“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A Invenção das Tradições

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Pátria (1919), de Pedro Bruno (1888-1949). 
Localização: Museu da República (Palácio do Catete).

Nada parece mais antigo e ligado a um passado imemorial do que a pompa que cerca a realeza britânica em quaisquer uma de suas cerimônias públicas. Todavia, este aparato, em sua forma atual, data dos séculos XIX e XX. Frequentemente, "tradições" que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não foram inventadas. 

O termo "tradição inventada" é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as "tradições" realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e se estabeleceram mui rapidamente. A transmissão radiofônica real realizada no Natal na Grã-Bretanha (instituída em 1932) é um exemplo do primeiro caso; como exemplo do segundo, podemos citar o aparecimento e evolução das práticas associadas à final do campeonato britânico de futebol. É óbvio que nem todas essas tradições perduram. 

Por "tradição inventada" entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou francamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. O passado histórico no qual a nova tradição é inserida não precisa ser remoto, perdido nas brumas do tempo. Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições "inventadas" caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. 

A "tradição" neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do "costume", vigente nas sociedades ditas "tradicionais". O objetivo e a característica das "tradições", inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O "costume", nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Ele não pode se dar ao luxo de ser invariável, uma vez que a vida não é assim nem mesmo nas sociedades tradicionais. "Costume" é o que fazem os juízes; "tradição" (no caso, tradição inventada) é a peruca, a toga e outros acessórios e rituais formais que cercam a substância, que é a ação do magistrado. A decadência do "costume" inevitavelmente modifica a "tradição" à qual ele geralmente está associado. 

Toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal. Tais tradições são altamente aplicáveis no caso de uma inovação histórica comparativamente recente, a "nação", e seus fenômenos associados: o nacionalismo, o Estado nacional, os símbolos nacionais, as interpretações históricas e aí por diante. Da mesma forma, as linguagens-padrão nacionais, ensinadas e aprendidas nas escolas e utilizadas na escrita, quanto mais na fala, por uma elite minúscula, são, em grande parte, construções igualmente relativamente novas. 

Não nos deixemos enganar por um curioso paradoxo: as nações modernas, com toda a sua parafernália, geralmente afirmam ser o oposto do novo, ou seja, estar enraizadas na mais remota antiguidade. Dizem ser o oposto do construído, ou seja, ser comunidades humanas, "naturais" o bastante para não necessitarem de definições que não a defesa dos próprios interesses. Sejam quais forem as continuidades históricas ou não envolvidas no conceito moderno da "França" e dos "franceses" - que ninguém procuraria negar - estes mesmos conceitos devem incluir um componente construído ou "inventado". 

Adaptado de HOBSBAWM, Eric J. Introdução: A invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric J. & RANGER, Terence. (organizadores). A Invenção das Tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante. São Paulo: Paz e Terra, 2014, p. 7-22.  

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