“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

«A Cruz e o Crescente», de R. Fletcher

domingo, 24 de abril de 2016

Um dos melhores livros que li recentemente por sorte também foi dos mais baratos. A Cruz e o Crescente - Cristianismo e Islã, de Maomé à Reforma (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004) revela a erudição e o poder de síntese de Richard Fletcher, professor aposentado da Universidade de York. 

Embora seja um livro pequeno, A Cruz e o Crescente surpreende e capta o interesse do leitor a cada página. Veja, por exemplo, o retrato que é passado da fase final de Alta Idade Média:

"... Entre os anos 750 e 1000, houve muitas interações entre a cristandade e o islã. Algumas foram violentas e destrutivas; outras, harmoniosas e frutíferas. O quadro, movimentado e tumultuado, apresenta guerreiros, diplomatas, convertidos, mercadores, peregrinos, estudiosos, artistas, artesãos e escravos" (p. 75).

As origens e causas das Cruzadas, bem como as suas consequências imediatas, merecem um post à parte. Por ora eu tecerei algumas considerações acerca do cap. 4 ("Comércio, coexistência e saber"), principalmente, e do cap. 5 ("Peneirando o Alcorão") e do Epílogo. 

Em 1087, os pisanos, apoiados por contingentes de Gênova e de Amalfi, atacaram e saquearam al-Mahdiyya (Mahdia, na costa entre Sfax e Susa, na Tunísia moderna). A seguir, navegaram de volta para a Itália com um enorme butim, provando que "comércio e pirataria andavam de mãos dadas" (p. 112). Para alguns historiadores, esse ataque foi uma proto-Cruzada. 

A Primeira Cruzada e o estabelecimento dos principados cristãos orientais geraram oportunidades que os mercadores italianos se apressaram em aproveitar. Os novos postos avançados precisavam de mantimentos e armamentos. Os genoveses foram os pioneiros: um ano antes da conquista de Jerusalém eles obtiveram uma série de vantagens junto ao novo príncipe normando de Antioquia, tamanho era o valor atribuído ao apoio marítimo que proporcionavam. 

Os venezianos, por outro lado, concentraram seus esforços na penetração da zona comercial do Império Bizantino nos mares Egeu e Negro. Já haviam negociado um tratado comercial antes do final do séc. X. Os turcos seljúcidas, em virtude de sua vitória na Batalha de Manzikert (1071), estavam capturando silenciosamente o interior da Anatólia (idem).

Enquanto isso, os normando se fixaram em antigos territórios bizantinos no sul da Itália e na Sicília. Em 1081, um exército normando cruzou o Adriático, conquistou Corfu e cercou Durazzo (na costa adriática da Albânia moderna). Os venezianos auxiliaram o Império, mas no ano seguinte obtiveram sólidos privilégios comerciais que se mantiveram, com altos e baixos, por um século ou mais. Eles ainda se aproveitaram, durante o séc. XII, das oportunidades que surgiram nos Estados cristãos do além-mar. Após a conquista latina do Império Bizantino, durante a Quarta Cruzada, "de potência comercial, Veneza passou a potência imperial" (p. 113). 

Os genoveses chegaram tarde à área de comércio bizantina. Sua grande oportunidade veio em 1261, quando ajudaram a restaurar um imperador grego em Constantinopla, sendo agraciados com privilégios comerciais, às custas dos venezianos. Esse foi o início de uma intensa disputa entre as duas cidades por primazia comercial (idem).

Para encerrar esse tópico, cumpre destacar que, além dos pisanos, venezianos e genoveses, Marselha e, especialmente, Barcelona, alcançaram sucesso comercial e urbano nos séculos XII e XIII (p. 114).

"A parte norte dos Estados cruzados do além-mar ficava na ponta ocidental de uma rota terrestre que avançava pelo norte da Mesopotâmia e do Irã até a Ásia Central e, finalmente, a China, caminho que seria trilhado pela família Polo no século XIII" (p. 115). 

Aproximadamente entre 1050 e 1250, "uma hegemonia mercantil da Europa ocidental e cristã gradualmente suplantou a hegemonia muçulmano-judaico-grega que até então predominava" (p. 116). Mais tarde essa supremacia foi abalada pela expansão dos turcos otomanos, mas jamais foi derrubada. Essa expansão conviveu com a pirataria no Mediterrâneo, endêmica nesse mar até o séc. XIX (idem). 

Compreender essa mudança de eixo hegemônico não é tão simples. O comércio floresce melhor em sociedades que desenvolveram instituições capazes de promover a paz, a ordem e a estabilidade. "Numa visão ampla e geral, a cristandade lentamente alcançou essa condição, enquanto o Mediterrâneo (...) lentamente a perdeu" (p. 117). Contudo, um exame mais cuidadoso derruba esse argumento. A Itália e a Coroa de Aragão não se destacaram pela paz, ordem e estabilidade durante a Idade Média, ao contrário dos Estados da Europa setentrional, mais avançados em termos institucionais. 

Essa época mercantilista desenvolveu uma cultura compartilhada, como provam o intercâmbio entre os vocábulos e a difusão dos algarismos indo-arábicos entre os séculos XIII e XIV (p. 117). Apesar disso, "fosse nos Estados do além-mar, na Sicília ou na Espanha, muçulmanos e cristãos viviam lado a lado, mas não se misturavam" (p. 124). "(...) As relações entre cristãos e muçulmanos durante a Idade Média foram marcadas pela persistente incapacidade de compreensão mútua" (p. 164). 

Ibn Batutah (+ 1378), um dos viajantes mais incansáveis que existiram, e Ibn Khaldun (1332-1406), "um dos raros pensadores históricos de porte", tinham em comum o desinteresse pelo Ocidente cristão (pp. 157-159). O único exemplo de interesse islâmico sobre a cristandade dos séculos XIV e XV foi o de Rashid al-Din. Em todo o caso, a superficialidade de sua "investida no ocidentalismo" é prova da falta de interesse que os estudiosos islâmicos tinham pelo Ocidente (pp. 159-160).

"Na cristandade, ao contrário, havia um ávido interesse pelo Dar al-Islam (...). Havia o fascínio, que resvalava para uma admiração cautelosa pelo poder e eficiência do Império Otomano" (p. 160). 

Em 1321, circulavam amplos rumores de que o emir de Granada e o sultão mameluco do Egito usavam judeus e leprosos como sua rede de agentes numa trama para envenenar os poços da França e da Espanha. Por ocasião da Peste Negra (1347-1351), houve quem responsabilizasse os muçulmanos (p. 163). Em suma, "as relações entre cristãos e muçulmanos durante a Idade Média foram marcadas pela persistente incapacidade de compreensão mútua" (p. 164).      

1 comentários:

Rodrigo M disse...

Obrigado, Raphael... Já é o segundo livro que compro devido a seus comentários... Abraço.