“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

«A guerra no Império Romano Tardio», de Raphael

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Eis o meu primeiro livro. Como li certa vez em um livro do Eduardo Galeano (ah, tristes anos de leituras esquerdistas...), escrever um livro é como lançar uma garrafa com uma mensagem ao mar. As probabilidades de que alguém os leia é sempre remota.

Para início de conversa, eis a referência da obra:

TEIXEIRA, R. L. A guerra no Império Romano Tardio. Prefácio de Ricardo da Costa e orelhas de Rogério Rosa. Vitória: DLL-UFES, 2012.

O texto-base foi o da monografia que apresentei ao Departamento de História da UFES quando concluí a licenciatura e o bacharelado, em 2009. Naquela altura tive a honra de ser orientado pelo Prof. Dr. Ricardo da Costa, que também é o autor do prefácio. A propósito, o prefácio está disponível em seu SITE.


Já o autor das orelhas do livro, o Prof. Dr. Rogério Rosa, foi o meu professor de História do Brasil Colônia, Teoria e Metodologia da História. Atualmente é professor adjunto de Teoria e Metodologia da História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). São dele as palavras que se seguem (volto a seguir):

O texto que Raphael apresenta ao leitor permite acompanhar o processo de fabricação do trabalho do historiador com todo o rigor acadêmico exigido àqueles que se dedicam ao ofício. Para narrar sua história o autor escolheu como guia um personagem, Vegécio, e uma obra, Epitoma rei Militaris. Na oficina do historiador a escolha da fonte marca profundamente o desenvolvimento do produto final. O contexto de sua produção, a linguagem, os valores individuais e coletivos do sujeito, bem como as forças motrizes da época deixam marcas indeléveis no documento. Identificá-las é o desafio. Diante das escassas informações sobre o sujeito objeto de sua pesquisa, Raphael recorreu a uma estratégia cara ao historiador, qual seja a de estabelecer relações do texto de Vegécio com outras fontes da época, comparar a proposta apresentada no Epitoma com experiências militares de outros períodos históricos, além de evocar uma miríade de autoridades em história romana para sustentar seus argumentos. Para além desse procedimento que poderíamos nominar de científico há que ressaltar os subjetivos: a evocação afetuosa feita ao pai, militar da reserva, a inquietação diante da banalização da violência e da guerra na atualidade e a confissão de que por um momento desejou ingressar nas Forças Armadas. Ao fim, a pesquisa de Raphael nos abre uma janela para o passado e outra para o presente, e na interseção desses tempos, a oportunidade de observar as memórias, concepções e estratégias de um historiador em formação.

A esses dois mestres devo muitíssimo do meu aprendizado inicial de historiador. Mais uma vez, meu muito obrigado a ambos.

Apesar do título (ah, os interesses editoriais...), o livro trata apenas da guerra romana no século IV d.C., com rápida contextualização dos séculos precedentes. No século em questão produziram-se mudanças cruciais na estratégia, na tática e na organização do exército romano. Foram reflexos das mudanças na governação do Império, que desde o século III era cada vez mais acossado pelas invasões bárbaras e pelas guerras civis e golpes de Estado. No livro eu procuro explicar esse processo, tendo como principal fonte o Epitoma rei militaris, tratado escrito por Flávio Vegécio, no fim do séc. IV.

No mestrado, como era de se esperar, eu procurei pesquisar um tema mais delimitado: a cristianização do exército romano e as relações do processo com a política imperial. A dissertação já está pronta e devo defendê-la brevemente. Pretendo publicá-la também, e vocês podem conferir na internet a CAPA e DISSERTAÇÃO. Ainda mais interessante, será, de facto, uma "part two" da obra que agora lanço. Estou muito contente pelos frutos dessa pesquisa sobre a qual tenho me debruçado já há alguns anos.

Quem sabe se a tese de doutorado não forma uma trilogia... veremos.
 

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Imagens: representações modernas de soldados romanos do século IV.

Atenção: o livro está disponível para compra no AGBOOK.

«Teodosio», de Hartmut Leppin

sexta-feira, 6 de julho de 2012


Descobri recentemente que a editora espanhola Herder publicou várias biografias de interessantes personagens da Antiguidade: Sila, Cleópatra, Augusto, Pompeu, Calígula, Flávio Josefo, Juliano, Atenais, dentre outros. A editora está assim de parabéns, especialmente pelo fato de a maioria se tratar de traduções, várias delas a partir do complicadíssimo idioma alemão.

Assim, na sequência das dicas de leitura deste blogue, indico uma dessas biografias, lida há poucas semanas:

LEPPIN, Hartmut. Teodosio. Traducción de Marciano Villanueva. Barcelona: Herder, 2008.


Eis a sinopse:

¿Se sirvió el Dios cristiano –ya hegemónico en el siglo IV– de un emperador nacido en Hipania y afincado en Constantinopla para afirmar en el orbe conocido la fe verdadera trinitaria? ¿O bien fue el emperador segoviano quien, desde el extremo oriental del Imperio, se sirvió de la una fe única en un único Dios trinitario para consolidar la unidad de su Imperio, a ejemplo de su predecesor Constantino?

Esta biografía del emperador Teodosio es también, y sobre todo, un inmenso tapiz en el que bulle la efervescencia del Imperio romano en el último tercio del siglo IV de nuestra era. Descomunales personajes diseminados por el espacio mediterráneo de los cuales –bajo el bisturí impasible del historiador– uno puede deslindar hasta qué punto fueron héroes y santos o bien meros usurpadores y estrategas: obispos como Ambrosio de Milán, Dámaso de Roma, Cirilo de Jerusalén, Demófilo y Nectario de Constantinopla, Petros de Alejandría, Gregorio de Nacianzo; usurpadores como Máximo y Eugenio; paganos y cristianos herejes de todo pelaje y distinta grandeza: apolinaristas, eunomianos, homoiusianos, maniqueos, priscilianistas; bárbaros del Este presionados por el hambre y las guerras y finalmente asimilados a los ejércitos imperiales: godos, alanos, hunos…

¿Y a todo esto, en qué consiste la grandeza de Teodosio? Fueron muchos los temas en los que Teodosio siguió de cerca los pasos de sus predecesores. Lo novedoso en su gobierno parece situarse en la capacidad de servirse del cristianismo, que se había convertido en una potencia social de primer orden, para afirmar su poder.

In:  Herder 


Quando soube desse livro, e vi que o autor é alemão, já estava quase certo de que se tratava de uma boa obra - nunca soube de um historiador germânico que fizesse um mau trabalho. E a expectativa se confirmou. Trata-se de um livro erudito, bem escrito e objetivo, embora forneça um panorama interessante acerca do quadro político-militar e religioso do século IV. Dezenove figuras - dentre elas várias representações numismáticas - e três mapas facilitam a compreensão da narrativa. Todos os capítulos são devidamente referenciados, e Leppin se utilizou largamente da documentação primária disponível. A obra conta ainda com um oportuno glossário.

O imperador Teodósio (379-395) que é retratado por Leppin é um homem pragmático e religioso, dividido assim por essa ambiguidade existencial. Homem pacífico, tolerante e integrador, viu-se desde o início pressionado pelas consequências nefastas da arrasadora derrota romana em Adrianópolis (378). Em muitos casos teve tremenda sorte (alguns apelariam à Providência), sendo talvez a principal delas a paz com a Pérsia, que durante todo o seu reinado esteve ocupada com seus próprios problemas. Em compensação, teve ameaças de sobra no quadro político interno, com usurpadores como Máximo e Eugênio, que levaram-no a empregar a nova força militar do exército romano tardio: os foederati bárbaros. Os visigodos, aliados do Império após invadirem-no em fins da década de 370, pagaram um preço de sangue alto a Teodósio.

De modo geral, Leppin se sai muito bem ao lidar com uma das questões mais problemáticas da Antiguidade Tardia: as ligações entre a religião e o poder. Demonstrou ter a imparcialidade que se espera de um historiador. Isso não quer dizer que sua análise seja isenta de erros - por vezes ele se inclina ao ceticismo ao considerar os interesses do imperador acima de sua fé. Mas isso não compromete de modo algum sua narrativa, e com a escassez de fontes sobre o assunto, pode ser que tenha razão. O mais discutível neste ponto é a sua opinião de que a novidade no governo de Teodósio foi a capacidade imperial de servir-se do cristianismo. Ora, Constantino, no início do século IV, deu mostras indiscutíveis dessa capacidade. 

O balanço final sobre o Teodósio enquanto estadista é muito oportuno: "No fue un modelador de la historia, un impulsor, no hay en él nada de brillante" (p. 282). Mesmo assim, a Igreja agiu corretamente ao conceder-lhe o título de "o Grande" e a historiografia pode prosseguir no mesmo caminho, visto que Teodósio soube aproveitar a força da Igreja de Nicéia aos seus próprios fins, ao passo em que os cristãos alcançavam crescente influência tanto no cotidiano quanto no estilo de governo. 

Enfim, trata-se de um livro a ser lido. Até porque o preço é módico (26 €), sobretudo se considerarmos um pensamento do professor que inspirou-me a publicar essas dicas de leitura: "Se você acha caro o valor do conhecimento, procure saber o preço da ignorância."

Portugal Romano

sábado, 5 de maio de 2012

A Lusitânia tornou-se província romana a partir de 29 a.C. Era a província ocidental mais remota, e integrava o atual território português ao sul do Douro, mais a Estremadura e parte da província da Salamanca (Espanha). O domínio romano prosseguiu até 411, quando a Lusitânia passou ao controle dos bárbaros alanos. A capital da província era Emerita Augusta, atual Mérida. Olisipo (atual Lisboa), uma das cidades mais antigas da Europa, era também uma das mais importantes da província, e estava isenta de impostos por ter se aliado aos romanos durante as guerras de conquista. Hoje é possível conhecer parte de seu passado romano graças à reconstrução da cidade após o terramoto de 1755. Um dos monumentos mais notáveis da época romana são as Galerias romanas da rua da Prata. Vale a pena conferir também o núcleo arqueológico da rua dos Correiros e as termas romanas dos Cássios.  

Mais informações em: Portugal Romano

Passado e passados

sábado, 7 de abril de 2012


"Nada é mais antigo que o passado recente." Assim se pronunciou o grande Nelson Rodrigues (1912-1980), dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro. A frase - contraditória à primeira vista - serve-nos de munição para aniquilarmos a terminologia mal forjada de uma corrente da historiografia: a dita "História do Tempo Presente." Não existe História do Tempo Presente, assim como não existe História do Futuro. O presente é um brevíssimo lapso temporal, fugidio e inacabado. O tempo no qual escrevia a frase anterior está já no passado, e o passado, como sabemos, é um dado imutável. Por mais que se tente, por mais queira modificá-lo, o máximo que se conseguirá é produzir versões diferentes do que ele foi. Versões essas que nada mais são que mentira, muitas vezes intoxicadas por ideologias e preconceitos.

Já em seus primórdios a História dedicava-se aos acontecimentos mais recentes, como atesta as obras de Heródoto (485? a.C. - 420 a.C.), Tucídides (entre 460-455 a.C. - c. 400 a.C.) e Políbio (c. 210/200 – c. 127 a.C.). Pensava-se que o passado mais remoto seria impossível de ser estudado. A tradição oral, os lapsos, as perdas e os esquecimentos tornariam-no irreconhecível. Ainda hoje há quem pense assim quando, na verdade, a análise dos fatos recentes pode ser ainda mais complicada. Ora, ao observarmos a atualidade somos estudiosos e ao mesmo tempo objeto, além de que o excesso de informação coloca-nos um grande desafio. Não usufruimos da distância temporal e emocional tão oportuna que temos, por exemplo, ao estudarmos a História da Antiguidade.

No meu quase um quarto de século de vida (completarei em 13/07), testemunhei grandes transformações. Sempre apreciei a atualidade internacional e sobretudo nestes últimos anos ela tem sido especialmente rica. Ainda não possuía consciência política quando caiu o muro de Berlim (1989) e a moribunda URSS (nata de 1991). A transição do antigo bloco comunista para o mundo capitalista e democrático (transição essa longe de sua conclusão) é guardada em minha memória sobretudo pela figura espalhafatosa de Bóris Yeltsin (1931-2007). Apesar de ser miúdo, lembro-me perfeitamente das imagens da Guerra do Golfo (1991), quando os EUA e as força de sua coligação derrotaram de forma avassaladora o Iraque do tresloucado Saddam Husseim (1937-2006), executado após a Guerra do Iraque (2003). Esta foi um bizarro ato da administração de Bush filho, justificado dentro do contexto da Guerra ao Terror, desencadeada após aos atentados terroristas em 2001, quando quase três mil vidas foram ceifadas em solo americano, e as torres gêmeas do World Trade Center foram abaixo, bem como uma parte do Pentágono, atingindo em cheio o orgulho ianque. No Brasil, os anos 90 foram marcados pelas primeiras eleições diretas da redemocratização, o impeachment de Collor, a estabilização e abertura da economia pelos presidentes Itamar Franco e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).

Em 2002 eu já estudava no internato, iniciando uma importante fase de minha vida. Naquele ano a seleção brasileira de futebol venceu a Copa do Mundo do Japão e da Coreia e sagrou-se pentacampeã. No segundo semestre o PSDB perdeu as elições no 2º turno e Lula, do PT, realizou seu sonho de se tornar presidente. Embora com o governo mergulhado em escândalos de corrupção, reelegeu-se em 2006, permanecendo no poder até 2010. Ele conseguiu ainda fazer a sucessora, a primeira mulher a governar o Brasil, no poder até hoje.

Desde a "era FHC" o país vem alcançando mais projeção internacional, embora as diretrizes do PT sejam um tanto atrapalhadas às vezes (como apoiar as ditaduras dos aiatolás, no Irão, e dos irmãos Castro, em Cuba). O país passou a acalentar pretensões de ter um assento permanente no obsoleto Conselho de Segurança da ONU. Ao lado de Rússia, Índia, China e agora África do Sul, forma o grupo dos países emergentes (BRICs).

Em todo o mundo, grandes problemas econômicos, políticos, sociais e ambientais continuaram a receber destaque. Novas doenças e pestes nos assombraram com alguma regularidade. Golpes de Estado, guerras civis, movimentos separatistas e emergência de novas nações em um espectro político para lá de confuso também pipocaram. Como se tudo isso não bastasse, uma crise econômica mundial estourou em 2008. Os culpados, o 1%, como acabaram denominados pelos movimentos de ocupação que surgiram para contestar o sistema. O 1% nada mais seria que os especuladores, aqueles que movimentam o capital financeiro sem produzir nada, arrastando economias de países inteiros para a crise devido aos seus malabarismos financeiros irresponsáveis. Nesse mundo atribulado, uma dose de esperança: Barack Hussein Obama II, o primeiro negro a se tornar presidente dos Estados Unidos da América. Tomou posse em 20/01/2009, e logo viria a se revelar uma decepção. Embora tenha vencido o nobel da paz no mesmo ano, umas das poucas coisas que fez nesse sentido foi retirar as tropas americanas do Iraque, onde a situação já era insustentável. Não fechou a infame prisão de Guantánamo e manteve a ocupação do Afeganistão. Foi pego de surpresa com a "Primavera árabe", um movimento popular que passou a exigir a renúncia dos ditadores no norte da África e no Médio Oriente.

Entre o início da crise e estes acontecimentos que acabei de descrever, conclui a licenciatura e o bacharelado, a seguir comecei a lecionar, tomei posse em um concurso e pedi exoneração pouco depois a fim de embarcar rumo ao mestrado na Universidade de Lisboa (2010). Ao chegar no aeroporto, ainda com poucas informações sobre o que me aguardava, um jornal esquecido em um assento deu-me as boas-vindas. A manchete dizia o seguinte: "O Primeiro-Ministro prevê um ano terrível para os portugueses". Considerando que os políticos por norma sempre tentam esconder ou minimizar uma catástrofe, vi que estava a entrar num mundo caótico. Poucos dias depois a República Portuguesa comemorava 100 anos de existência (05/10/2010), sem grandes razões para celebrar. Nos meses que se seguiram o governo finalmente cedeu e suplicou um pacote de ajuda financeira junto ao famigerado FMI, sendo obrigado a acatar uma série de exigências que quase sufocaria as vidas dos trabalhadores. A Espanha bate recordes de desemprego, e na Itália a situação não é das melhores (tem pedido "socorro" para que seus antigos e belos monumentos, como o Coliseu, possam ser preservados). Na Grécia a situação é gravíssima, sendo que há alguns dias um aposentado suicidou-se perto do Parlamento por recusar-se "a buscar comida no lixo." É a crise (quiçá o ocaso?) do Velho Mundo.

No presente, a comunidade internacional se incomoda com as pretensões nucleares do Irão e da Coreia do Norte (na 3ª geração de ditadores comunistas endeusados), além dos massacres sem interrupção na Síria. Um golpe de Estado e a instalação de uma junta militar no Mali revelou, mais uma vez, como boa parte do continente africano está longe de alcançar a maturidade institucional e democrática.

Assim segue o mundo, com velhos e novos problemas. Mas, no fundo, em essência a humanidade continua a mesma. Como dizia o Pregador (Salomão?): "Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: Veja: isto é novo, ela já existia nos tempos passados." Eclesiastes 1, 10.


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Imagem: A Persistência da Memória (1931), 24cm x 33 cm, de Salvador Dalí.

O historiador e a sua profissão

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012


O que significam as palavras escritas? O que o escritor quis dizer com aquilo quando escreveu? Por que escreveu? Quando? Como? Onde? Para quem? Na belíssima iluminura medieval acima, o bispo Virgil von Salzburg (c. 746-784) medita profundamente o texto que acaba de ler. Sua mão direita apóia seu queixo, seus imensos olhos perscrutam o livro aberto. A cena, reflexiva e contemplativa, é emoldurada por seres fantásticos e sinuosos motivos geométricos. Viena, Osterreichische Nationalbibliothek, Cod. 1224, fol. 17v. (Texto de Ricardo da Costa)


Como historiadores, somos frequentemente questionados sobre o sentido do nosso trabalho. Marc Bloch (1886-1944), em sua esplêndida obra Apologia da História ou O ofício de historiador já dizia que se a História fosse julgada incapaz de outras tarefas, poderíamos dizer ao seu favor que ela diverte. De fato. As humanidades - da qual a História faz parte - são disciplinas não-práticas que têm por meta a sabedoria. Diferem-se, portanto, das ciências, que têm por objetivo a maestria, e são matérias práticas por excelência.

Na Antiguidade Clássica, Políbio (c. 203 a.C.-120 a.C.), geógrafo e historiador grego, acreditava que "a melhor educação e a melhor aprendizagem para a vida política ativa é o estudo da História" (Histórias, I, p.1). Na Idade Média, o Islã produziu um genial filósofo da História - Ibn Khaldun (1332-1406). Segundo ele (al-Muqaddima, introdução):

A História é uma ciência nobre. Apresenta muitos aspectos úteis. Propõe-se atingir um fim nobre. Faz-nos conhecer as condições específicas das nações antigas, que se traduzem no seu caráter nacional. (...) Assim, quem quiser pode obter bons resultados, pela imitação dos modelos históricos, religiosos e profanos. Para escrever obras históricas é preciso dispor de numerosas fontes e variados conhecimentos. É também preciso um espírito reflexivo e profundo: para permitir ao investigador atingir a verdade e defender-se do erro.

Na Renascença, o humanista e filósofo neoplatônico Marsílio Ficino entendeu perfeitamente a importância do estudo da História para a vida humana. Em carta a Giácomo Bracciolini, Ficino registrou iluminadas palavras acerca do valor da História:

A História é importante não apenas para tornar a vida mais agradável mas também para lhe dar uma significação moral. O que é imortal em si mesmo consegue a imortalidade através da História; o que é ausente torna-se presente, velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo se iguala à maturidade dos velhos. Se um homem de setenta anos é considerado sábio devido à sua idade, quão mais sábio é aquele cuja vida abrange o espaço de mil ou três mil anos! Pois, na verdade, pode-se dizer que um homem viveu tantos milênios quantos os abarcados pelo seu alcance de conhecimento de História.

Ao buscar a sabedoria e orientado pela paixão (que em algum momento amadurece e se torna amor), o historiador escolhe o seu tema. A seguir, em pleno trabalho, debruça-se sobre as suas fontes - textuais, orais, arqueológicas, iconográficas, etc.. Faz uma imersão nos símbolos ao tentar compreender o texto. Este é a expressão que restou dos homens, que são o seu objeto. Imagina. Sim, segundo Georges Duby (1919-1996), o historiador deve imaginar. A seguir, sonha com a História - para Fernand Braudel (1902-1985, “quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.”

Mas o historiador tem um compromisso com a verdade (segundo Cícero [106-43 a.C.], antes de tudo espera-se que ele só diga a verdade). Isto põe freios à sua imaginação. Para que ele não queira que o passado tenha sido algo que não foi, algo que gostaria que tivesse sido - o que invalidaria o seu esforço intelectual - lança mão de teoria e métodos. Só eles os mantêm totalmente seguros do alerta de Eric Hobsbawm (1917-2012):

A História é atualmente revista ou inventada por gente que não deseja o passado real, mas somente um passado que sirva aos seus objetivos. Estamos hoje na grande época da mitologia histórica.

Após todo esse percurso, o historiador escreve. Esta é a expressão final do seu trabalho. Há alguns raros eleitos que, sem abandonarem a erudição ou se tornarem incompreensíveis aos leigos, imprimem grande estilo ao seu texto. Penso aqui em um Edward Gibbon (1737-1794) ou um Johan Huizinga (1872-1945) que se tornaram referências neste quesito. O já citado Cícero dizia: "A mim me bastam a clareza e a simplicidade, que são o melhor ornamento da verdade (...) falar clara e simplesmente é o que compete a um homem inteligente e douto" (Do sumo bem e do sumo mal, Livro III, V). Assim, em última análise, o historiador é um escriba (lembro-me aqui daquela maravilhosa fonte egípcia na qual o pai recomendava ao filho esta profissão, a melhor de todas). O "fruto" do seu trabalho não deve ser reputado como menos digno:

O fruto das letras é, por muitas razões, o mais aprazível, principalmente porque, suprimido o empecilho de qualquer separação espacial e temporal, elas exibem aos amigos a presença mútua, e não permitem que pereçam com o tempo as coisas dignas de lembrança. Pois até as artes teriam perecido, os juramentos ter-se-iam esvaído, todos os ofícios de qualquer religião teriam ruído, e o próprio uso da boa expressão ter-se-ia corrompido, se a misericórdia divina não tivesse providenciado para aos mortais o uso das letras como remédio para a fraqueza humana. O exemplo dos antigos, a exortação e incentivo da virtude, não erigiria nem conservaria absolutamente nada, se a solicitude piedosa dos escritores e o zelo, vencedor do descuido, não tivessem transmitido aos pósteros. John of Salisbury, Policraticus (1159).

Mas alguém ainda pode querer um dado "mais próximo" em favor da História. Para o que há pouco se apaixonou pela adorável Clio, aquele pobre a enfrentar as pressões internas, familiares e sociais para escolher uma profissão "mais rentável", ficam as dicas de dois livros, recém-lançados. O primeiro é de Karl Pillemer e chama-se 30 Lessons for Living. Trata-se de uma compilação de mais de 1.000 entrevistas realizadas com idosos de diferentes níveis econômicos e educacionais, destinadas ao objetivo de oferecer conselhos práticos baseados no que estes fizeram de certo ou errado em suas vidas. Questionados sobre a carreira profissional, nenhum dos mil entrevistados considerou que a felicidade estaria associada ao trabalho excessivo que rendesse dinheiro suficiente para comprar o que quer que fosse. Há ainda outros estudos, desnecessários de serem mencionados que aqui, que apontam para a mesma conclusão: não é o dinheiro que traz a felicidade. Bons profissionais trabalham naquilo que amam, e o retorno financeiro é mera consequência disso.

O segundo livro foi escrito pela enfermeira australiana Bronnie Ware, especialista em cuidados paliativos e doentes terminais. O livro intitula-se The Top Five Regrets of the Dying - A Life Transformed by the Dearly Departing . Segundo a autora, reuniu nele 'confissões honestas e francas de pessoas em seus leitos de morte.' Advinha qual foi o maior arrependimento que ela constatou? Não ter tido coragem de se fazer o que realmente se queria e não o que outros esperavam que fosse feito.

Tendo tudo isso em vista, só tenta dissuadir o filho da ideia de cursar História o pai que desconhece o pensamento abaixo:

O meu filho deve ler muita História e meditar sobre ela; é a única filosofia verdadeira. Napoleão Bonaparte, Testamento político (Abril de 1821).


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- Para os que queiram se aprofundar na questão da utilidade da História, recomento o artigo do Prof. Dr. Ricardo da Costa intitulado Para que serve a História? Para nada... , in: AQUI.
- Sobre o livro de Karl Pillemer, ver G1.
- Sobre o livro de Bronnie Ware, ver G1 (Ciência e Saúde).

«Pensamentos», de Marco Aurélio

sábado, 31 de dezembro de 2011



O imperador Marco Aurélio (161-180) legou à filosofia ocidental uma grande joia do estoicismo: a obra Pensamentos (ou Meditações). É nela que podemos ler as belas citações abaixo:

Qual é a duração da vida do homem? Um ponto no espaço. A substância? Variável. As sensações? Obscuras. O que é o seu corpo? Putrefação. Sua alma? Um torvelinho. Seu destino? Um enigma. Sua reputação? Duvidosa. Tudo o que provém de seu corpo é como água da torrente, e o que dimana de sua alma é como um sonho, como o humo. Sua vida é um combate perpétuo, um descanso em terra estrangeira, e sua fama depois da morte um esquecimento absoluto. Qual é a única coisa que pode facilitar sua viagem nesse mundo? A Filosofia. Ela consiste em velar pelo gênio que reside em seu interior, de modo que não receba nem as afrontas, nem as feridas, e que não se deixe arrastar pelos prazeres nem pelas dores, que não faça nada fortuitamente, que não empregue os embustes nem a hipocrisia, que nunca conte com que o outro faça ou deixe de fazer, que aceite tudo o que aconteça ou o que corresponda como procedente da mesma origem e, por fim, que aguarde a morte com paciência, como uma dissolução dos elementos que constituem o organismo de todo ser animado. Se estes elementos não sofrem dano algum ao transformar-se perpetuamente de um estado ao outro, porque te inspiram desconfiança ou temor? Tudo se encontra regido pela Natureza, logo não há nenhum perigo.
MARCO AURÉLIO, Pensamentos, Livro II.17.

Se alguém me consegue mostrar e provar que estou errado no pensamento ou na ação, eu mudo de bom grado. Eu procuro a verdade, o que ainda nunca magoou ninguém. Só a persistência na auto-ilusão e na ignorância é que magoa. - IDEM, VI.21.


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- Leia AQUI a obra completa de Marco Aurélio.
- Ver a biografia McLYNN, Frank. Marco Aurélio: guerreiro, soldado e imperador. Lisboa: Civilização, 2010.

A reabertura do mausoléu da família Scipioni

sábado, 24 de dezembro de 2011


Era a notícia que faltava para terminarmos o ano "com chave de ouro": o mausoléu de uma das famílias mais tradicionais da Roma Antiga será reaberto à visitação pública no próximo dia 27. Ele já estava fechado há 20 anos.

O maior representante desta família foi Cipião, o Africano, (em latim, Publius Cornelius Scipio Africanus), célebre pela atuação durante as guerras púnicas, nas quais derrotou o invasor Aníbal de Cartago, no século III a. C. O heroi romano, contudo, não foi enterrado ali. Acusado de ter recebido suborno, deixou Roma e nunca mais voltou. Diz-se que passou seus últimos em sua propriedade em Litermum (perto de Nápoles), e que antes de morrer pediu que seu corpo ficasse aí, não na Roma ingrata. Seu pedido foi atendido e seu túmulo ainda existia em Litermum, segundo o historiador romano Tito Livio. "Pátria ingrata, não te deixarei nem meus ossos", dizia seu epitáfio.

O monumento funerário, composto por uma série de galerias subterrâneas de dois metros de altura, com elegantes sarcófagos, está localizado junto à Porta di San Sebastiano, a algumas centenas de metros das Termas de Caracalla, um dos locais mais fascinantes da parte histórica de Roma.

O túmulo foi descoberto por acaso, em 1780, por dois religiosos, proprietários de um vinhedo. Os trabalhos recentes de restauração, no valor de 1,3 milhão de euros, foram financiados pela prefeitura de Roma e começaram em 2008.


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Veja o vídeo: http://veja.abril.com.br/multimidia/video/mausoleu-da-familia-scipioni-reabre-em-roma