“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

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Villa Borghese, Roma, Itália.

Myanmar à beira de um genocídio

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Protestos na Indonésia contra o monge Wirathu

Há pouco mais de um mês, escrevi um artigo sobre o centenário do genocídio armênio. Naquela ocasião, alertei para os riscos do esquecimento de uma tragédia dessas proporções. Como se sabe, o genocídio armênio foi apenas um dos primeiros de diversos outros que ocorreram ao longo do século XX. Como verão na reportagem abaixouma minoria religiosa está prestes a sofrer um genocídio em Myanmar, país asiático de maioria budista e chamado pelos portugueses de "Birmânia".  

Os sermões racistas do influente [monge budista] Wirathu que caracterizam a minoria muçulmana como um perigo coincidiram com o início da onda de violência contra os rohingya, a minoria muçulmana a que o Estado birmanês retirou a cidadania em 1982. Em 2012, quando se deram os primeiros episódios graves de violência contra os rohingya, em Sittwe, e 140 mil pessoas foram obrigadas a fugir das suas casas, os discursos do monge gravados em DVD já eram distribuídos por todo o país. Em Sittwe, a maior parte das mesquitas da cidade foram incendiadas, e as zonas da cidade onde viviam muçulmanos foram completamente destruídas pelo fogo, transformadas em cinzas.

Wirathu tinha sido condenado em 2003 a 25 anos de prisão, por incitamento ao ódio religioso [...]. Mas foi libertado numa das várias amnistias concedidas pela junta militar a partir de 2010 e tornou-se o líder do movimento 969, um grupo nacionalista radical que incita à violência contra os rohingya e ao boicote das empresas e lojas dos muçulmanos.

Os rohingya ultrapassam um milhão de pessoas, e representam, no máximo, 5% da população do Myanmar. Embora desconhecidos nos Ocidente, a ONU considera os rohingya "a minoria étnica mais reprimida do mundo". Infelizmente, nem os anos de prisão arrefeceram o desprezo de Wirathu por esse grupo, que chegou ao seu país em duas levas, no século XVI e no século XIX, provenientes do Bangladesh. 

Contudo, apesar de estarem há tanto tempo em Myanmar, os rohingya passaram a ser marginalizados após a independência do seu país de adoção e, sobretudo, após o golpe militar de 1962. A partir de 1982, foram declarados apátridas, pavimentando o caminho para a situação atual. A reportagem detalha o nível de discriminação ao qual estão submetidos:

Não têm quaisquer direitos civis reconhecidos, nem sequer direito a um médico, ou a ir escola. Por isso tentam fugir em massa do país – e se tornaram protagonistas este mês de uma crise humanitária, com milhares de pessoas à deriva no mar, sem que nenhum país aceitasse recebê-las.

Talvez muitos estejam surpresos com o fato de existirem radicais dentre os budistas. A sequência da reportagem deixa claro que a pregação de Wirathu em nada fica a dever aos discursos antissemitas de Hitler: 

Apesar de ser um monge budista, de quem se espera ouvir mensagens de paz e tolerância, a sorte dos rohingya não inquieta Wirathu – aliás, não esconde que quer expulsá-los a todos do território birmanês ou eliminá-los, numa espécie de solução final. “Se não protegermos o nosso próprio povo tornar-nos-emos fracos, e vamos ter de enfrentar assassínios em massa, quando eles se tornarem tantos que nos vão ultrapassar” [...].

A preocupação com a taxa de natalidade dos rohingya, superior à do resto da população, é uma constante no discurso do monge, que fala na “explosão populacional” dos muçulmanos birmaneses como um dado seguro [...]. Por isso tem feito lobby durante os últimos anos – e conseguiu, recentemente, fazer aprovar uma lei sobre o controlo da natalidade que gerou protestos internacionais, por se considerar que está redigida de forma a ser usada contra as minorias.

Mais adiante, a reportagem relata outras estratégias de Wirathu, as quais classifica de neonazistas: 

“Os muçulmanos só se comportam bem quando estão fracos”, afirmou à BBC, olhando para um dos cartazes que forram os muros exteriores do seu mosteiro, em Mandalay, a segunda maior cidade birmanesa: todos mostram cenas de enorme violência que ele afirma ter sido praticada pelos rohingya, como corpos cobertos de sangue e templos destruídos. [...]

Esta desumanização da minoria étnica e religiosa que são os rohingya é uma característica do seu discurso, e algo que leva as organizações de direitos humanos a chamar-lhe “neo-nazi”, ou a afirmar que este discurso não ficaria mal ao pé das leis raciais do regime nazi.

Ele assume o gosto de chocar – diz que tem prazer em ser conhecido como “radical”. [...] Em 2013, disse que gostaria de ser conhecido como “o Bin Laden birmanês”. [...]

A numerologia é a base do movimento 969, liderado por Wirathu. O 969 estabeleceu relações com o Bodu Bala Sena, outra organização budista radical que persegue os tâmiles, minoria do Sri Lanka. O 969 busca a "pureza racial e religiosa" de Myanmar, elegendo os rohingya como bodes expiatórios de todos os problemas econômicos, e pela decadência social e cultural do país. Segundo a reportagem,     

Tudo isto é bastante semelhante à diabolização de um grupo étnico e religioso, como aconteceu na Alemanha nazi dos anos 1930. E as instituições do Estado, toleram, quando não cooperam, com a discriminação e a violência cometida contra a comunidade rohingya.

Confrontado com tal situação, o líder budista Dalai Lama se manifestou:

“É impensável matar pessoas em nome da religião. É muito triste. Rezo para que [os monges] pensem no rosto de Buda, que foi um protector dos muçulmanos” [...].

Contudo, a despeito de todas as evidências, Wirathu nega responsabilidade pela violência contra os rohingya, embora constantemente use termos depreciativos ao referi-los. Ele ainda os acusa de estuprarem frequentemente mulheres birmanesas. Segundo o grupo Justice Trust, a violência contra os rohingya muitas vezes ocorre após Wirathu postar essas supostas histórias no Facebook. 

Para finalizar, a reportagem destaca a existência de verdadeiros campos de concentração, onde atualmente a maioria dos rohingya vivem. Esses campos se encontram na costa do estado de Raknine, de onde a minoria era originária. Alguns permanecem num gueto cercado, localizado próximo à cidade de Sittwe, no centro do país. Para agravar a situação, as agências de ajuda internacional foram expulsas de Rakhine em 2014, deixando a região sem médicos ou escolas. O jornalista Alex Preston considerou a visita à região um "passeio pelo inferno". 

Saber que existem hoje lugares como este – algo como só se imaginava nos campos de concentração nazis da II Guerra, é um choque [...]. Mas sobretudo saber que existem num país que recebe ajudas ao desenvolvimento dos Estados Unidos e da União Europeia, para apoiar a transição para a democracia, e que de forma tão flagrante namora com o genocídio – é uma bofetada capaz de arrancar o nosso mundo do eixo.

Fonte: Público



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