“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

O Espírito de Cruzada de Cortez

domingo, 31 de março de 2019

Estátua de Hernán Cortez pisando a cabeça de um ameríndio. Medellín, Espanha.

No alvorecer da Época Moderna, o frei Bartolomé de Olmedo, capelão da tropa de Hernán Cortez na conquista do México, encorajava os soldados a partir de apelos à difusão da “santa fé” e gritando-lhes que vencessem ou morressem em combate. O próprio estandarte de Cortez continha uma cruz no centro. Ao redor do símbolo, uma inscrição latina que, traduzida, era uma paráfrase do In hoc signo vinces (do sonho do imperador Constantino, no século IV): 

“Amigos, sigamos a cruz, e com fé neste símbolo devemos conquistar.”
  
Bibliografia consultada: TODOROV, T. A conquista da América - a questão do outro. Tradução de Beatriz P. Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 104.

#15Fatos A Escravidão na África

sexta-feira, 29 de março de 2019

1. A escravidão era disseminada e inata na sociedade africana, como era, naturalmente, o comércio de escravos. Os europeus simplesmente entraram nesse mercado já existente, e por séculos os africanos responderam ao aumento da demanda, fornecendo mais escravos. Não se deve aceitar a teoria de que os africanos foram compelidos a participar desse comércio infame.  

2. A escravidão era amplamente difundida na África (o que nada tem a ver com o subdesenvolvimento econômico da região), e seu crescimento foi muito independente do comércio atlântico. O comércio atlântico de escravos foi o resultado dessa escravidão interna. Seu impacto demográfico, no entanto, mesmo nos estágios iniciais foi significativo. 
  
3. A escravidão era difundida na África atlântica porque os escravos eram a única forma de propriedade privada que produzia rendimentos reconhecida nas leis africanas. Nesse sentido, foi a ausência de propriedade privada de terras que levou a escravidão a ser tão difundida na sociedade africana. Em contraste, nos sistemas legais europeus a terra era a principal forma de propriedade privada lucrativa, e a escravidão ocupava uma posição relativamente inferior.    

4. Observadores europeus nos séculos XVI e XVII estavam bem conscientes de que as sociedades africanas eram política e economicamente desiguais e que essas desigualdades refletiam-se nas estruturas sociais e legais. Mas, apesar de alguns reconhecerem a ausência da propriedade privada de terras, muitos transformaram os africanos em proprietários a despeito deles.    

5. Partindo desse cenário, a descrição das terras na África por europeus como pertencendo ao rei foi o modo mais comum para reconciliar a lei africana e o conceito de que a posse de terras era uma parte natural e essencial da civilização. Mas, na África, as pessoas é que eram taxadas em vez das terras, outra indicação da ausência de propriedade privada territorial.    

6. Sob certas premissas ideológicas, os reis podiam requerer o direito de taxar a partir do direito de conquista. As tradições do Congo, por exemplo, enfatizam que o fundador do Estado conquistou a população do país, e seus direitos para governá-los e taxá-los provêm desse fato, direitos partilhados com "capitães" designados por ele.     

7. Alguns viajantes mencionavam frequentemente os "nobres" ocasionalmente como "proprietários" de terras ou pelo menos exercendo controle sobre eles. Por exemplo, John Hawkins, ao descrever Serra Leoa em 1562-8, citou que os nobres "possuíam" terras, e todos os outros lhes pagavam um aluguel para poder utilizá-las. Mas, em Serra Leoa, como em outros lugares, o verdadeiro proprietário era o Estado, e os rendimentos auferidos eram na verdade encargos ou tributações estatais.   

8. Assim, a aparente propriedade privada, ou o que os historiadores especialistas no início da Europa moderna algumas vezes chamam de "grande propriedade", não tinham de modo algum essa característica. Em cada caso, os detentores de títulos e os que usufruíam dos rendimentos provenientes da propriedade dependiam dos grandes grupos corporativos, algumas vezes das linhagens, mas em geral do Estado, para suas remunerações.  

9. No Congo, um filho ou irmão do rei era frequentemente seu sucessor, mas a escolha final recaía em um grupo de eleitores depositários do Estado. Na África central, e também no Dongo, a eleição era definida por um grupo de funcionários. Em Benin, segundo testemunhas do século XVII, a sucessão era considerada hereditária, mas o acesso do governante ao trono precisava ser confirmado e ratificado por dois funcionários mais graduados. Um sistema semelhante era adotado em Warri.         

10. O pouco que se sabe sobre a ocupação de terras por camponeses nos séculos XVI e XVII na África sugere que aqueles que as cultivavam tinham direitos de explorá-la mas não de vendê-la, aliená-la ou arrendá-la. Assim, os africanos possuíam produtos advindos da terra, mas não a terra em si. Em Loango, por exemplo, os terrenos eram mantidos como uma propriedade comunitária e, para assegurar o direito de cultivá-los, só era preciso começar a cultivar terras desocupadas; se o cultivo fosse interrompido, o lavrador perdia os direitos.  

11. Se os africanos não eram proprietários de um fator de produção (a terra), eles poderiam possuir outro, o trabalho (o terceiro fator, o capital, era relativamente insignificante antes da Revolução Industrial). O casamento era outra instituição de dependência. Em meados do século XVII, o governante de Warri tinha um grande harém de esposas que produziam tecido para vender. Algo análogo ocorria em Ajudá. A riqueza na África, portanto, media-se pelas esposas, pois a poligamia indicava o prestígio e as esposas constituíam com frequência forças de trabalho. 

12. A escravidão era, possivelmente, o caminho mais importante para a riqueza privada geradora de recursos para os africanos. Portanto, não é surpreendente que fosse tão disseminada. Na prática, na África os escravos tinham mais utilidades do que os escravos europeus ou euro-americanos. Na Europa, as pessoas ricas que queriam investir em algo seguro e com retorno financeiro provavelmente comprariam terras. Na África, por outro lado, não existia propriedade privada da terra; assim, o último recurso era adquirir escravos. Como propriedade pessoal, eles poderiam ser herdados ou gerar riqueza. 

13. Os escravos africanos, em geral não recebiam um tratamento diferente dos camponeses agrícolas. Na África central, segundo um testemunho, eles possuíam liberdade relativa e eram postos em ampla variedade de empregos. No entanto, isso não significa que os escravos nunca recebessem o mesmo tipo de trabalho difícil, perigoso ou degradante dos escravos na Europa, embora na África frequentemente esse trabalho pudesse ser realizado com facilidade por pessoas livres a serviço do Estado.    

14. Os escravos como geradores de riqueza destacaram-se principalmente entre os julas e outros grupos comerciais islâmicos do oeste do Sudão e Senegâmbia. Outra utilização dos escravos, quase da mesma importância que essa (aumento e manutenção da fortuna particular), foi seu uso pela elite política para ampliar seu poder. Os poderosos impérios sudaneses confiavam muito nos exércitos e administrações de escravos para manter sob controle uma nobreza local ascendente e refratária. O desenvolvimento de um exército ou administração compostos de escravos ajudou na centralização do Império Songai e no Dongo. O recolhimento dos escravos em um lugar central conferiu grande poder aos reis do Congo, no final do século XV.  
  
15. Os escravos estavam em todas as partes da África atlântica, desempenhando todo tipo de tarefas. A importância da escravidão na África no desenvolvimento do comércio de escravos pode ser observada claramente na incrível velocidade com que o continente começou a exportá-los. De 1450 em diante, antes mesmo que os seus navios alcançassem o rio Senegal, os portugueses compravam escravos de caravanas na fronteira ao norte do posto de Arguim, estabelecendo relações duradouras com o comércio transaariano. Em suma, podemos concluir que o comércio atlântico de escravos e a participação da África tinham sólidas origens nas sociedades e sistemas legais africanos. A organização social preexistente foi, assim, muito mais responsável do que qualquer força externa para o florescimento do comércio atlântico de escravos.    
  
Bibliografia consultada: THORTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo atlântico - 1400-1800. Coordenação editorial de Mary Del Priore e tradução de Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 122-152.

#15Fatos Profetas Sociais dos Hebreus

quinta-feira, 28 de março de 2019

Profeta Isaías, monumento em Roma.

1. A grande contribuição dos hebreus foi a ideia de um Deus que exigia um comportamento ético por parte de Seus seguidores. Esse deus mostrava-se comprometido mais com problemas vinculados à exclusão social, à pobreza e à solidariedade do que com sacrifícios. 

2. O monoteísmo ético encontrou sua expressão não no período tribal (período esse que se estendeu até o final do século XI a.C.), nem no período da monarquia unificada, mas já no período da decadência da monarquia, após o Cisma (931 a.C.).  
  
3. A doutrinação dos profetas sociais estabeleceu os fundamentos do monoteísmo ético. Este, por sua vez, é a base das grandes religiões monoteístas e se constitui, provavelmente, na primeira expressão documentada e politicamente relevante da chamada pré-história da cidadania.    

4. A comemoração de datas, rezas, costumes e tradições, emboras adaptadas a diferentes locais e épocas, têm mantido o elo que conecta as diferentes comunidades judaicas espalhadas pelo mundo. Para os mais nacionalistas, o elo é Eretz Israel (a Terra de Israel).  

5. Autores judeus de diferentes épocas e locais deixam transparecer o orgulho que a comunidade tinha pelo fato de apresentar baixa incidência de bêbados, ladrões ou assassinos. O temor a perseguições e a ansiedade em conseguir o beneplácito dos governantes levou, frequentemente, as comunidades judaicas a pressionar os seus membros a fim de não chamarem a atenção de forma negativa. O embasamento teórico-religioso da cobrança do grupo é a pretensa superioridade ética do judaísmo com relação a outras religiões ou filosofias.     

6. Para Simon Dubnow, uma nação pode passar por três estágios: o tribal, o político-territorial e o histórico-cultural. Só os judeus teriam chegado a essa última etapa. Em nome dos grandes profetas (Isaías, Ezequiel, etc.), a ética dos judeus manteve-se por quase trinta séculos.      

7. Os grandes profetas judeus não se preocupavam com questões teológicas ou rituais e sim com o comportamento do povo judeu. Como o monoteísmo ético desenvolveu-se entre os hebreus, no século VIII a.C., e com os profetas?   

8. Os grandes profetas utilizaram-se de uma exterioridade, de uma forma de ser já existente e praticada pelo vidente, para dar um novo conteúdo a ela.  

9. Isaías, o "príncipe dos profetas", atuou entre 740 e 701 a.C. Seu deus tem caráter universal, mas discute a realidade do reino de Judá e faz pesadas críticas às práticas sociais e rituais vigentes. Isaías se apresentava como porta-voz de Yahweh. Isaías foi um feroz crítico das formas exteriores da religião, desprovidas de genuína espiritualidade.        

10. Numa dessas críticas, Isaías declarou (cap. 1, v. 10-14): 

"Ouvi a palavra do Senhor, vós poderosos de Sodoma; dai ouvidos à lei do nosso Deus, ó povo de Gomorra. 
De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios, diz o Senhor? Já estou farto dos holocaustos de carneiros, e da gordura de animais cevados; nem me agrado de sangue de bezerros, nem de cordeiros, nem de bodes. 
Quando vindes para comparecer perante mim, quem requereu isto de vossas mãos, que viésseis a pisar os meus átrios? 
Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação, e as luas novas, e os sábados, e a convocação das assembleias; não posso suportar iniquidade, nem mesmo a reunião solene. As vossas luas novas, e as vossas solenidades, a minha alma as odeia; já me são pesadas; já estou cansado de as sofrer."

11. Amós, um "profeta menor" (devido à extensão de seu livro), nasceu na Judeia, mas profetizou em Samaria, capital de Israel, durante o reinado de Jeroboão II (783-743 a.C.). Acredita-se que ele atuou apenas em 745 a.C. Sua origem é humilde (não era filho de profeta), sua linguagem é agressiva e desabusada e seu sentimento de justiça é agudo e intransigente.

12. O deus de Amós insiste na preservação dos direitos sociais e individuais de todos. Note: 

"Portanto, visto que pisais o pobre e dele exigis um tributo de trigo, edificastes casas de pedras lavradas, mas nelas não habitareis; vinhas desejáveis plantastes, mas não bebereis do seu vinho. 
Porque sei que são muitas as vossas transgressões e graves os vossos pecados; afligis o justo, tomais resgate, e rejeitais os necessitados na porta." (Amós 5:11-12).

13. Outro importante texto que denuncia a hipocrisia dos religiosos de Israel é esse: 

"Odeio, desprezo as vossas festas, e as vossas assembleias solenes não me exalarão bom cheiro. 
E ainda que me ofereçais holocaustos, ofertas de alimentos, não me agradarei delas; nem atentarei para as ofertas pacíficas de vossos animais gordos. 
Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos; porque não ouvirei as melodias das tuas violas. 
Corra, porém, o juízo como as águas, e a justiça como o ribeiro impetuoso." (Amós 5:21-24).

14. Isaías e Amós viveram numa época em que os dois pequenos reinos hebreus estavam espremidos entre o gigantismo babilônico, a leste, e o poderio egípcio, ao sul. Havia uma nostalgia dos tempos em que as pessoas viviam mais unidas, sem desigualdades sociais tão profundas quanto no século VIII a.C.  
  
15. Os pobres foram atraídos pela pregação dos profetas contra essa religião do Templo, burocrática e sem esperança, praticada por israelitas ricos e orgulhosos. Como porta-vozes da incompreensão das pessoas com relação aos novos tempos, os profetas registraram, pela primeira vez com tamanha intensidade, o grito dos oprimidos e dos injustiçados.     
  
Bibliografia consultada: PINSKY, Jaime. Os profetas sociais e o Deus da cidadania. In: PINSKY, Carla B. & PINSKY, Jaime (orgs.). História da Cidadania. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 15-27.

«Acreditavam os Gregos em seus Mitos?», de Paul Veyne

domingo, 24 de março de 2019

Baixe esse livro gratuitamente aqui.

Como Imaginaram Nosso Mundo...

sexta-feira, 22 de março de 2019

Em 1900, imaginaram que no século XXI as casas seriam construídas por máquinas, os bombeiros voariam para resgatar vítimas de incêndio e nós flutuaríamos sobre as águas num passeio de domingo. 

Confira isso e muito mais na reportagem da National Geographic.  

Ramsés II e Hórus

quinta-feira, 21 de março de 2019

A escultura acima foi feita em um único bloco de granito, entre 1293 e 1185 a.C., e atualmente encontra-se no Museu Egípcio. Mede 2,30 metros e foi escavada na antiga cidade de Tanis, capital do Egito durante as XXI e XXII dinastias. 

Quando essa obra foi encontrada, faltava-lhe o rosto do falcão, que foi feito em outra pedra. Felizmente, esse rosto também foi encontrado, separado do conjunto. A personagem agachada é Ramsés II, da XIX dinastia, faraó entre 1279 e 1213 a.C. Seu reinado foi um dos mais prestigiosos e longos da história do antigo Egito, destacando-se por diversas campanhas militares vitoriosas. 

A cor dessa escultura é escura, próxima do ocre; é lisa, mas com linhas cavadas na pedra. Há um pássaro em pé, de grande estatura, e à sua frente está Ramsés. Ele tem uma das mãos no queixo e a outra segura um pequeno cajado. 

O falcão representava Hórus, "deus dos Céus", uma das mais importantes divindades egípcias: era um deus solar, filho de Osíris e Ísis, considerado a manifestação do poder do Sol. Hórus era representado pelo falcão, pois sua vista é tão poderosa que ele é o único animal que pode fixar o Sol. Na escultura em questão, o falcão tem um aspecto sereno e adota uma postura segura, sólida e equilibrada. Ao representar um deus, encarnas seus poderes e qualidades. 

Ramsés, por sua vez, é representado agachado e com um dedo encostado na boca, como se fosse uma criança, o que denota certa fragilidade. Ele leva à cabeça uma coroa ornada com um disco solar e leva um caniço na mão, símbolo do poder real. 

A associação entre o faraó e o falcão, representação do deus Hórus, expressa a proteção para o faraó e confere um caráter divino à monarquia. A relação estreita de Ramsés com Hórus parece evidenciar a natureza divina e solar do faraó, dando a entender que a divindade governava por meio do rei. A coroa de disco solar afirma ainda mais a identidade entre o jovem rei e o falcão. 

A intenção do escultor pode ter sido registrar que o faraó governou protegido pelo deus Hórus. Isso legitimava seu governo e transmitia a ideia de que o faraó era representante de Hórus na Terra, sua imagem, reflexo e encarnação.

VICENTINO, Cláudio & VICENTINO, José Bruno. Olhares da História: Brasil e Mundo. Colaboração de Severio Lavorato Júnior. 1. ed. São Paulo: Scipione, 2016,  p. 327.   

Um Estudioso em Seus Estudos

segunda-feira, 18 de março de 2019

A scholar in his study, óleo sobre tela de Thomas Wyck (1616-1677).