quinta-feira, 6 de junho de 2024
Levado ao extremo, a doutrina do inconsciente psicodinâmico sugere que os únicos pensamentos autênticos que uma pessoa tem são os que o psicanalista lhe revela: todo o resto não passaria de conteúdo inconsciente disfarçado, sintomas de traumas e desejos reprimidos. O potencial manipulativo e autoritário dessa posição já foi notado por mais de um crítico.
Enquanto hipótese, o inconsciente psicodinâmico funciona de modo muito semelhante a uma teoria da conspiração. A partir do instante em que alguém aceita, como artigo de fé, a premissa de que o mundo é controlado por comunistas, marcianos ou pulsões inconscientes, instâncias confirmatórias e "provas cabais" começam a pulular por toda parte. Inferências baseadas em pareidolia (a tendência de interpretar estímulos vagos e aleatórios como tendo significado) e apofenia (tendência de enxergar conexões entre eventos independentes ou aleatórios) tomam conta do aparato intelectual.
Como um sistema baseado numa lógica tão pueril pode ter se tornado tão popular, por quase um século, e entre tantas pessoas cultas, educadas e inteligentes? Diríamos que não se deve subestimar a sedução exercida pelo poder de psicanalisar: quem domina as chaves do inconsciente é como um visionário em terra de cegos, um apóstolo entre os gentios. Alguém que conhece as pessoas muito melhor do que elas mesmas.
A força retórica desse poder presumido é bem conhecida. De repente, podemos acusar homofóbicos de estarem possuídos por desejos homossexuais que eles mesmos ignoram; filantropos, de pulsões egoístas; pecadores, de sofrerem de santidade enrustida e, inversamente, santos de não serem nada mais do que pecadores insinceros.
O que um autor realmente quer dizer é, na verdade, o oposto daquilo que se lê na página (este capítulo todo prova que morremos de amores reprimidos pela psicanálise, alguém poderia dizer). A mulher que diz "não" tem, na verdade, o desejo inconsciente de dizer "sim": um dos casos eticamente mais complicados de Freud envolveu, exatamente, o esforço do psicanalista de convencer uma menina de 18 anos (Ida Bauer, que entrou para a história da psicanálise com o pseudônimo "Dora") de que ela sentia atração sexual inconsciente, reprimida, por um adulto que havia tentado molestá-la quando ainda tinha 14.
ORSI, Carlos & PASTERNAK, Natalia. Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser lavados a sério. São Paulo: Contexto, 2023, Cap. "Psicanálise e Psicomodismos".
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