“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

De quem é a culpa?

quarta-feira, 28 de novembro de 2012


- Tu foste incendiar a Biblioteca?

- Sim, queimei-a.

- Mas é um crime inaudito e ruim,

Que mesmo contra ti, infame, praticaste!

A luz que tua alma aclara, intrépido, apagaste!

É tua própria luz que acabas de soprar.

Isso que teu ódio ímpio e louco ousa queimar

É teu bem, teu tesouro, a herança de tua alma,

O livro te protege, instrui, anima e acalma.

O livro toma sempre a tua defensiva.

Vale uma biblioteca o ato de fé que, agora,

Cada uma geração, nos livros rediviva,

Presta: é a noite rendendo um testemunha à aurora.

Oh! nesse venerando acervo de verdade,

Nessas obras geniais jorrando claridades,

Tumba da Antiguidade erguida em repertório.

Nos séculos de luz, nesse genuflexório,

No passado, lição que soletra o porvir.

Nisso que se criou para não se extinguir,

Nos poetas, nos heróis, belos, imarcescíveis,

Na ruma divinal dos Eschylos terríveis,

Dos Homeros, dos Jobs, de pé sobre o arrebol,

Em Moliére, em Voltaire e Kant, a luz do sol,

Ímpio! foste chegar uma tocha inflamada!

Todo o espírito humano em cinza, em fumarada!

Esqueceste que o livro é o teu libertador?

La na altura ele esta, como altivo condor:

Brilha. Porque ele brilha é que nos ilumina;

Destrói o cadafalso, a miséria, a chacina.

Ele fala, e nos diz: - Nada de escravo ou pária.

Abre um livro,vai ler: - Platão, Milton, Beccária,

Esses profetas: Dante e Corneille, e Shakespeare;

A alma imensa que tem, em ti sentes surgir;

Lendo-os, sentes-te igual a eles todos, altivo;

Lendo, tornas-te meigo, austero e pensativo,

Eles, em tua mente, aumentam de grandeza.

À escuridão de um claustro a alva vem dar clareza.

À proporção que ele entra e afunda em tua mente,

Tornas-te mais feliz, tornas-te mais vivente.

Tua alma, torna-se apta a arguida responder.

Reconheces-te bom e sentes derreter,

Como a neve ao calor, a vaidade sombria,

O mal, o preconceito, o dogma, a tirania!

Pois, no homem o saber é o que chega primeiro;

Depois a liberdade. Esta divina luz

É tua, e foste tu que, de pronto, a apagaste.

O livro atinge os fins que tu próprio sonhaste.

Entra em teu pensamento e solta e desenleia

Os grilhões com que o erro a verdade aperreia.

A consciência é um nó górdio horrível, que asfixia.

O livro é teu guardião, teu médico, teu guia.

Tua raiva ele acalma e tira-te a demência.

Eis o que perdes, tu, por tua intransigência.

O livro é teu tesouro; é a riqueza, é o saber,

O direito, a verdade, a virtude o dever,

A razão, aclarando a tua inteligência.

E TU QUEIMASTE TUDO, INFAME!...

- EU NÃO SEI LER!


Victor Marie Hugo

(Extraído da coleção Antologia da Literatura Mundial – Poetas Estrangeiros – tradução de Modesto de Abreu – Gráfica e Editora Edigraf Ltda., p. 74)

Um ode à beleza feminina

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Outrora admirava-me de que uma mulher tivesse sido a causa de uma guerra
Tão grande entre a Europa e a Ásia, junto aos muros de Pérgamo;
Agora vejo que tu, Páris, foste sábio, e tu, Menelau,
Tu, porque reclamavas, tu, porque demoravas.
Na verdade, o seu rosto era digno até de que Aquiles morresse por ele; 
Até de que Príamo o aceitasse como causa da guerra.Se alguém quer superar em fama as antigas pinturas,
Tome a minha amada como modelo na sua arte:
Quer mostre aos povos do Ocidente, quer mostre aos do Oriente,
Inflamará de amor os do Oriente, inflamará também os do Ocidente.
Ao menos que eu me mantenha nestes limites! Ah! Se tivesse vindo
Um outro amor, para eu morrer mais amargamente!

Propércio, Elegias, Livro II, 3, 35-46.

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- Imagem: «Helen of Troy», por Evelyn De Morgan (1898).

«Os Gregos», de Kitto

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Não estava nos meus planos comprar esse livro, nessa altura em que aguardo ansioso pela minha defesa. Passei pela Bulhosa, que fica no Campo Grande, bem perto de onde moro, e por acaso vi-o em preço de saldo (pelo que me lembro, paguei menos de 6€ por ele). Abri-o, comecei a lê-lo, e decidi comprá-lo. Eis a sua referência:

KITTO, H. D. F. Os Gregos. Tradução e prefácio de José Manuel Coutinho e Castro; revisão de Maria Helena da Rocha Pereira. 3ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1990.

O lançamento do livro data de 1951, na Inglaterra. O prefácio, muito acertado, diz o seguinte:

Obra séria e profunda, aliando honestidade da investigação e à segurança informativa o ‘humor’ tão caracteristicamente britânico, constitui entusiástica e nobre apologia do espírito ático e da democracia ateniense.

O tema não é o que os Gregos fizeram, mas o que foram. Por tudo isso, há vários elementos originais ou pouco destacados pelos demais helenistas. Já na introdução, o autor destaca uma interessante questão: o termo «bárbaro» não tem o mesmo sentido atual; significava apenas aqueles que não falavam o idioma grego. Além disso, Kitto admite que tratou os homens grandes de preferência aos insignificantes, e dos filósofos mais do que os patifes. É que, para ele, os patifes são bastante iguais em toda a parte.

O livro está, assim, repleto de elementos interessantes. Limitar-me-ei a destacar alguns dos primeiros capítulos. No cap. II, «A formação do povo grego», o autor chama a atenção que, por vezes, as lendas têm sido confirmadas num grau espantoso (p. 29). Está aí uma questão metodológica interessante, muitas vezes desprezada. Nesta mesma página, destaca que há inúmeras provas de que, desde os primeiros alvores do terceiro milênio a.C. até c. 1400 a.C., Creta, e em especial a cidade de Cnossos, foi o centro de uma brilhante civilização. O autor prova, em diversos momentos, ser um linguista, um historiador que domina o idioma das suas  fontes; assim, com autoridade, destaca: «A língua grega é, por natureza, exacta, subtil e clara» (p. 47).

No cap. III, «O país», trata considerações sobre a geografia da Grécia, «terra de grande diversidade». Mesmo no séc. V a.C., muitos dos cidadãos atenienses eram, antes de tudo, lavradores. As invasões espartanas os transformaram em moradores da cidade (p. 51). As comunicações por mar eram fáceis e, desde os tempos pré-históricos, a Grécia «era convidativa e aberta aos comerciantes e outras pessoas de Creta, e depois da Fenícia (...)» (p. 53). Apesar disso, em seus primeiros tempos, os Gregos não eram comerciantes. Fator muito importante para o desenvolvimento da democracia ateniense, o clima, é, no conjunto, «muito agradável e constante» (p. 54). A escravatura, mas principalmente a vida frugal, permitia aos atenienses gozar o ócio que tanto apreciavam (p. 62). E o ócio era tão importante que só a glória era mais exaltada que ele.

Poucos foram tão sociáveis como os Gregos, e graças a isso, eles aguçaram sua inteligência e aperfeiçoaram as suas maneiras. Tal foi o caso de Sócrates, um homem que modificou a corrente do pensamento humano simplesmente falando das ruas da cidade (p. 63). Talvez, mais que qualquer outro, Sócrates combina a simplicidade e a grandiosidade dessa civilização que até hoje nos fascina.

«A guerra no Império Romano Tardio», de Raphael

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Eis o meu primeiro livro. Como li certa vez em um livro do Eduardo Galeano (ah, tristes anos de leituras esquerdistas...), escrever um livro é como lançar uma garrafa com uma mensagem ao mar. As probabilidades de que alguém os leia é sempre remota.

Para início de conversa, eis a referência da obra:

TEIXEIRA, R. L. A guerra no Império Romano Tardio. Prefácio de Ricardo da Costa e orelhas de Rogério Rosa. Vitória: DLL-UFES, 2012.

O texto-base foi o da monografia que apresentei ao Departamento de História da UFES quando concluí a licenciatura e o bacharelado, em 2009. Naquela altura tive a honra de ser orientado pelo Prof. Dr. Ricardo da Costa, que também é o autor do prefácio. A propósito, o prefácio está disponível em seu SITE.


Já o autor das orelhas do livro, o Prof. Dr. Rogério Rosa, foi o meu professor de História do Brasil Colônia, Teoria e Metodologia da História. Atualmente é professor adjunto de Teoria e Metodologia da História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). São dele as palavras que se seguem (volto a seguir):

O texto que Raphael apresenta ao leitor permite acompanhar o processo de fabricação do trabalho do historiador com todo o rigor acadêmico exigido àqueles que se dedicam ao ofício. Para narrar sua história o autor escolheu como guia um personagem, Vegécio, e uma obra, Epitoma rei Militaris. Na oficina do historiador a escolha da fonte marca profundamente o desenvolvimento do produto final. O contexto de sua produção, a linguagem, os valores individuais e coletivos do sujeito, bem como as forças motrizes da época deixam marcas indeléveis no documento. Identificá-las é o desafio. Diante das escassas informações sobre o sujeito objeto de sua pesquisa, Raphael recorreu a uma estratégia cara ao historiador, qual seja a de estabelecer relações do texto de Vegécio com outras fontes da época, comparar a proposta apresentada no Epitoma com experiências militares de outros períodos históricos, além de evocar uma miríade de autoridades em história romana para sustentar seus argumentos. Para além desse procedimento que poderíamos nominar de científico há que ressaltar os subjetivos: a evocação afetuosa feita ao pai, militar da reserva, a inquietação diante da banalização da violência e da guerra na atualidade e a confissão de que por um momento desejou ingressar nas Forças Armadas. Ao fim, a pesquisa de Raphael nos abre uma janela para o passado e outra para o presente, e na interseção desses tempos, a oportunidade de observar as memórias, concepções e estratégias de um historiador em formação.

A esses dois mestres devo muitíssimo do meu aprendizado inicial de historiador. Mais uma vez, meu muito obrigado a ambos.

Apesar do título (ah, os interesses editoriais...), o livro trata apenas da guerra romana no século IV d.C., com rápida contextualização dos séculos precedentes. No século em questão produziram-se mudanças cruciais na estratégia, na tática e na organização do exército romano. Foram reflexos das mudanças na governação do Império, que desde o século III era cada vez mais acossado pelas invasões bárbaras e pelas guerras civis e golpes de Estado. No livro eu procuro explicar esse processo, tendo como principal fonte o Epitoma rei militaris, tratado escrito por Flávio Vegécio, no fim do séc. IV.

No mestrado, como era de se esperar, eu procurei pesquisar um tema mais delimitado: a cristianização do exército romano e as relações do processo com a política imperial. A dissertação já está pronta e devo defendê-la brevemente. Pretendo publicá-la também, e vocês podem conferir na internet a CAPA e DISSERTAÇÃO. Ainda mais interessante, será, de facto, uma "part two" da obra que agora lanço. Estou muito contente pelos frutos dessa pesquisa sobre a qual tenho me debruçado já há alguns anos.

Quem sabe se a tese de doutorado não forma uma trilogia... veremos.
 

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Imagens: representações modernas de soldados romanos do século IV.

Atenção: o livro está disponível para compra no AGBOOK.

«Teodosio», de Hartmut Leppin

sexta-feira, 6 de julho de 2012


Descobri recentemente que a editora espanhola Herder publicou várias biografias de interessantes personagens da Antiguidade: Sila, Cleópatra, Augusto, Pompeu, Calígula, Flávio Josefo, Juliano, Atenais, dentre outros. A editora está assim de parabéns, especialmente pelo fato de a maioria se tratar de traduções, várias delas a partir do complicadíssimo idioma alemão.

Assim, na sequência das dicas de leitura deste blogue, indico uma dessas biografias, lida há poucas semanas:

LEPPIN, Hartmut. Teodosio. Traducción de Marciano Villanueva. Barcelona: Herder, 2008.


Eis a sinopse:

¿Se sirvió el Dios cristiano –ya hegemónico en el siglo IV– de un emperador nacido en Hipania y afincado en Constantinopla para afirmar en el orbe conocido la fe verdadera trinitaria? ¿O bien fue el emperador segoviano quien, desde el extremo oriental del Imperio, se sirvió de la una fe única en un único Dios trinitario para consolidar la unidad de su Imperio, a ejemplo de su predecesor Constantino?

Esta biografía del emperador Teodosio es también, y sobre todo, un inmenso tapiz en el que bulle la efervescencia del Imperio romano en el último tercio del siglo IV de nuestra era. Descomunales personajes diseminados por el espacio mediterráneo de los cuales –bajo el bisturí impasible del historiador– uno puede deslindar hasta qué punto fueron héroes y santos o bien meros usurpadores y estrategas: obispos como Ambrosio de Milán, Dámaso de Roma, Cirilo de Jerusalén, Demófilo y Nectario de Constantinopla, Petros de Alejandría, Gregorio de Nacianzo; usurpadores como Máximo y Eugenio; paganos y cristianos herejes de todo pelaje y distinta grandeza: apolinaristas, eunomianos, homoiusianos, maniqueos, priscilianistas; bárbaros del Este presionados por el hambre y las guerras y finalmente asimilados a los ejércitos imperiales: godos, alanos, hunos…

¿Y a todo esto, en qué consiste la grandeza de Teodosio? Fueron muchos los temas en los que Teodosio siguió de cerca los pasos de sus predecesores. Lo novedoso en su gobierno parece situarse en la capacidad de servirse del cristianismo, que se había convertido en una potencia social de primer orden, para afirmar su poder.

In:  Herder 


Quando soube desse livro, e vi que o autor é alemão, já estava quase certo de que se tratava de uma boa obra - nunca soube de um historiador germânico que fizesse um mau trabalho. E a expectativa se confirmou. Trata-se de um livro erudito, bem escrito e objetivo, embora forneça um panorama interessante acerca do quadro político-militar e religioso do século IV. Dezenove figuras - dentre elas várias representações numismáticas - e três mapas facilitam a compreensão da narrativa. Todos os capítulos são devidamente referenciados, e Leppin se utilizou largamente da documentação primária disponível. A obra conta ainda com um oportuno glossário.

O imperador Teodósio (379-395) que é retratado por Leppin é um homem pragmático e religioso, dividido assim por essa ambiguidade existencial. Homem pacífico, tolerante e integrador, viu-se desde o início pressionado pelas consequências nefastas da arrasadora derrota romana em Adrianópolis (378). Em muitos casos teve tremenda sorte (alguns apelariam à Providência), sendo talvez a principal delas a paz com a Pérsia, que durante todo o seu reinado esteve ocupada com seus próprios problemas. Em compensação, teve ameaças de sobra no quadro político interno, com usurpadores como Máximo e Eugênio, que levaram-no a empregar a nova força militar do exército romano tardio: os foederati bárbaros. Os visigodos, aliados do Império após invadirem-no em fins da década de 370, pagaram um preço de sangue alto a Teodósio.

De modo geral, Leppin se sai muito bem ao lidar com uma das questões mais problemáticas da Antiguidade Tardia: as ligações entre a religião e o poder. Demonstrou ter a imparcialidade que se espera de um historiador. Isso não quer dizer que sua análise seja isenta de erros - por vezes ele se inclina ao ceticismo ao considerar os interesses do imperador acima de sua fé. Mas isso não compromete de modo algum sua narrativa, e com a escassez de fontes sobre o assunto, pode ser que tenha razão. O mais discutível neste ponto é a sua opinião de que a novidade no governo de Teodósio foi a capacidade imperial de servir-se do cristianismo. Ora, Constantino, no início do século IV, deu mostras indiscutíveis dessa capacidade. 

O balanço final sobre o Teodósio enquanto estadista é muito oportuno: "No fue un modelador de la historia, un impulsor, no hay en él nada de brillante" (p. 282). Mesmo assim, a Igreja agiu corretamente ao conceder-lhe o título de "o Grande" e a historiografia pode prosseguir no mesmo caminho, visto que Teodósio soube aproveitar a força da Igreja de Nicéia aos seus próprios fins, ao passo em que os cristãos alcançavam crescente influência tanto no cotidiano quanto no estilo de governo. 

Enfim, trata-se de um livro a ser lido. Até porque o preço é módico (26 €), sobretudo se considerarmos um pensamento do professor que inspirou-me a publicar essas dicas de leitura: "Se você acha caro o valor do conhecimento, procure saber o preço da ignorância."

Portugal Romano

sábado, 5 de maio de 2012

A Lusitânia tornou-se província romana a partir de 29 a.C. Era a província ocidental mais remota, e integrava o atual território português ao sul do Douro, mais a Estremadura e parte da província da Salamanca (Espanha). O domínio romano prosseguiu até 411, quando a Lusitânia passou ao controle dos bárbaros alanos. A capital da província era Emerita Augusta, atual Mérida. Olisipo (atual Lisboa), uma das cidades mais antigas da Europa, era também uma das mais importantes da província, e estava isenta de impostos por ter se aliado aos romanos durante as guerras de conquista. Hoje é possível conhecer parte de seu passado romano graças à reconstrução da cidade após o terramoto de 1755. Um dos monumentos mais notáveis da época romana são as Galerias romanas da rua da Prata. Vale a pena conferir também o núcleo arqueológico da rua dos Correiros e as termas romanas dos Cássios.  

Mais informações em: Portugal Romano

Passado e passados

sábado, 7 de abril de 2012


"Nada é mais antigo que o passado recente." Assim se pronunciou o grande Nelson Rodrigues (1912-1980), dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro. A frase - contraditória à primeira vista - serve-nos de munição para aniquilarmos a terminologia mal forjada de uma corrente da historiografia: a dita "História do Tempo Presente." Não existe História do Tempo Presente, assim como não existe História do Futuro. O presente é um brevíssimo lapso temporal, fugidio e inacabado. O tempo no qual escrevia a frase anterior está já no passado, e o passado, como sabemos, é um dado imutável. Por mais que se tente, por mais queira modificá-lo, o máximo que se conseguirá é produzir versões diferentes do que ele foi. Versões essas que nada mais são que mentira, muitas vezes intoxicadas por ideologias e preconceitos.

Já em seus primórdios a História dedicava-se aos acontecimentos mais recentes, como atesta as obras de Heródoto (485? a.C. - 420 a.C.), Tucídides (entre 460-455 a.C. - c. 400 a.C.) e Políbio (c. 210/200 – c. 127 a.C.). Pensava-se que o passado mais remoto seria impossível de ser estudado. A tradição oral, os lapsos, as perdas e os esquecimentos tornariam-no irreconhecível. Ainda hoje há quem pense assim quando, na verdade, a análise dos fatos recentes pode ser ainda mais complicada. Ora, ao observarmos a atualidade somos estudiosos e ao mesmo tempo objeto, além de que o excesso de informação coloca-nos um grande desafio. Não usufruimos da distância temporal e emocional tão oportuna que temos, por exemplo, ao estudarmos a História da Antiguidade.

No meu quase um quarto de século de vida (completarei em 13/07), testemunhei grandes transformações. Sempre apreciei a atualidade internacional e sobretudo nestes últimos anos ela tem sido especialmente rica. Ainda não possuía consciência política quando caiu o muro de Berlim (1989) e a moribunda URSS (nata de 1991). A transição do antigo bloco comunista para o mundo capitalista e democrático (transição essa longe de sua conclusão) é guardada em minha memória sobretudo pela figura espalhafatosa de Bóris Yeltsin (1931-2007). Apesar de ser miúdo, lembro-me perfeitamente das imagens da Guerra do Golfo (1991), quando os EUA e as força de sua coligação derrotaram de forma avassaladora o Iraque do tresloucado Saddam Husseim (1937-2006), executado após a Guerra do Iraque (2003). Esta foi um bizarro ato da administração de Bush filho, justificado dentro do contexto da Guerra ao Terror, desencadeada após aos atentados terroristas em 2001, quando quase três mil vidas foram ceifadas em solo americano, e as torres gêmeas do World Trade Center foram abaixo, bem como uma parte do Pentágono, atingindo em cheio o orgulho ianque. No Brasil, os anos 90 foram marcados pelas primeiras eleições diretas da redemocratização, o impeachment de Collor, a estabilização e abertura da economia pelos presidentes Itamar Franco e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).

Em 2002 eu já estudava no internato, iniciando uma importante fase de minha vida. Naquele ano a seleção brasileira de futebol venceu a Copa do Mundo do Japão e da Coreia e sagrou-se pentacampeã. No segundo semestre o PSDB perdeu as elições no 2º turno e Lula, do PT, realizou seu sonho de se tornar presidente. Embora com o governo mergulhado em escândalos de corrupção, reelegeu-se em 2006, permanecendo no poder até 2010. Ele conseguiu ainda fazer a sucessora, a primeira mulher a governar o Brasil, no poder até hoje.

Desde a "era FHC" o país vem alcançando mais projeção internacional, embora as diretrizes do PT sejam um tanto atrapalhadas às vezes (como apoiar as ditaduras dos aiatolás, no Irão, e dos irmãos Castro, em Cuba). O país passou a acalentar pretensões de ter um assento permanente no obsoleto Conselho de Segurança da ONU. Ao lado de Rússia, Índia, China e agora África do Sul, forma o grupo dos países emergentes (BRICs).

Em todo o mundo, grandes problemas econômicos, políticos, sociais e ambientais continuaram a receber destaque. Novas doenças e pestes nos assombraram com alguma regularidade. Golpes de Estado, guerras civis, movimentos separatistas e emergência de novas nações em um espectro político para lá de confuso também pipocaram. Como se tudo isso não bastasse, uma crise econômica mundial estourou em 2008. Os culpados, o 1%, como acabaram denominados pelos movimentos de ocupação que surgiram para contestar o sistema. O 1% nada mais seria que os especuladores, aqueles que movimentam o capital financeiro sem produzir nada, arrastando economias de países inteiros para a crise devido aos seus malabarismos financeiros irresponsáveis. Nesse mundo atribulado, uma dose de esperança: Barack Hussein Obama II, o primeiro negro a se tornar presidente dos Estados Unidos da América. Tomou posse em 20/01/2009, e logo viria a se revelar uma decepção. Embora tenha vencido o nobel da paz no mesmo ano, umas das poucas coisas que fez nesse sentido foi retirar as tropas americanas do Iraque, onde a situação já era insustentável. Não fechou a infame prisão de Guantánamo e manteve a ocupação do Afeganistão. Foi pego de surpresa com a "Primavera árabe", um movimento popular que passou a exigir a renúncia dos ditadores no norte da África e no Médio Oriente.

Entre o início da crise e estes acontecimentos que acabei de descrever, conclui a licenciatura e o bacharelado, a seguir comecei a lecionar, tomei posse em um concurso e pedi exoneração pouco depois a fim de embarcar rumo ao mestrado na Universidade de Lisboa (2010). Ao chegar no aeroporto, ainda com poucas informações sobre o que me aguardava, um jornal esquecido em um assento deu-me as boas-vindas. A manchete dizia o seguinte: "O Primeiro-Ministro prevê um ano terrível para os portugueses". Considerando que os políticos por norma sempre tentam esconder ou minimizar uma catástrofe, vi que estava a entrar num mundo caótico. Poucos dias depois a República Portuguesa comemorava 100 anos de existência (05/10/2010), sem grandes razões para celebrar. Nos meses que se seguiram o governo finalmente cedeu e suplicou um pacote de ajuda financeira junto ao famigerado FMI, sendo obrigado a acatar uma série de exigências que quase sufocaria as vidas dos trabalhadores. A Espanha bate recordes de desemprego, e na Itália a situação não é das melhores (tem pedido "socorro" para que seus antigos e belos monumentos, como o Coliseu, possam ser preservados). Na Grécia a situação é gravíssima, sendo que há alguns dias um aposentado suicidou-se perto do Parlamento por recusar-se "a buscar comida no lixo." É a crise (quiçá o ocaso?) do Velho Mundo.

No presente, a comunidade internacional se incomoda com as pretensões nucleares do Irão e da Coreia do Norte (na 3ª geração de ditadores comunistas endeusados), além dos massacres sem interrupção na Síria. Um golpe de Estado e a instalação de uma junta militar no Mali revelou, mais uma vez, como boa parte do continente africano está longe de alcançar a maturidade institucional e democrática.

Assim segue o mundo, com velhos e novos problemas. Mas, no fundo, em essência a humanidade continua a mesma. Como dizia o Pregador (Salomão?): "Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: Veja: isto é novo, ela já existia nos tempos passados." Eclesiastes 1, 10.


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Imagem: A Persistência da Memória (1931), 24cm x 33 cm, de Salvador Dalí.