terça-feira, 24 de julho de 2018
Garoto escrevendo com sua irmã, 1875, óleo sobre tela de Albert (Albrecht) Samuel Anker (1831-1910). Albert Anker foi considerado o "pintor nacional" da Suíça no século XIX.
Que a escrita tem seu futuro assegurado, independentemente de qual seja seu suporte (material, digital), não resta a menor dúvida. Nesse sentido, gostaria de tratar de um tipo especial de escritor - o historiador - e não apenas como cientista da História, mas como artista. Como "artista", refiro-me ao historiador como um escritor criador no mesmo nível do poeta ou romancista. Entenda: não concebo a palavra "artista" como uma forma de louvor, mas como uma categoria, como escriturário, operário ou ator.
O pensamento aplicado pelo historiador à sua matéria pode ser tão criativo quanto a imaginação aplicada pelo romancista à sua. E, quando se trata da escrita como arte, Edward Gibbon não é um artista das palavras inferior a Charles Dickens.
George Macaulay Trevelyan, um professor de história moderna da Universidade de Cambridge, disse num famoso ensaio que a história devia ser a exposição de fatos sobre o passado, "em todo o seu valor emocional e intelectual, a um amplo público, através da difícil arte da literatura." Note-se: "amplo público". Trevelyan sempre defendeu a escrita da história para o leitor comum, em contraposição à escrita apenas para a "torre de marfim" dos eruditos. Isso porque ele sabia que quando escrevemos para o grande público precisamos ser claros e interessantes, e esses são os critérios que determinam um bom texto.
Admito que sempre me senti como artista quando trabalho num texto. Não vejo por que a palavra tenha que se restringir aos autores de ficção e poesia, enquanto que nós outros somos amontoados sob o desprezível rótulo de "não-ficção", como se fôssemos restos. Quem sabe, algum dia, o mercado editorial crie as categorias de poetas, romancistas e realistas. Ficaria melhor.
Acrescento ainda que discordo da definição do dicionário, de que a ficção é aquilo que se distingue do fato, da verdade e da realidade, uma vez que a boa ficção (que está longe das porcarias), mesmo sem qualquer relação com os fatos, habitualmente "baseia-se" na realidade e "percebe" a verdade - e frequentemente de forma mais lúcida do que as obras de certos historiadores.
O artista tem uma visão "extra", e uma visão "interior", acrescida da capacidade de expressá-la. Ela oferece uma visão, ou um entendimento, que o observador ou leitor não teria ganho sem a ajuda dessa visão criativa do artista. Nós, realistas, pelo menos aqueles de nós que aspiram a escrever literatura, fazemos a mesma coisa. Assim, os grandes historiadores baseiam-se no estudo, observação e acumulação de fatos, mas sem dúvida também usaram sua imaginação. Foi isso que lhes deu uma visão extra. A imaginação amplia os fatos existentes, extrapola-os, por assim dizer, oferecendo com isso um porquê que faltava sobre o que aconteceu.
Além disso, o historiador deve nutrir a mais calorosa simpatia humana. Ela é essencial ao entendimento do motivo. Sem simpatia e imaginação o historiador pode copiar números de um rol de contribuintes para sempre - ou contá-los pelo computador -, mas jamais poderá conhecer ou ser capaz de retratar as pessoas que pagavam os impostos.
O processo criativo tem três partes. Primeiro, a visão extra com a qual o artista percebe uma verdade e a transmite pela sugestão. Segundo, o meio de expressão: a língua para os escritores, a tinta para os pintores e por aí vai. Terceiro, plano ou estrutura.
Quando se trata da linguagem, as metas, como já disse, são a clareza, o interesse e o prazer estético. Quanto à estrutura, minha forma pessoal é a narrativa - que hoje é vista com desconfiança pelos acadêmicos "avançados". A história narrativa não é tão simples, nem tão direta, quanto poderia parecer. Exige organização, composição, planejamento, tal como uma pintura de Rembrandt.
A estrutura é sobretudo um problema de seleção, uma tarefa angustiante, uma vez que há sempre mais material do que se pode usar ou colocar numa história. Assim, o problema é como e o que selecionar de tudo o que aconteceu sem, pelo próprio processo de seleção, exagerar ou amenizar, o que seria uma violência à verdade. Não se pode colocar tudo; o resultado seria uma massa sem forma. Há outros problemas de estrutura peculiares ao preparo de um livro de história. Como explicar o pano de fundo, e mesmo assim fazer a história avançar; como criar o suspense e manter o interesse numa narrativa cujo final é, para dizer o mínimo, conhecido. Se alguém disser que isso não requer uma escrita criativa, só posso lhe responder que tente escrever história.
Adaptado de TUCHMAN, Barbara Wertheim. A prática da história. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 38-42.
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