“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos A Verdade no Nacionalismo

domingo, 24 de novembro de 2019

1. Quando os revolucionários franceses adentraram no cenário político mundial, foi com a declaração de que dali em diante a nação comandaria a lealdade do cidadão. Vinte anos mais tarde, com a expansão napoleônica e a disseminação da vontade francesa pela Europa, dois milhões jaziam mortos e uma concepção de vida política completamente nova adentrou a consciência dos europeus. Em todo o continente, movimentos nacionalistas levantaram-se contra as monarquias locais e as comunidades imperiais. 

2. Depois da desordem provocada por Napoleão, a paz. Desse momento até 1945, quando a Alemanha encontrava-se em ruínas e os países do Leste Europeu caíram sob o jugo soviético, surgiu o consenso de que a Europa havia sido dilacerada pelo nacionalismo e que, por isso, as lealdades nacionais deveriam dar lugar a outra coisa, ainda por ser definida no processo de integração europeia. 

3. O nacionalismo, como uma ideologia, é perigoso apenas à medida que as ideologias são perigosas. Preenche o espaço deixado vago pela religião e, ao fazê-lo, impele o verdadeiro crente a exaltar a ideia nacionalista e a buscar nesta concepção aquilo que ela não pode oferecer - o propósito último da vida, o caminho da redenção e o consolo para todas as aflições. Essa é a ideia nacional de Sieyès e da Alemanha nazista, mas não é a ideia de nação tal como se apresenta na vida comum do cotidiano dos europeus. 

4. Para as pessoas comuns, que vivem em livre associação com seus semelhantes, "nação" significa apenas a identidade histórica e a lealdade que as une no corpo político. Tal sentimento pode ser inflamado pela guerra, comoção civil e ideologia, e essa excitação comporta vários graus. Em condições normais, no entanto, esses sentimentos são apenas pacíficos e uma espécie de paz entre vizinhos. 

5. É porque somos capazes de definir a nossa condição de membro de uma sociedade em termos territoriais que, no Ocidente, gozamos das liberdades elementares que são, para nós, o fundamento da ordem política. Isso se remonta ao século XVIII, quando a influência do Iluminismo se espalhou amplamente pelo mundo cristão e as leis, além de seculares, se possível passaram a ser neutras em relação às diversas religiões dentro do país. 

6. Nossa herança de lei secular é preciosa e deve ser protegida contra as muitas ameaças que pesam contra ela. Por exemplo, há que se ter cuidado em relação à opinião majoritária, que pode estar errada; o desejo da maioria pode ser malévolo. O indivíduo é mais importante do que a maioria da qual discorda, e por isso ele precisa ser protegido. Oposição, discordância, livre manifestação e a solução conciliatória como regra pressupõem uma identidade comum. Tem de haver uma primeira pessoa do plural, um "nós".

7. A religião providencia essa primeira pessoa do plural, mas esse tipo de "nós" dificilmente se relaciona com a política democrática. Particularmente, não aceita a divergência entre os fiéis e os infiéis, e essa é a razão pela qual as democracias precisam de um "nós" nacional, e não um "nós" religioso ou étnico. O Estado-Nação, como o concebemos, é o subproduto da sociabilidade moldada por incontáveis acordos estabelecidos entre cidadãos que falam o mesmo idioma e vivem próximos. Isso foi absorvido pelas minorias étnicas e religiosas dentro de seu território. 

8. Ao se analisar a história mundial, notamos que onde quer que as pessoas se identifiquem em termos que não são compartilhados por seus vizinhos, o Estado, então, fracassa diante do primeiro golpe sério. Recentemente, isso ocorreu na antiga Iugoslávia, na Síria, na Somália e na Nigéria. Vemos esse fracasso na tentativa vã dos modernos Estados islâmicos de viver de acordo com a rígida sharia - todos devem aprender a lição de que, enquanto a lei secular se adapta, a lei religiosa perdura. As leis que nós criamos, ao contrário das leis divinas, são elaboradas para os nossos propósitos, e assim estamos certos daquilo que significam.  

9. A União Europeia nasceu da crença de que as guerras na Europa foram causadas pelo sentimento nacionalista e que era necessária uma nova forma de governo transnacional que unisse os povos em torno de um projeto comum em uma coexistência pacífica. Infelizmente, não é assim que as pessoas se identificam. O bloco europeu foi ampliado, permitindo aos cidadãos dos países recém-admitidos a fixarem residência em qualquer território dentro da União Europeia, aumentando o ônus dos nacionais e gerando reações extremas como o Brexit, em 2016. 

10. Ao contrário da experiência europeia, nos Estados Unidos o federalismo criou um Estado-nação. Isso aconteceu a despeito da Guerra de Secessão. A comunidade estadunidense instituiu um estado de direito secular, uma jurisdição territorial e um idioma comum em um lugar em que as pessoas reivindicavam como sendo sua pátria. Nessa comunidade, as pessoas tratavam-se como semelhantes, e não como companheiros de uma mesma classe, religião ou grupo étnico. A lei deveria funcionar dentro de fronteiras territoriais definidas por vínculos anteriores entre as pessoas, e não por qualquer burocracia transnacional. 

11. A democracia exige fronteiras, e elas precisam ser as do Estado-nação. Quaisquer modos pelos quais as pessoas venham a definir a própria identidade em termos do lugar a que pertencem têm um papel a desempenhar na consolidação do sentido de nacionalidade. Um idioma e um currículo comuns têm um efeito semelhante ao da transformação da familiaridade, da proximidade, do hábito cotidiano em fontes de um vínculo comum. 

12. O aspecto essencial sobre as nações é que crescem de baixo para cima por hábitos desenvolvidos a partir da livre associação entre vizinhos e que resultam em lealdades que são anexadas ao lugar e à sua história, e não à religião, à dinastia ou, como na Europa, a uma classe política que se autoperpetua. Nações podem mesclar-se (caso do País de Gales, Escócia e Inglaterra) ou podem dividir-se como os tchecos e eslovacos. As fronteiras nacionais podem ser vulneráveis ou seguras, mas, em todo caso, oferecem aos povos uma identidade com a qual sintetizam os seus direitos e deveres como cidadãos, e a fidelidade aos mais próximos aos quais confiam a paz cívica. 

13. Aqui reside a verdade no nacionalismo. Nossas lealdades e compromissos baseiam-se, em primeiro lugar, num território. Ele é nosso, o lugar onde estamos e onde nossos filhos viverão. Quase da mesma importância estão a história e os costumes pelos quais o território foi instituído. A história e os costumes são cada vez mais seculares, e os mitos nacionais são celebrados através de narrativas de glória, narrativas de sacrifício e narrativas de libertação. 

14. Além do exterior, a oposição à ideia de nação parte de instituições como as universidades, onde a autopercepção das sociedades europeias é externada e desenvolvida. Por quase toda a parte encontramos uma cultura de repúdio. Tomemos qualquer característica positiva de nossa herança cultural e política e encontraremos esforços combinados na mídia e na academia para colocá-la entre aspas e fazê-la parecer uma impostura ou um engodo. Um importante setor da opinião pública de esquerda tenta endossar essas críticas e convertê-las em diretrizes políticas. 

15. No campo oposto, está o conservadorismo, uma cultura de afirmação. Diz respeito às coisas que valorizamos e que queremos defender. Qualquer um que entenda o que está em jogo no conflito global atual verá que a nação é uma das coisas que devemos manter.

Adaptado de SCRUTON, Roger. Como ser um conservador. Tradução de Bruno Garschagen. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 55-68.

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