atenções. As plateias estavam prontas para a história de um mártir heroico consciencioso lutando contra o poder de um tirano, e Bolt lhes deu isso. De Paul Scofield, no papel de Thomas More, transpirava uma veemente integridade e uma presença impressionante - para não falar de sua voz irresistível.
Em 1966, a versão cinematográfica da peça, admiravelmente dirigida por Fred Zinnemann, correu o mundo, ganhou vários prêmios da Academia de Hollywood e popularizou o nome de More (outra vez interpretado por Paul Scofield). O filme dava ao espectador a confortável sensação de ficar sabendo tudo sobre More. Ele tornou-se um Abraão Lincoln católico, um ícone de pureza e de princípios capaz de provocar reverência e afeição. Porém, Bolt nos deu um More que a sua própria época mal reconheceria, um More escandaloso demais talvez para o próprio More.
Alguns erros e distorções do filme são concessões inofensivas ao seu conteúdo teatral, outros inferências plausíveis do Life of More escrita por seu genro, William Roper, cerca de vinte anos após a decapitação do prelado. Aquele que eventualmente traiu More, Richard Riche (John Hurt), compõe um vilão incrivelmente asqueroso (é verdade que, de fato, ele morreu rico, como barão, em 1567). Não há dúvidas de que Riche foi um carreirista e sem dúvida conquistou favores reais com o seu depoimento, mas o exame dos fragmentados registros históricos da época mostra que o papel verdadeiro de Riche foi muito mais ambíguo: o seu testemunho no julgamento de More foi muito menos malicioso.
O filme, da mesma forma, avilta Cromwell, cujo papel em toda a questão fica contudo menos claro. Outros erros históricos, embora abundantes, constituem uma aceitável licença dramática. Menos fácil é desculpar a idolatria de Bolt à personalidade de More. O filme adere ao argumento de Roper de que More se opunha ao então ministro da Justiça, o cardeal Thomas Wolsey (Orson Welles), inclusive dentro do Parlamento. Porém, evidências da época mostram que More não passava de um dócil servo de Wolsey. Ele contava com Wolsey para progredir, e nunca fez nada que ofendesse o cardeal, até que Wolsey caiu em desgraça por não conseguir a aceitação do papa para o divórcio do rei. O filme também silencia sobre o primeiro discurso de More no Parlamento como titular da Justiça, quando atacou o cardeal de forma cruel e vingativa.
O More de Bolt recusa-se a deixar que a filha Margaret se case com Roper até mesmo depois de o noivo renegar seu ligeiro flerte com o luteranismo (embora isso, quase com certeza, aconteceu após o seu casamento). De resto, o filme pinta um retrato açucarado da religião de More e do seu ódio insano contra os protestantes. O More histórico chegou a produzir centenas de páginas clamando de maneira ofensiva e polêmica pelo sangue dos protestantes. Quando algum herege era queimado, More exultava.
Em nenhum momento do filme aparece o More que continuou produzindo obras contra a heresia até mesmo quando o rei tentava negociar uma aliança com os protestantes. Os conselheiros do rei tiveram que fazer More desistir à força de suas ominosas exigências para que Henrique VIII exercesse o seu dever contra os hereges.
Em nenhum momento do filme aparece o More que queria ver o ódio que tinha aos hereges inscrito em seu próprio túmulo. E, a propósito, More não era um papista como o filme mostra. Ele achava que os papas haviam errado, que melhor que o papa seria um conselho geral de bispos, que esse conselho devia ter autoridade para depor o papa pelas razões que bem entendesse e que a Igreja podia até, talvez, passar sem papa.
Henrique VIII, monarca inglês de 1509 a 1547, era, sem dúvida, extremamente egoísta. Contudo, nem de longe foi o maníaco esbravejante retratado na obra de Zinnemann. Nos seus últimos anos de vida, incapaz de curar uma ferida na perna, ele perdia às vezes o autocontrole, e gritava com os outros. Quando frustrado, às vezes chorava. Mas, em público, especialmente na juventude, sabia ser viperino na sua astúcia. Henrique permaneceu amigo pessoal, até quase a morte, de muitos daqueles que destruiu - entre eles, Cromwell e o cardeal Thomas Wolsey.
O homem que não vendeu sua alma nos mostra um More que morreu heroicamente em nome da sua consciência. O filme extrai dessa consciência o conteúdo mais duvidoso e nos priva assim da tragédia - e da catarse - representada pelo verdadeiro Thomas More. Deixa-nos não purificados e pensativos, mas sim radiantes e confiantes de que qualquer um de nós teria votado a favor do herói. Na verdade, a maioria de nós teria seguido a família de More e prestado o juramento que ele se recusou a prestar. Também teríamos votado - talvez forçosamente - em favor da morte dele, para que a Inglaterra continuasse a prosperar sem ameaça de invasões estrangeiras ou de guerra civil.
Bibliografia consultada: CARNES, Mark C. (org.). Passado Imperfeito - a história no cinema. Tradução de José Guilherme Correa. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 70-73.